A emancipação como privilégio - o movimento feminista sob o sistema neo-liberal |
Segunda, 22 Dezembro 2014 | |||
Os novos feminismos terão que regressar à ideia de comunidade, desta vez uma comunidade transnacional que não deixe metade das passageiras fora do barco.
Artigo de Catarina Amorim dos Santos
Com a recente desregularização e globalização do sistema capitalista, o discurso feminista surge como que dividido em dois: por um lado, o foco nas experiências individuais e no avanço meritocrático das mulheres da elite e, por outro, uma onda de solidariedade social transnacional. Enquanto que o primeiro se encontra altamente embutido no discurso neo-liberal, o segundo procura alternativas que beneficiem todas as mulheres, independentemente do seu estatuto social. Em primeiro lugar há que entender que o capitalismo é, à partida, um sistema anti-feminista. Tendo em conta que se trata de um sistema baseado em desigualdades, com uma classe explorada e uma classe exploradora, é também ele um sistema que se aproveita dos segmentos de população mais vulneráveis a essa mesma exploração. Historicamente, o trabalho não remunerado das mulheres constituiu (e continua a constituir) uma base fundamental para a manutenção do status quo. Às mulheres continuam a ser delegadas as tarefas domésticas, o chamado trabalho reprodutivo na teoria marxista, trabalho não remunerado que consiste na manutenção das necessidades pessoais na esfera privada. Mas grande parte das mulheres não lava apenas a sua roupa ou cozinham o seu jantar, fá-lo para todxs. E se por um lado este tipo de trabalho não é tido em consideração no sistema capitalista, uma vez que quem o produz não recebe remuneração, por outro tem havido uma transferência da esfera privada para a esfera pública, com mulheres a ocuparem cargos relacionados com o estereótipo de género, regra geral mal pagos. Isto é esquecido pelo feminismo mainstream (i.e., white feminism), que enquanto defende a emancipação feminina através da ascenção a empregos e cargos de topo, esquece que na esfera privada a divisão de trabalho continua a não ser equitativa, pondo assim um duplo peso sobre os ombros das mulheres. O discurso vendido pelas elites é o do 'we can have it all'. A realidade é que um foco exclusivo no género sem ter em conta as circunstâncias culturais, sociais e económicas agrava as clivagens já existentes entre mulheres de diferentes classes. A conciliação da esfera privada e pública pode apenas ser feita por aquelxs com meios para tal, e o sol não brilha para todxs da mesma forma. Como pode uma empregada doméstica estar integrada na emancipação feminina que defende a diretora executiva que a explora? A Criada Malcriada A aclamada integração da mulher no mercado de trabalho tem-se feito não por motivos relacionados com justiça ou igualdade, mas por motivos maioritariamente económicos. Este é, aliás, um tipo de discurso recorrente também em países em desenvolvimento: o "potencial" das raparigas e mulheres, a catch-phrase favorita de muitas organizações, trata basicamente de potencial económico. A instrumentalização do feminismo tendo em mente motivos económicos, muitas vezes sob o argumento de que as mulheres podem salvar o mundo, não é uma boa abordagem e, muitas vezes, agrava situações de desigualdade, colocando pressão adicional nestas mulheres. Porque aqui, novamente, esquecem-se as desigualdades no lar, juntamente com fatores culturais e sociais, focando-se na condição da mulher (neste caso apresentada meramente como vítima) em vez da sua posição na estrutura do sistema patriarcal. Há portanto uma manutenção do status quo, tanto nos países em desenvolvimento como nos países desenvolvidos. A posição da mulher é mais precária, com menor salário e em empregos menos qualificados, é esta a integração no mercado de trabalho. A crise económica veio piorar a situação, com uma cristalização ou mesmo regressão dos avanços feministas. Portugal está agora em 14º na escala de 27 países da OCDE no Women in Work Index, elaborado pela consultora PricewaterhouseCoopers. Esta penalização da mulher em tempos de crise dá-se porque por um lado, num casal dá-se mais importância ao trabalho do homem, remetida a mulher para a lida da casa e, por outro lado, o setor público, o mais afetado e que sofreu mais cortes, é em Portugal essencial para a inserção de mulheres na atividade remunerada, já que o setor privado tende a escolher homens para os empregos mais qualificados. Há muito mais mulheres a trabalhar a tempo parcial exatamente porque são forçadas a conciliar as esferas pública e privada e, não tendo meios para pagar a terceiros para ajuda ou não dispondo da ajuda de familiares, são sempre elas a ficar em casa. Em tempos de crise a mulher vê-se assim forçada a juntar à atividade não remunerada em casa, a atividade mal-remunerada fora dela, não podendo muitas vezes competir com o sexo masculino devido à falta de flexibilidade na maioria dos empregos. E com os baixos salários, torna-se difícil ter a independência financeira desejada. Embora legalmente exista igualdade no acesso ao mercado de trabalho, esta igualdade não toma em consideração a responsabilidade extra da mulher fora do mesmo, não existindo a equidade necessária. E é precisamente aqui que o discurso neo-liberal falha: no não-reconhecimento e avaliação de circunstâncias e contextos, substindo-os pela ideia da meritocracia. Simulaneamente, tem-se assistido a um aumento no foco na vida privada e na individualização das problemáticas. Por um lado, a personalização do discurso centra-se muitas vezes em casos de sucesso usados enquanto tokens. Um bom exemplo é o da executiva milionária do Facebook, Sheryl Sandberg: uma mulher que ultrapassou todos os obstáculos subiu ao topo numa hierarquia dominada por homens. O problema deste tipo de discurso falha no reconhecimento das barreiras estruturais embebidas no sistema, substituindo-as por barreiras e sucessos pessoais baseados no self-improvement, característico do modelo capitalista norte-americano. A emancipação feminina coletiva é assim substituída pela emancipação da mulher enquanto indivíduo. Porquê? Porque a história da mulher pobre não vende o produto desejado – o equecimento do status quo. Todxs querem ver casos de sucesso e sentir que um dia poderão ser elxs a alcançar o pretendido, sentir que afinal é possível. O discurso neo-liberal distorceu os ideais feministas de forma a que a (exploração da) emancipação da mulher seja um veículo para acumulação de capital. Julien Blanc Por outro lado, a personalização do discurso condenatório faz com se questionem comportamentos individuais e não as estruturas que permitem a manutenção, difusão e aceitação desses mesmos comportamentos. O caso altamente mediatizado de Julien Blanc é um bom exemplo. Embora se tenham ganho algumas batalhas, probindo a entrada do auto-demominado 'artista de engate' de vários países, corre-se o risco de perder a luta como um todo visto que a institucionalização deste tipo de comportamentos discriminatórios é muitas vezes ignorada. Os Julien Blancs por esse mundo fora não são a doença, mas sim sintomas de uma sociedade patriarcal doente. O admirável novo mundo não assenta na igualdade. Assenta sim em salários baixos, deterioração de serviços públicos, precariedade e pobreza. A importância crescente de temas de identidade de género, embora extremamente importante, não pode ser feita à custa da eliminação de 'pão e água', há que considerar as micro-agressões como expressões da macro-agressão do sistema patriarcal. Os novos feminismos terão que regressar à ideia de comunidade, desta vez uma comunidade transnacional que não deixe metade das passageiras fora do barco. Citando Laurie Penny: "Enquanto nos preocupamos com telhados de vidro, há milhões de mulheres na cave". Catarina Amorim dos Santos texto originalmentre publicado no Clitóris da Razão gentilmente cedido pela autora para publicação n' A Comuna
imagem do topo: "Mujeres de aquí y allá". ;-) AranZazu.
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