Rússia e Ucrânia: projeto Euro-asiático em conflito com as políticas imperialistas da Tríade Versão para impressão
Sexta, 11 Abril 2014

eurasiaO fascismo na Ucrânia não pode ser combatido pelo fascismo russo.

 

Opinião de Samir Amin

 

O projeto Euro-asiático em conflito com as políticas imperialistas da Tríade

 

1. O atual cenário mundial é dominado pela tentativa dos centros históricos do imperialismo (EUA, Europa Ocidental e Central, Japão, a posteriormente designada "Tríade") para manter o seu controlo exclusivo sobre o planeta através de uma combinação de:

a) as chamadas políticas de globalização económica neoliberal que permitem ao capital financeiro transnacional da Tríade decidir sozinho sobre todas as questões de acordo com os seus próprios interesses.

b) o controlo militar do planeta pelos EUA e seus aliados subordinados (NATO e Japão), a fim de aniquilar qualquer tentativa de qualquer país fora da Tríade para sair do seu jugo.

A esse respeito todos os países do mundo fora da Tríade são inimigos ou potenciais inimigos. Exceto aqueles que aceitam a completa submissão à estratégia económica e política da Tríade. Tais como as duas novas "repúblicas democráticas" da Arábia Saudita e do Qatar! A chamada "comunidade internacional" a que os meios de comunicação social ocidentais se referem continuamente é realmente reduzida ao G7 mais a Arábia Saudita e o Qatar. Qualquer outro país, mesmo quando o seu governo está alinhado, é um inimigo potencial uma vez que os povos desses países podem rejeitar essa submissão.

2. Nesse quadro a Rússia é "um inimigo".

Qualquer que seja a nossa avaliação do que foi a União Soviética ("socialista" ou qualquer outra coisa), a Tríade combateu-a simplesmente porque era uma tentativa de desenvolvimento independentemente do imperialismo/capitalismo dominante.

Após o colapso do sistema soviético, algumas pessoas (na Rússia, em particular) julgaram que o "Ocidente" não iria antagonizar uma "Rússia capitalista". Tal como aconteceu com a Alemanha e o Japão, que "perderam a guerra, mas ganharam a paz". Esqueceram-se de que as potências ocidentais apoiaram a reconstrução dos ex-países fascistas, precisamente para enfrentar o desafio das políticas independentes da União Soviética. Agora, tendo desaparecido esse desafio, o alvo da Tríade é destruir a capacidade da Rússia de resistir a uma submissão completa.

3.O desenvolvimento atual da tragédia Ucrânia ilustra a realidade do objetivo estratégico da Tríade.

A Tríade organizou em Kiev o que deveria ser chamado de "golpe de Estado euro/nazi". Sim, para atingir o seu objetivo (separar as históricas nações gémeas, nação russa e nação ucraniana), eles precisavam do apoio dos nazis locais.

A retórica dos meios de comunicação ocidentais, alegando que as políticas da Tríade têm como objetivo a promoção da democracia, é simplesmente uma mentira. Em lado nenhum a Tríade tem promovido a democracia. Pelo contrário, têm vindo sistematicamente a apoiar as forças locais mais antidemocráticas (em alguns casos, "fascistas" ). Proto-fascistas na ex-Jugoslávia - na Croácia e no Kosovo - bem como nos Estados Bálticos e da Europa Oriental, na Hungria, por exemplo. Os países da Europa Oriental foram "integrados" na União Europeia, não como parceiros iguais, mas como "semicolónias" das grandes potências capitalistas/imperialistas da Europa Ocidental e Central. A relação entre o Ocidente e o Oriente, no sistema europeu é de alguma forma semelhante à que preside as relações entre os EUA e a América Latina! Nos países do sul, a Tríade apoiou forças extremistas antidemocráticas, como, por exemplo, o Islamismo Político ultrarreacionário, e com a sua cumplicidade, destruíram essas sociedades: os casos do Iraque, da Síria, do Egito, da Líbia ilustram esses alvos do projeto imperialista da Tríade

4. Nesse sentido, a política da Rússia (como desenvolvido pela administração de Putin) para resistir ao projeto de colonização da Ucrânia (e de outros países da antiga União Soviética, na Transcaucásia e Ásia Central) deve ser apoiada. A experiência Estados Bálticos não deve ser repetida. A meta de construção de uma comunidade "Euro-asiática", independente face à Tríade e ao seu parceiro subordinado Europeu, também deve ser apoiada.

Mas esta "política internacional" russa positiva está destinada ao fracasso se não for apoiada pelo povo russo. E este apoio não pode ser conseguido com base exclusivamente no "nacionalismo", mesmo a vertente positiva de nacionalismo progressista (não-chauvinista), nem por maioria de razão por uma retórica "chauvinista" russa. O fascismo na Ucrânia não pode ser combatido pelo fascismo russo. O fascismo pode ser vencido somente se a política económica e social interna promover os interesses da maioria das pessoas que trabalham.

O que quero dizer com política "orientada para o povo" que favoreça as classes trabalhadoras?

Será que eu quero dizer "socialismo", ou até mesmo uma nostalgia do sistema soviético? Este não é o lugar para reavaliar a experiência soviética, em poucas linhas! Devo apenas resumir a minha opinião em poucas frases. A verdadeira revolução socialista russa produziu um socialismo de Estado, que era o único primeiro passo possível em direção ao socialismo; depois de Stalin, o socialismo de Estado seguiu caminho o rumo ao capitalismo de Estado (explicar a diferença entre os dois conceitos é importante, mas não é o assunto deste breve artigo). A partir de 1991, o capitalismo de Estado foi desmontado e substituído pelo capitalismo "normal", baseado na propriedade privada que, como em todos os países do capitalismo contemporâneo, é basicamente a propriedade dos monopólios financeiros, pertencentes à oligarquia (uma oligarquia idêntica às oligarquias que lideram o capitalismo na Tríade), muitos vindos dos ex-Nomenklatura, alguns recém-chegados.

A explosão de práticas democráticas autênticas e criativas iniciadas pela Revolução Russa foi posteriormente domesticada e substituída por um padrão autocrático de administração da sociedade, ainda que com concessão de direitos sociais para as classes trabalhadoras. Este sistema levou à despolitização massiva e não foi protegido de desvios despóticos e, até mesmo, criminosos. O novo padrão de capitalismo selvagem é baseado na continuação da despolitização e do não respeito dos direitos democráticos.

Tal sistema impera não apenas na Rússia, mas em todas as outras ex-repúblicas soviéticas. As diferenças referem-se à prática da chamada democracia eleitoral "ocidental", mais efetiva na Ucrânia, por exemplo, do que na Rússia. No entanto essa forma de governo não é "democracia", mas uma farsa em comparação com a democracia burguesa que funcionava em estágios anteriores do desenvolvimento capitalista, inclusive nas "democracias tradicionais" do Ocidente, já que o poder real está agora restrito à decisão de monopólios que operam no seu próprio interesse.

Uma política orientada para o povo implica, portanto, afastar-se, tanto quanto possível, das receitas de "liberais" e da farsa eleitoral a elas associada para reivindicar legitimidade às políticas sociais regressivas. Eu sugeriria a criação em seu lugar de um novo capitalismo de Estado com dimensão social (digo social, e não socialista). Esse sistema abre o caminho para eventuais avanços em direção a uma socialização da gestão da economia, portanto, novos avanços autênticos em direção a uma inovação da democracia que corresponder aos desafios de uma economia moderna.

Somente se a Rússia seguir esta via, é que o atual conflito entre, por um lado, a política internacional independente pretendida por Moscovo e, por outro lado, a prossecução de uma política social interna reacionária pode ser conduzida a um desfecho positivo. Tal deslocação é necessária e possível: fragmentos da classe política dirigente pode alinhar num programa desse tipo, se a mobilização e a ação popular o impulsionarem. Na medida em que avanços similares sejam também realizados na Ucrânia, Transcaucásia e Ásia Central, uma autêntica comunidade de nações euro-asiáticas pode ser estabelecida e tornar-se um ator poderoso na reconstrução do sistema mundial.

5. A continuação do poder estatal russo dentro dos estritos limites da receita neoliberal aniquila as hipóteses de sucesso de uma política externa independente, e as hipóteses da Rússia se tornar um verdadeiro país emergente com capacidade para agir como um ator internacional importante.

A única coisa que neoliberalismo pode produzir na Rússia é uma regressão económica e social trágica, um padrão de "lúmpen-desenvolvimento" [miserável] e um estatuto cada vez mais subordinado na ordem imperialista global. A Rússia forneceria à Tríade petróleo, gás e outros recursos naturais; as suas indústrias seriam reduzidas ao status de subcontratadas em benefício dos monopólios financeiros ocidentais.

Numa tal posição, não muito longe da que é hoje a posição da Rússia no sistema global, as tentativas de agir de forma independente na área internacional continuarão a ser extremamente frágeis, ameaçadas por "sanções" que irão robustecer o alinhamento desastroso da oligarquia económica dirigente com as exigências dos principais monopólios da tríade. A atual fuga de "capital russo" associada à crise da Ucrânia ilustra o perigo. Reestabelecer um controle do Estado sobre os movimentos de capitais é a única resposta eficaz a esse perigo.

Samir Amin, diretor do Forum do Terceiro Mundo

artigo enviado pelo autor para A Comuna

ver também: POLÉMICA UCRÂNIA

Referências

Samir Amin - The implosion of capitalism. Pluto and MR Press, London and NY, 2014.

Samir Amin - "What 'radical" means in the 21 st century". in Review of Radical Political Economy, vol 45, n°3, 2013.

Samir Amin - "The Democratic fraud". Monthly Review, NY, vol 63, n°5, oct 2011

Samir Amin - Unity and Diversity in the movement to socialism. Monthly Review, to appear in the June 2014 issue.

Samir Amin - "Russia in the global system". translated from Arabic into Russian by Said Gafourov.