José Saramago: flor agreste |
Sábado, 16 Outubro 2010 |
Escarro e Escarrilho aplicadamente de volta de Germano Vidigal, assalariado agrícola e comunista – também ele “erva daninha em campo de trigo” como o Osservattore Romano classifica José Saramago no obituário que o Vaticano mandou escrever. Destroçando com método, apesar da desvairada bestialidade, o corpo, que tinham ao dispor que não a alma, resistiu e resistiria até que o cansaço se apoderou deles e, certos de que, inerme e obstinado, já não lhe arrancariam uma palavra, o “suicidaram” com um arame à volta do pescoço preso a um ferrugento prego pregado na parede, Germano de joelhos pelo esgotamento do corpo que não perante eles, o Escarro e o Escarrilho. A total bestialidade não só fazia parte dos manuais da Gestapo, como havia de ser precursora dos procedimentos aplicados em Abu Ghraib e Guantánamo e nas cadeias espalhadas por essa Europa unida que se abriram, hospitaleiras, aos inconfessados prisioneiros da CIA. Nunca os latifundiários senhores da terra que no processo de “modernização” do fascismo iam, por cissiparidade, gerando os futuros patrões que haviam de dar nova dinâmica ao capitalismo, libertando-o das peias salazaristas e lançando as pedras daquele que havia de ser o PSD, assim que a revolta dos capitães e a fugaz revolução lhes deram asas - sempre de vampiro - pensaram vir a ter tão grande importância na defesa da civilização ocidental e cristã e na luta contra o terrorismo. De facto eram eles, em última instância, quem assegurava a integração social daquelas bestas, dedicados torturadores, tantas vezes chamados ao dever sem empecilhos burocráticos por um telefonema ou simples recado mandado da herdade através de zeloso feitor. O carreiro de formigas que ia e vinha pela sala onde Germano Vidigal estava a ser assassinado (a murro, pontapé, vergastada e paulada) com métodos que a Santa Inquisição dispensaria porque já no seu tempo usava ferramentas tecnologicamente mais avançadas, foi a única testemunha credível do que realmente se passou. E como reza a pagina 176 de Levantado do Chão, de José Saramago, “Lavra grande indignação entre as formigas que assistiram a tudo, ora umas, ora outras, mas entretanto juntaram-se e juntaram o que viram, têm a verdade inteira, até a formiga maior, que foi a última a ver-lhe o rosto, em grande plano, como uma gigantesca paisagem, e é sabido que as paisagens morrem porque as matam, não porque se suicidem.” A Igreja encontra um adversário à altura
“Já
o adiantamento do ateísmo abstracto implicava um novo materialismo social que
não era mais que o comunismo” A obra de José Saramago foi apreciada por esse mundo fora e ele foi, talvez, o Prémio Nobel da Literatura que melhor soube aproveitar esse galardão tão ou mais político que literário, usando-o durante 12 anos numa luta intensa e pertinaz em defesa da humanidade dos seres humanos e da sua dignidade, combatendo o obscurantismo político, social e religioso. A compaixão que atravessa a obra de Saramago, numa profunda empatia com todos os que sofrem, pondo acima de tudo o respeito pela dignidade humana, não é reconhecida pela Igreja porque não se queda pelo dossel metafísico que desconhece a revolta, antes se transforma, na literatura de Saramago e na sua acção como militante político - que o foi em toda a amplitude - em urgência de agir e mudar radicalmente o mundo. A mais que justificada hostilidade do Vaticano a Saramago decorre, não tanto do seu ateísmo militante, mas mais da sua sensibilidade “metafísica” (o Vaticano, erradamente, acusa-o de não ter consciência metafísica – tem-na e muito aguda, por isso a desmascara tão certeiramente). Saramago usa a metafísica como metáfora da própria realidade para, indo ao encontro da ânsia de infinito ou de “nostalgia do absoluto” (Steiner) da humanidade alienada pela sociedade de classes (marxista!, acusa, e bem, o Vaticano), lhe dar, através da sua arte literária, instrumentos de racionalidade dialéctica. A Igreja ao procurar o aggiornamento civilizacional para não permanecer colada às trevas do fim do mundo e à celebração da morte (sem a qual não existiria, como Saramago certeiramente acusa) atrapalha os mais inquietos teólogos que bem tentam dar a volta ao texto, estando agora na fase aguda de ver no ateísmo a prova da existência de Deus (enfim, um deus), de O descobrirem já em todo o lado menos onde o Cânone no-lo impõe há dois milénios, de saudarem o ateísmo como avatar de profunda religiosidade! Em último e desesperado recurso, sabendo que os avanços sociais, culturais, civilizacionais, os avanços no respeito pela dignidade humana, os progressos na ética enquanto realidade histórica e não fixada num cânone, onde muitas vezes a Igreja está de fora, apenas foram possíveis com o progresso material e científico, vão sendo obrigados a admitir que a Bíblia poderá não ser mais que a continuação do canto de Gilgamesh ou da Odisseia, de uma história contada de geração em geração - quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto, como diria Saramago - como bálsamo para os tristes sofredores e como alegria e garantia de poder dos tristes que se apoderaram dos rendimentos do vale de lágrimas. (“O passado das civilizações nada mais é que a história dos empréstimos que elas fizeram umas às outras ao longo dos séculos...” - Fernand Braudel) A fábula ininterrupta, cantada pelos aedos através dos milénios, reflectindo as angústias e anseios da humanidade, desagua na Bíblia onde é transformada numa dogmática obscurantista, na persistência primitiva da sua inspiração, incapaz de evoluir historicamente, o que é ao mesmo tempo a segurança do seu poder. O cinismo é, pois, a marca d'água do Vaticano. A Humanidade no centro A necessidade teológica de se ater ao Livro (a Bíblia) choca irremediavelmente com a necessidade de não perder o rebanho em cada época histórica, rebanho atraído, solicitado, obrigado pelo desenvolvimento material só possível em estado de pecado... Na obra de Saramago, a metafísica como metáfora da realidade material desmonta a incongruência com uma eficácia que a desmontagem científica radical de um Richard Dawkins não alcança. Fábula contra fábula, ganha Saramago. Pela qualidade da efabulação, pela originalidade e beleza literária, pela arte com que aprofunda os mitos e os leva ate às últimas consequências deixando-os, solitários, reduzidos à sua beleza literária, libertando a realidade humana em toda a sua magnífica e material complexidade capaz de admirar os próprios mitos com que a pretendem amarrar. Daí a compaixão saramaguiana pela tragédia da humanidade rendida ao mito transcendente salvador e a necessidade de, por isso mesmo, ser implacável na demolição das suas raizes. A literatura presta-se à fábula e assim deve ser, creio. Daí o supremo valor de Saramago neste plano. São raros, se os houver, os escritores que terão a violenta lucidez de abalar tão fortemente o edifício mitológico onde habita e se esconde o poder secular da Igreja pois que, verdadeiramente espiritual não o tem. (“Aquele, escuta-o e segue-o. É um verdadeiro mestre. Respondo, Não. Porque tal confiança é idólatra. É preciso que seja eu a dar a autoridade ao meu mestre” Jésus, Henry Barbusse) Resta-lhe a idolatria e o culto do mistério como resposta mágica e sobrenatural, que tem conseguido dissolver lucidez potencial da humanidade, submetendo-a à irracionalidade. Até escritores assumidamente ateus raramente se esquecem de referir a Bíblia como inspiração, se não mesmo como referência, de contar as vezes que a leram com deleite, a mesma Bíblia (O Antigo Testamento mantém-se como literatura estruturante da crendice, apesar de Cristo – história ou mito - nela não se reconhecer - ver o estranhamente belo Jésus de Henry Barbusse.) que Saramago classifica como um manual de maus costumes tendo por inspiração a crueldade gratuita porque determinada pelo capricho arbitrário do Senhor. A grande Obra de Saramago, afirmando-se e impondo-se como monumento da literatura universal, transcende-se ao rasgar a cortina do mistério, reduzindo os mitos à necessidade dos humanos, deixando-os nus na sua intrínseca beleza e própria crueldade natural. A obra de Saramago impõe a crítica positiva e racional que a própria Igreja não consegue já negar mas que persiste, obviamente, em contornar e manipular com uma triste e única segurança: mesmo que assim “fosse”, antes de tudo vale o mistério indecifrável e é nisso que reside o seu valor e a sua verdade. Tudo o que as civilizações humanas, mais titubeantes ou mais decididas, procuraram e procuram, desde Homero a todos os filósofos gregos e poetas romanos, à civilização da cibernética, o conhecimento e o saber, a Igreja nega e recusa mesmo quando obrigada a vergar-se ao pragmatismo social. Isto vale para a ideologia religiosa como para a ideologia do capital. Saramago não hesitou nunca, por mais que isso lhe pudesse criar inimigos políticos, pessoais e institucionais. Também nisso é exemplo. O Prémio Nobel permitiu a Saramago tornar-se o mais importante arauto dos direitos humanos, da luta pela liberdade e pela dignidade da pessoa humana, da libertação dos povos, da denúncia do terrorismo de Estado e da condenação do terrorismo fundamentalista, do questionamento da democracia inquestionável, provocador admirado e amado militante político global. Em defesa de Cuba bloqueada por fora até à contestação e ao divórcio da Cuba amordaçada por dentro, da esperança de Chiapas à dor e luta da Palestina, do esboço revolucionário na Venezuela à firmeza dos Sahauris, Saramago foi um incansável peregrino, mostrando ao mundo, através da sua própria projecção de escritor nobelizado, o que o mundo não deve tolerar. Cavaco em contra-ciclo O temor a Deus desencadeou aquilo a que hoje, perante a não comparência de Cavaco no funeral de Saramago, se tem chamado de “questões menores” que deveriam ser atiradas para trás das costas em momento tão solene. Cavaco pode ser bronco mas não é parvo: ele sabe que não são questões menores. São questões centrais que na altura o fizeram querido da Igreja e dos talibãs católicos que agora querem outro candidato. Durante o seu consulado, em 1991, teve lugar um brutal e miserável acto censório, pela mão do subsecretário de Estado Sousa Lara, sob a tutela de Santana Lopes e o alto patrocínio do Primeiro Ministro Cavaco. “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” foi impedido de concorrer a um prémio europeu. Razões, se alguma houvesse ou pudesse ser invocada, que não podia, Sousa Lara apresentou-as em plenário da AR: segundo Lara o livro feria os católicos e o catolicismo, religião maioritária em Portugal. Portanto, o Governo ao assumir a defesa, pressupõe-se, dessa maioria, tornava confessional o Estado português. Este crime contra dois pilares fundamentais da democracia – a laicidade do Estado e a liberdade de expressão de que decorre directamente a ilegitimidade e a ilegalidade do julgamento que o governo de Cavaco fez do “Evangelho...” - crime sem castigo, porque Deus esteve de acordo, apenas teve a condená-lo o blá,blá,blá inconsequente das forças políticas da oposição. Portanto, agora, Cavaco Silva em pré-campanha preferiu que fosse o seu lacaio da altura, Sousa Lara, a ser confrontado, como foi. E este, relapso, renitente e contumaz, assegurou que voltaria a fazer o mesmo, canalha reincidente. Cavaco também achou que cairia mal na Hierarquia da Igreja vir ao funeral de um ateu impenitente, crítico sem arrependimento do milagre do mistério e que o Vaticano olharia com beatíssimo entusiasmo a sua atitude. Mas Cavaco está em contraciclo, e a fronda que a direita mais direita dos católicos, com o apoio sibilino do Cardeal, desencadeou contra o promulgador (na sua luta contra a crise, não nos esqueçamos) do casamento homo, deixou-o descalço. Confrontando, inesperadamente aliás, a posição do próprio Vaticano, a Igreja portuguesa sensibilizou-se com a morte de Saramago e elogiou o “grande escritor”. Cavaco ficou a nadar em seco... É o velho “azar dos Cabrais”, neste caso dos Cavacos. A literatura como arte e combate A escrita de Saramago, não tão sem vírgulas e pontos finais (para quê se isto nunca acaba?) é, assim, mais como um mar de palavras que nos atrai e intimida, onde vamos nadar com as nossas próprias braçadas, no ritmo que formos capazes. Não no estilo, mas na intencionalidade aberta e militante da literatura, lembra Neruda e Cortazar o mestre reconhecido do romance sul-americano. Eu, leitor, me confesso: parei a leitura dos romances de Saramago no Ensaio Sobre a Cegueira .. Pareceu-me, então, que terá escorregado um pouco na metafísica que tão bem usou como metáfora da realidade. Decerto erro meu. Não fui capaz de ler os Cadernos de Lanzarote. Mas da Viagem a Portugal a O Ano de 1993 passando por outros seus escritos e poemas fui-o sempre acompanhando. Tenho todas as suas obras publicadas à espera de melhor apetite. Os pedintes que o não sabem criticar, porque são incapazes de admirar algo que não seja beato ou banal, à sua própria imagem, esperneiam e blateram com um estilo muito próprio, o do rei na barriga, porque até votam em todas as eleições e a democracia é isso desde que não ponha em causa o verdadeiro Deus que, de facto, idolatram: os oligopólios, as transnacionais; a guerra como instrumento da democracia, a guerra como garantia da liberdade e da virtude, a que chamam o mercado “livre”. Não nos esqueçamos que foi desta estirpe que sobressaíram as vozes mais cultas e eruditas exigindo a chacina dos communards em 1871. O significado e poder da obra de Saramago estão patentes na polarização que, mesmo na hora da sua morte, conseguiu prolongar entre os que o têm como amigo e aqueles outros que temem a influência que continuará a espalhar pelo mundo. Mário Tomé |
A Comuna 33 e 34
A Comuna 34 (II semestre 2015) "Luta social e crise política no Brasil" | Editorial | ISSUU | PDF
A Comuna 33 (I semestre 2015) "Feminismo em Ação" | ISSUU | PDF | Revistas anteriores
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