Recensão crítica de "O Espectador Emancipado" Versão para impressão
Terça, 19 Março 2013

o espectador emancipado«Quero uma palavra vazia que eu possa preencher»

Jacques Rancière (JR) é filósofo e professor emérito na Universidade de Paris VIII. Viveu e sentiu o Maio de 68, permaneceu sempre ao lado das posições da esquerda radical na Europa, ainda que crítico de muitos dos erros que se foram cometendo ao longo da segunda metade do séc. XX. É uma figura respeitada no mundo da cultura, as suas teses servem de pilar para muitos que tentam reinventar um programa de políticas públicas para as artes. É autor de várias obras como o Mestre Ignorante, O Destino das Imagens e O Espectador Emancipado.

Pensador em torno dos conceitos de Arte Politizada, Partilhas do Sensível e as relações entre Estética e Política, representa alguém a quem devemos um olhar atento para repensar algumas temáticas atuais como: emancipação, para que serve a arte, o que é isto do "consenso'', arte politizada.

Vou tentar, então, neste artigo, que se apoia na obra de Rancière O Espectador Emancipado, simular uma curta viagem em torno das questões do livro que achei mais pertinentes abordar.

·         Uma ideia sobre emancipação intelectual

«Olhar é contrário de agir.» (...) «Um ignorante podia ensinar a outro ignorante aquilo que ele próprio não sabia, ao proclamar a igualdade das inteligências e ao opor a emancipação intelectual à instrução do povo.»

No primeiro capítulo, o filósofo ocupa-se de desvendar algumas ideias ultrapassadas sobre o teatro, o espectador e o conceito de vanguarda. A primeira grande assenta na necessidade de entendermos que a ignorância não é o posto do saber, porque o saber não é um conjunto de conhecimentos, mas sim uma posição. A igualdade das inteligências é uma realidade e abre as portas para questionarmos modelos de escola, o papel do professor e do aluno. O professor não aquele que transmite o seu conhecimento ao aluno mas sim tem um papel de pedagogo que abre as portas para que o aluno construa o seu próprio conhecimento. Usa, para isso, símbolos comuns:

«Do ignorante que soletra os signos até ao cientista que constrói hipóteses é sempre a mesma inteligência que se encontra em ação, uma inteligência que traduz signos por outros signos e que procede por comparações e figuras para comunicar as suas aventuras intelectuais e compreender aquilo que uma outra inteligência trata de lhe comunicar.» (JR)

A emancipação é, acima de tudo, a capacidade individual de cada um, vencer a ignorante ideia de que a ignorância se ultrapassa com transmissões apáticas de informação:

«É uma forma de constituição estética – da constituição sensível – da coletividade. Comunidade como maneira de ocupar um lugar e um tempo, como o corpo em ato oposto ao simples aparelho das leis, como um conjunto de perceções, de gestos e de atitudes que precede e pré-configura as leis e as instituições políticas.» (JR)

Para trabalhar estas ideias, Rancière tece uma análise sobre o papel do Teatro hoje e o que ele pode significar nessa transformação e usa como exemplo da igualdade das inteligências uma série de cartas trocadas por dois operários no final do séc. XVIII.

Essas cartas, ao contrário do que se espera ler numa correspondência entre proletários, não descrevem as más condições de trabalho, a jorna, os baixos salários. Cada um deles conta o seu Domingo ao outro. A forma como olha as árvores e como aquele tempo é precioso para ele, para pensar outras coisas que não a consciência de classe, até porque ela passa por abrir outros horizontes do possível.

Tal como estas cartas, o bom teatro também rasga algumas fronteiras, impossíveis à primeira vista. As relações estabelecidas entre ver, fazer e falar rompem-se quando pomos em causa o papel de um espectador num teatro. O antagonismo entre passividade e atividade é posta em causa, não no conceito dos termos, mas nos termos da própria posição do espectador em relação à peça, à performance.

A emancipação intelectual é a verificação da igualdade das inteligências. Esta igualdade não significa um igual valor de todas as manifestações de inteligência, mas a igualdade da inteligência relativamente a si mesma em todas as suas manifestações.

Não havia nenhuma brecha para ser colmatada entre intelectuais e operários, tal como não existe entre atores e espectadores. Houve um tempo em que a esquerda olhava a vanguarda com alguma esquizofrenia: por um lado ela tinha de sentir as dificuldades da classe do proletariado, por outro necessitava de conhecimento académico e científico para vencer a burguesia. Ora, sem entrar em armadilhas pós-modernas, o que se trata hoje de refletir é no papel que o proletariado e o intelectual têm hoje na sociedade – já o proletário pode ser um académico e já o académico é um proletário. A distinção entre aquele/a que faz e aquele/a que pensa é um absurdo. Mas isso não significa que não existam proletários ou intelectuais com conhecimentos específicos nesta ou naquela área que possam contribuir para uma qualquer mudança do atual estado de coisas. Até porque a outra visão coloca o papel da vanguarda num vazio na ação: ela serve para quê senão para partilhar as diferentes experiências e daí delinear um ou mais caminhos? A vanguarda, tem, tal como a escola, o teatro, a performance, um papel de pedagoga.

«Os espetadores veem, sentem e compreendem algo na medida em que compõem o seu próprio poema, como, a seu modo, fazem os atores ou os dramaturgos, os realizadores, os bailarinos ou os performers.» (JR)

·         O falhanço da crítica pós-crítica

Numa outra parte mais avançada do livro, o autor ocupa-se de nos tentar desenhar uma imagem da ineficácia de uma crítica que foi fazendo carreira desde os anos 80.

Essas mesmas teorias dizem-nos que somos vítimas de uma estrutura global de ilusão, vítimas da nossa ignorância e da nossa resistência face a um processo global irresistível de desenvolvimento das forças produtivas: o processo de desmaterialização da riqueza, processo que tem como consequência a perda das crenças e dos ideais antigos. Na respetiva argumentação reconhecemos facilmente a indestrutível lógica do Manifesto Comunista. Não é por acaso que o pretenso pós-modernismo teve de tomar de empréstimo a fórmula canónica do Manifesto: «Tudo o que é sólido dissolve-se no ar.» Tudo se tornaria líquido, gasoso, fluido, e só nos restaria rir dos ideólogos que ainda acreditam na realidade da realidade, da miséria e das guerras.

«Faz de todo o protesto um espetáculo e de todo o espetáculo uma mercadoria. (...) A melancolia de esquerda convida-nos a reconhecer que não há alternativa ao poder da besta e a confessarmos que estamos satisfeitos com tal facto. O furor de direita adverte-nos de que, quanto mais queremos destruir o poder da besta mais contribuímos para o seu triunfo. Ora, esta crítica pós-crítica está privada de qualquer efeito.» (JR)

A pretensa mudança pós-moderna não é nenhuma nova forma de olhar o mundo, mas sim uma volta dentro do mesmo círculo. Olha a riqueza, a pobreza, a realidade, as imagens, o sensível apenas de um ângulo diferente, sem nunca por em causa o que está realmente por trás da tradição crítica do séc. XX.

Tal como desenhar um outro Teatro ou pintar uma nova vanguarda para o séc. XXI, o que está realmente em causa não é baralhar o espectador com o ator nem o papel do proletário com o do intelectual. É exatamente admitir que essas mesmas coisas, corpos, dispositivos ganharam papéis diferentes (ou talvez sempre os tiveram).

«Apesar de todo o ceticismo pós-moderno em relação ao desejo de mudar a vida, vemos tantas instalações e espetáculos transformados em mistérios religiosos que não é necessariamente escandaloso ouvir dizer que palavras são simplesmente palavras (...) saber que as palavras são somente palavras e os espetadores apenas espetadores pode ajudar-nos a compreender melhor como as palavras e as imagens, as histórias e as performances podem mudar qualquer coisa no mundo em que vivemos.» (JR)

·         O dissentimento contra o consenso

«A palavra consenso significa de facto bastante mais do que uma forma de governação ''moderna'' que dá prioridade à especialização, à arbitragem e à negociação entre os ''parceiros'' sociais ou entre os diferentes tipos de comunidades. O consenso significa o acordo entre sentido e sentido (...) sejam quais forem as nossas divergências de ideias e de aspirações, percebemos as mesmas coisas e damos-lhes a mesma significação. O contexto da globalização económica impõe esta imagem de um mundo homogéneo no qual o problema para cada coletividade nacional é adaptar-se a um certo estado de coisas relativamente ao qual não tem controlo, adaptando-lhe o mercado de trabalho e as suas formas de proteção social.» (JR)

A funcionalidade da arte cai por terra quando apenas tenciona criticar, porque a própria crítica ao sistema sem abertura de novas fronteiras já foi engolida pela besta (como caracteriza Rancière o sistema capitalista).

«No mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso» Guy Debord

·         Arte Politizada

Os dois últimos capítulos do livro procuram, ainda que de forma difusa, pouco concreta, uma certa luz para uma ideia de Arte Politizada.

Rancière usa como exemplos algumas obras fotográficas e filmes, mas vou focar as atenções no cineasta português Pedro Costa. Para o autor, este cineasta consagrou na sua trilogia – Ossos, No Quarto da Vanda e Juventude em Marcha -  uma das possíveis saídas para uma nova arte politizada. Ao contrário da ideia moral de que não se deve estetizar a miséria, Pedro Costa pega no exemplo de um grupo de marginais lisboetas que vivem mergulhados nos problemas da imigração, da droga e dos biscates que os fazem continuar no bairro da Fontaínha e tenta agarrar todas as oportunidades de valorizar os recursos artísticos oferecidos por aquele cenário de vida mínima. Encontrar pinturas de natureza morta com cenários de apenas garrafas de plástico, uma faca, um copo ou ver pedaços de betão de aspecto escultórico ou vastas zonas de cor no trabalho de umas escavadoras na demolição do bairro de lata é essa estetização que, na visão de Rancière, Pedro Costa procura. Significa que o território intelectual e visualmente banalizado da miséria e da margem é elevado á sua potencialidade de riqueza sensível partilhável. «Porque a questão política é antes de mais a da capacidade de quaisquer corpos tomarem em mãos o seu destino.» (JR) É então colocado no centro da discussão a relação entre uma política da estética e uma estética da política.

Resumindo, uma arte crítica que vê a distância estética é o garante do seu efeito enquanto tal. Que admite que ela comporta sempre conteúdos indecidíveis. E das duas uma, ou se admitem essa parte indecidível como opostos que se equivalem ou então se olha esse indecidível como o entrelaçamento de várias políticas, que criam novas figuras, exploram as respetivas tensões existentes entre elas, deslocando o equilíbrio dos possíveis e a distribuição das capacidades, como que se um dissentimento como programa emancipatório se tratasse.

«A comunidade justa é, pois, aquela que não tolera a mediação teatral, aquela em que a medida que governa a comunidade é diretamente incorporada nas atitudes vivas dos seus membros.» (Portanto) «Uma comunidade emancipada é uma comunidade de contadores e tradutores.» (JR)

Luís Monteiro

A Comuna. 29 (janeiro-março 2013) 33-36.

Obra:

Jacques Rancière – O Espectador Emancipado. Lisboa: Orfeu Negro, 2010.