A Esquerda Democrática é uma ala da Direita? Versão para impressão
Terça, 14 Dezembro 2010

Virar à Direita atirando ao Centro

Dizer que PS e PSD têm (mais novela, menos novela) desenhado a configuração de um bloco central priveligiador de interesses económicos e financeiros, não é novidade para niguém. Dizer que o espaço político que separa o PS do PSD é cada vez mais pequeno não é mais do que a constatação do dia-a-dia. Percebemos cada vez mais palpavelmente que naquilo que é a arrumação partidária no espectro político português, o PS se qualifica cada vez mais como a ala esquerda da Direita portuguesa e não como uma esquerda moderada ou reformista.

Recolher dados para qualificar esta conclusão não é um exercício exaustivo: podemos lembrar as medidas dos PEC's onde o PSD esteve sempre conivente com o PS. Cada um destes pacotes de austeridade era declaradamente uma posição dentro da luta de classes. PS e PSD juntos optando pelos interesses da burguesia e do plano liberal, contra o Estado Social, o salário e o trabalho. Numa análise mais transversal no tempo, percebemos que o PS foi sempre o grande privatizador quando no Governo. Recentemente, o Orçamento Geral de Estado para 2011, aprovado com a cumplicidade decisiva do PSD, representa um conjunto de ferramentas para que o capital possa acumular cada vez mais: as privatizações previstas abrem campo a novos mercados de acumulação e exploração; o desinvestimento no Estado Social, idem; o ataque aos salários inaugura mais uma fase de forte ataque aos direitos laborais e aos custos do trabalho. PS e PSD caminharam juntos nesta rota e a sua convergência na defesa dos mesmos interesses é total.

O PS é um partido do centrismo, desprendido de ideologia, ocupado naquilo que chama a revalorização do mercado e debatendo o suposto pós-materialismo... É um partido que, excluindo-se a nomenclatura, desistiu da esquerda e está interessado em fazer cumprir os interesses da burguesia, aliando-se em bloco central quando isso é necessário.

São estas mesmas conclusões que perpassam no livro de Augusto Santos Silva. Este manual político para a definição do PS é decisivo para perceber onde se posiciona hoje este partido e quais as suas linhas de pensamento. E aquilo que resulta da leitura é a inflexão do PS à direitaMais uma vez, nomenclaturas à parte.

 

A esquerda considera igualdade como limitador da liberdade?

Para Augusto Santos Silva, a “esquerda democrática” (obviamente, sinónimo de Partido Socialista, neste livro) deve valorizar a aprendizagem e experiência adquirida no contacto com outros quadrantes políticos. À direita, aprendeu a “revalorização do mercado”, a valorização da “segurança” e da rede de apoios primários. Do centro apreendeu as práticas demoliberais, enquanto à esquerda vai apenas buscar os pressupostos do pós-materialismo.

Ora, este pressuposto sobre as aprendizagens necessárias com todos os quadrantes políticos defende doutrinariamente a valorização do mercado e do liberalismo como política económica, admitindo que esta é uma posição importada da doutrina da direita. À esquerda ficam os temas do pós-materialismo, o que cumpre vários objectivos: 1) deixa a política económica totalmente predada pelas políticas de direita; 2) nega a luta de classes e as causas materialistas, atomizando o indivíduo e quebrando-lhe a força que advém da sua organização social como classe; 3) pretende que à esquerda a única discussão possível seja a das “liberdades individuais” e a da sustentabilidade e protecção ambiental, ambas desprovidas de uma óptica de luta de classes (que existe nestes temas!) e baseadas na responsabilização individual.

Este objectivo e comportamento do PS não é o único que fica exposto com o breviário doutrinário de Augusto Santos Silva. Valerá a pena determo-nos um pouco nas suas considerações sobre a liberdade vs. Igualdade e nas suas suposições sobre a apologia (fora de tempo) das práticas da terceira via.

A assumpção de que o PS flectiu à direita e que esse caminho é irreversível vem acompanhada de uma tentativa de explicação: para se ter liberdade é preciso sacrificar a igualdade! É esta falácia que acompanha a linha de justificação para as políticas aplicadas pelo PS. Curiosamente, este debate sobre a liberdade acontece num livro que não se consegue libertar da clara vocação de justificação teórica da acção governativa. Acreditar que liberdade e igualdade são mutuamente exclusivos é ter uma percepção limitada daquilo que será um partido ou governo que luta pela implementação do socialismo.

O caminho da esquerda socialista e moderna não é optar entre liberdade e igualdade; é querer as duas! A colocação deste falso binómio só se percebe como tentativa de justificação para a cada vez mais afincada política neoliberal do PS. Quer, assim, fazer-nos crer que à medida que o seu Governo e o seu partido sacrifica as políticas sociais e de direitos laborais (igualdade) promove mais liberdade. É uma equação quântica, mas vamos a ela!

Colando a esquerda igualitária a práticas e regimes totalitários, Augusto Santos Silva tenta ensaiar o absurdo ao dizer que toda a esquerda que defenda a igualdade a 100% é uma esquerda totalitária. Coloca o leitor perante um problema: quer liberdade ou igualdade?

Nós - que queremos uma quebra com o regime para que se implementem políticas de classe redistributivas da maia valia e em combate com a exploração da força de trabalho, com a especulação e com a apropriação privada de bens, mercados e serviços essenciais às pessoas e às economias – dizemos, sem tibiezas, que queremos as políticas de igualdade sem perder a liberdade. Por isso defendemos a democracia representativa e o reforço da democracia participativa; por isso defendemos um Estado plural, parlamentar e pluripartidário. Por isso defendemos maior democracia, também em Portugal. Por isso, defendemos o referendo ao Tratado de Lisboa. O Governo PS não o quis e fugiu à auscultação popular. Impôs um Tratado com consequências profundas no dia-a-dia de cada cidadão, recusando-se a esse debate e a essa forma de democracia que seria o referendo. Por querermos mais democracia e liberdade é que defendemos o método proporcional nas eleições, potenciando assim a democracia representativa. O PS não só não o quer como tem tentado, insistentemente, alterar as regras da representatividade para caminhar em torno de um modelo bipartidário em Portugal, tentando extinguir ou atirar para fora do parlamento os partidos com menos deputados.

E por isso dizemos: a esquerda socialista não se concebe pela opção entre liberdade e igualdade, como se fossem dois modelos diferentes. A esquerda socialista luta por esses dois valores pilares de uma democraia, porque não há socialismo sem igualdade, como não há socialismo sem liberdade.

 

Esquerda moderna: valorizar o mercado e negar a luta de classes?

No livro Os valores da esquerda democrática diz-nos o autor que “cada pessoa é um sujeito: não é mero produto, ou portador, ou agente de uma determinação que lhe seria totalmente transcendente” (2010: p.61).

Esta frase, que transcrita isoladamente pode não ter grande significado, representa muito da doutrina de Augusto Santos Silva e do PS. Mas vejamo-la entroncada com uma outra afirmação, de Anthony Giddens:

“A classe deixou de ser experimentada, em grande parte, como tal, mas como limitações (e oportunidades) que emanam de diversas fontes. A classe é individualizada e expressa através da “biografia” do indivíduo, cada vez sendo menos sentida como um destino colectivo (1999: p.125).

Ora, aquilo que dizem estes autores, afinados pelo mesmo diapasão, é que vivemos um momento em que as classes já acabaram. O atomismo e o individualismo são a única forma de organização social. Este é, inclusivamente um pensamento recorrente naquilo que Santos Silva escreve, desde o momento em que classifica as revoluções sociais como forma de congelamento do progresso e da história (2010: p.56) até ao momento em que nos diz que a esquerda deve estar virada essencialmente para a procura de consensos (2010: p.104).

Logo no início do livro de Santos Silva é citado Alain: “quando ouço alguém dizer que não faz sentido separar esquerda e direita, a primeira ideia que me ocorre é que se trata de uma pessoa de direita”. Poderíamos, a esta altura, acrescentar: quando ouvimos alguém dizer que não faz sentido falar-se em classes, a primeira coisa que me ocorre é que se trata de uma pessoa pertencente à classe dominante.

E é isso mesmo que a doutrina do PS representa: a tentativa de legitimação política da classe dominante. Ainda que repitam as teorias do fim da história, ainda que sirvam de caixa de ressonância para aqueles que auto-proclamaram o fim da luta de classes, a verdade é que esse é discurso bacoco para que possam seguir o seu caminho na prossecução e execução de um plano liberal-burguês, obviamente um plano de classe. Não é por acaso que se defende que essa suposta esquerda democrática deve ter como uma das missões principais a busca pelo consenso. Ora, nos consensos ganham aqueles que detêm o poder e que, por isso, têm a força de fazer os outros vergar às suas imposições e anseios.

E voltamos assim ao ponto em que começamos este artigo: a doutrina do PS encosta-o à direita; as suas opções políticas assim o demonstram. Pretende neste momento, e depois de uma crise global ter mostrado a falência também do social-liberalismo, retomar o caminho da terceira-via e voltar a trazer os conceitos do fim das classes, de valorização do mercado e de pós-materialismo.

 

Um regresso à Terceira Via?

É curiosa esta tentativa de Augusto Santos Silva em tentar resgatar o PS para a Esquerda, através de um regresso à teoria política da Terceira Via. Em primeiro lugar, porque chama a atenção o facto do pai dessa política não ser sequer citado em todo o livro. Giddens bem poderia reclamar o pagamento dos direitos de propriedade intelectual de grande parte do texto, na medida em que Santos Silva não lhe acrescenta nada de novo. Aliás, uma das críticas mais demolidoras que pode ser realizada ao livro é a de tentar redescobrir a Terceira Via, numa época em que já muitos lhe registaram o epitáfio.

A segunda linha de análise para o texto é a clara tentativa de definição do que é a Esquerda, a partir dos pressupostos teóricos da Direita. Esta é uma forma clara de despromoção e desclassificação dos valores teóricos de Esquerda, na medida em que os encontra apenas em confronto com a Direita. Mas, como seria inevitável numa abordagem deste cariz, o resultado nunca poderia ser a descoberta da Esquerda. Como é previsível, Santos Silva descobriu o centro e procura rebaptizá-lo.

Por último podemos considerar que este é o livro da desistência: desiste de um aprofundamento político na medida em que se esgota na tentativa da procura da raiz teórica das políticas do governo, mesmo que estas já tenham sido implementadas – é a justificação do caminho, depois deste ter sido traçado; Desiste do Socialismo, porque procurando o chapéu da Terceira Via, faz a apologia do fim da história e da inevitabilidade do Capitalismo; Desiste da realidade, pois nada retira da crise de 2008, enorme derrota ideológica do neoliberalismo.

A verdade é que a crise de 2008 (que hoje ataca Estados e é pretexto para a austeridade) representou uma derrota para o capitalismo mas foi inequivocamente o toque de finados para o social-liberalismo e para as terceiras vias. Hoje, o que se percebe é que os povos, as políticas e os partidos ou optam pelo capitalismo ou optam pelo socialismo. Aquilo que eram os pressupotos social-liberais foram desmontados e mesmo os Governos que se reclamavam dessa via têm, pacote atrás de pacote, desistido de tudo o que é social para deixar apenas o liberal.

Em análise, a terceira via redundou em capitalismo; os seus defensores são agora aqueles que lançam milhares no desemprego, que cortam nos subsídios e nos salários, que privatizam sectores essenciais à economia... Pelo caminho, tentaram impregnar a política com um discurso anti-classe para depois levar a cabo uma política que apenas favorece a acumulação e exploração. Pelo caminho tentaram dizer que à esquerda apenas lhe competia disputar as “liberdades individuais”, as alterações climática e pouco mais do que coubesse no “pós-materialismo”.

Aqueles que se reclamam assim da “modernidade” desta visão são os construtores de uma “esquerda” completamente comprometida com a direita e com a hegemonia de uma classe dirigente que quer manter as políticas liberais como astrolábio das políticas económicas. Aqueles que se reclamam desta “modernidade” trilham um caminho de continuidade na crise, na austeridade, no esmagamento do Estado Social e dos direitos no trabalho. E por muita retórica, falácia e engodo que lancem para tentar justificar o abandono das medidas de igualdade, facilmente percebemos que sem Estado Social e com a precariedade como motor no mercado de trabalho, não existe nem igualdade nem liberdade. Existe sim a exploração e o esmagamento dos de baixo pelos que estão em cima apoiados nas medidas do Governo.

Aqueles que dizem que não compete à esquerda a discussão dos temas materialistas querem, claro está, escapar à discussão sobre as suas próprias políticas de classe e ao seu enlaçamento com os interesses da burguesia.

 

BIBLIOGRAFIA:

Silva, Augusto Santos. (2010). Os valores da Esquerda Democrática – Vinte teses oferecidas ao escrutínio crítico, Coimbra:  Almedina

Giddens, Anthony. (1999). Para Além da Esquerda e da Direita, Oeiras: Celta Editora

Moisés Ferreira

 

 

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