Socialismo: realidade e mito Versão para impressão
Sábado, 01 Novembro 2008

A resposta política à actual situação exige o maior empenhamento e o maior discernimento.

Só a esquerda poderá encontrar as propostas e as acções tendentes a travar a espiral do financismo que já entrou em frenesi, como os tubarões em grupo fazem a atacar as presas, como se enlouquecessem. Não há medidas paliativas, aliás sempre para dar mais e mais dinheiro à banca, que suscitem a mínima temperança. Desde os banquetes milionários à descoberta de novos e impensáveis "produtos" especulativos, a matula dos milhões está aí para as curvas.

O desmascaramento iniludível, perante os cidadãos de todo o mundo, do carácter estruturalmente predador da globalização financeira, apesar das manobras propagandísticas dos neoliberais e das inconsequências de voz grossa dos que clamam por alternativa sem pôr em causa as bases do sistema, permite e exige que a resposta da esquerda assuma o seu carácter radical, isto é, que vá à raiz da crise.

Isso passa por condenar sem hesitações o capitalismo e entender que ele não pode existir hoje a não ser neste seu novo avatar de cavaleiro do apocalipse; e propor aos cidadãos, aos trabalhadores, aos povos, políticas e programas alternativos que aproximem ou provoquem a irrupção das medidas socialistas; do socialismo, como resposta necessária à lei da selva a que se chegou.

Daí que o socialismo tenha de ser limpo do lixo, da lia, até mesmo da simpática patine que lhe foram atirando para cima e o tornaram quase irreconhecível, ao ponto de ser rejeitado por aquelas classes e grupos sociais que ainda há trinta e quatro anos o exigiam nas ruas, o tentavam impor na acção política, o reconheciam no serviço público do ensino e da saúde, na nacionalização da energia e das grandes instituições financeiras, o colocavam no mais íntimo do seu coração quando avançavam decididos a mudar a vida e não apenas a "mudar de vida" ou "pôr um pauzinho na engrenagem".

A responsabilidade da esquerda socialista, do Bloco, nesta conjuntura decisiva não pode ser iludida nem disfarçada e está a ser assumida com determinação, entusiasmo e clareza.

Mas na acção política de massas também temos que contar com o PCP. A sua real influência, a qualidade e empenhamento da sua militância podem dar um contributo valioso para o movimento cidadão e para a luta dos trabalhadores; mas também podem ser um factor desorientador dessa mesma luta.

O PCP está manietado pela incapacidade de cortar as amarras que o prendem à sua própria mitologia.

O que é hoje, para o PCP, o socialismo?

Um combate revolucionário que não pára, que vai sempre alargando mais o espaço público, a liberdade e a responsabilidade individual e colectiva dos trabalhadores, a participação activa e consequente dos cidadãos e cidadãs, no quadro da necessária apropriação pela sociedade do trabalho social e dos meios de produção indispensáveis ao seu funcionamento harmonioso na base de um serviço público matricial, contando com a pluralidade dos contributos das mais variadas correntes e dos mais variados agentes da vida social?

Ou um mito edificado por engenheiros e arquitectos sociais, quando não mesmo "engenheiros de almas", zelosamente guardado e decifrado por prosélitos encartados que, de vez em quando, nos dão o privilégio de "trocar umas ideias sobre o assunto"?

A ideologia a substituir-se à resposta política concreta aos interesses reais das massas numa determinada situação histórica, eis o que tem sido a história já longa do socialismo falido.

Daí a heróica capacidade do PCP para considerar que na China se constrói o socialismo com os mais brilhantes capitalistas no CC do PCC; que na bestialidade do regime da Coreia do Norte possa haver um orientação socialista; que a democracia mais radical, quanto mais a simples democracia pluralista, pode estar ausente de um regime socialista. Daí também a deprimente incapacidade do PCP para se demarcar da cleptocracia angolana (porque o MPLA foi, um dia, classificado pela URSS como um "partido marxista-leninista"?).

Mas a mitologia socialista do PCP tem mais que se lhe diga. A ideologia é uma ponte segura com realidades que são o equivalente de troca de referências historicamente cristalizadas

Quando Gorbachev, em "meados da década de oitenta"(sic), incapaz de defender e propor uma alternativa revolucionária ao regime ditatorial de capitalismo de Estado na URSS, se lançou na aventura liberal que deitou fora o bébé com a água do banho, o PCP abriu os braços à perestroika, para não se sentir órfão, na vã ilusão da solução de compromisso. A partir da sua lendária "firmeza ideológica" e "de classe" o PCP não conseguiu vislumbrar "as graves cedências e capitulações ideológicas, políticas e de classe que se manifestaram sobretudo a partir de meados da década de oitenta"(sic) como assinala nas teses para o seu XVIII congresso.

O apelo institucional, que aliás foi patente durante todo o PREC, esse medo do movimento social sem patrão, a que o PCP chama de anarquia ou de "radicalismo esquerdizante", essa necessidade de suporte consolidado, levou o pragmático Álvaro Cunhal, como muito bem assinalou Luís Fazenda no seu texto fundamental As voltas do PREC publicado no livro Passado e Futuro do 25 de Abril (D. Quixote), a acolher-se à sombra protectora da URSS. Fê-lo quando já tinha claro que a democracia e a colaboração entre os partidos comunistas e a URSS eram uma patranha e que as posições dos "esquerdistas", que acusavam a URSS de ser um obstáculo à revolução em Portugal, eram bem mais próximas das suas próprias do que queria dar a entender. Como ainda assinala Fazenda, o mesmo pragmatismo levou-o a aproximar-se da China quando viu que o colapso da URSS estava iminente.

Claro que toda esta história vai consolidando uma cultura. É essa cultura que prefere chamar ideal (Álvaro Cunhal em 1993: "o que fracassou não foi o ideal comunista") ao que Marx designou «movimento real». Porque o ideal está sempre safo e o movimento obriga-nos tantas vezes a grandes trambolhões e a responder por eles.

Vivem-se tempos de clarificação. E a política socialista, hoje mais do que nunca, não pode ser confundida com o seu contrário.

Mário Tomé