Uma teoria que não é socialista... Apontamentos à esquerda |
Terça, 14 Dezembro 2010 |
Augusto Santos Silva, sociólogo, várias vezes deputado e membro do governo pelo Partido Socialista, publicou em junho de 2010 um livro chamado “Os valores da esquerda democrática. Vinte teses oferecidas ao escrutínio crítico”. Este livro pretende ser uma “teoria normativa” para aquilo a que chama “a esquerda democrática”. Enquanto “teoria normativa” pretende esquivar-se à crítica a que supostamente se oferece no subtítulo. Vale a pena fazer alguns apontamentos críticos à teoria normativa do Partido Socialista escrita por um homem que não é apenas “ideólogo” mas também “prático” da política do PS... Comecemos por um importante sintoma do estado ideológico do PS manifestado logo na primeira tese. A primeira tese afirma que “A dicotomia entre esquerda e direita é o indicador mais eficaz para começar a caracterizar e distinguir correntes políticas”. O problema não está na tese nem na rejeição do binómio igualdade-liberdade como definidores da esquerda e da direita, mas numa das razões para essa rejeição “principalmente, esta ideia é profundamente inadequada do ponto de vista normativo, em particular para os que se reclamam da esquerda democrática e pluralista, visto que desvaloriza drasticamente o eixo fundamental de demarcação com as outras famílias, antiliberais da esquerda” (pp. 9 e 10). Na segunda tese afirma que o centro não existe sozinho mas existe e é necessário para justapor à esquerda e à direita. Ora os elogios e sublinhados das afinidades com o liberalismo e, contrariamente, o esforço de demarcação em relação às correntes políticas à sua esquerda fazem-nos muitas vezes pensar que estamos perante não um “socialismo moderado” mas de um “liberalismo moderado”. Talvez não esse pensamento não seja um equívoco. Na terceira tese afirma que “Para além da oposição entre esquerda e direita, o mapa político também se organiza segundo outras clivagens: entre democratas e autoritários, progressistas e conservadores, moderados e extremistas, cosmopolitas e isolacionistas” (p. 11). Naturalmente que guarda, em cada clivagem, os primeiros qualificativos para a sua presumida “esquerda democrática” e para as correntes que estão à esquerda desta os seus anti-valores. Sendo que vale a pena, sobre este assunto, responder a Santos Silva com as mesmas palavras que usa a páginas 65 e 67 “A desqualificação moral dos adversários, a reclamação da pureza para uns, remetendo os outros para lugar impuro, a recusa de ouvir ou responder, são atitudes perigosas e, às vezes, de coloração totalitária”. Esta insistência em colocar a esquerda que existe à esquerda dos PS's no saco do “Totalitarismo” e afins é uma perigosa tendência europeia dos nossos dias. Neste novo texto doutrinário aparece apenas uma versão moderada dessa vaga, mas tal facto é digno de nota. Essas vagas que vêm da direita mas que tendem a conquistar espaço político colocam o rótulo de anti-democrático ao socialismo de esquerda e o comunismo e querem virar a identidade política europeia de anti-fascista para anti-comunista. Ainda a este respeito, é importante dizer que a luta política entre socialistas e capitalistas é entre modelos socais/políticos/económicos: tanto os capitalistas quanto os socialista defendem estes modelos como sendo aqueles que consideram os melhores ou os mais justos ou os mais livres para a humanidade. Embora a razão do interesse da humanidade esteja, do nosso ponto de vista, do lado socialista e o capitalismo deva ser combatido, a opinião pró-capitalista deve ser vencida mas respeitada. Ou seja, quer as democracias capitalistas quer as futuras democracias socialistas devem acolher partidos de ambas as orientações. Já relativamente aos fascistas, as suas propostas são, por definição, anti-humanistas, sem qualquer patamar que lhes possa permitir a participação na democracia. É por respeito à democracia que não podemos respeitar nem tolerar partidos fascistas. Retomando a teoria normativa da dita “esquerda democrática”, afirma Santos Silva, a páginas 33, que “é na esquerda que o Estado encontra os seus maiores defensores” falando “de um Estado transformado pela pressão da esquerda e o seu compromisso pós-Segunda Guerra com a democracia-cristã”. Colocando “ênfase na centralidade dos direitos sociais” que considera ir “a par com a atribuição do Estado da responsabilidade da provisão de serviços públicos capazes de satisfazer necessidades e promover prestações realizadoras de tais direitos”. Será interessante recapitular, mais pormenorizadamente que Santos Silva, qual a origem do Estado social europeu. Do nosso ponto de vista, é mais assim: o forte movimento operário e a necessidade de garantir a lealdade deste movimento no contexto da Guerra fria, a necessidades de mão de obra qualificada e diferenciada a nível técnico e superior, a reconstrução europeia e a necessidade de relançamento económico pelo desenvolvimento da produção e do consumo interno: foram factores geradores da herança social europeia. E no quadro desse Estado social europeu havia uma perspectiva da conquista ininterrupta e gradual de direitos sociais a caminho do socialismo. Ora, bastou o desenvolvimento de tecnologias e a mudança na relação de forças para a burguesia “virar o bico ao prego” logo a partir dos anos 80. Depois disso e com a queda do muro de Berlim e o colapso da União Soviética (1989/91), a alternativa socialista deixou de ser um horizonte plausível para a maioria das pessoas e o Neoliberalismo tornou-se hegemónico: o Estado Neoliberal foi proclamado o modelo do Fim da História. E qual foi o papel dos PS's da Europa neste processo? Não foram os sociais-liberais quem melhor levou a cabo o projecto iniciado pelos neoliberais? Diz Santos Silva que compete ao Estado “Assegurar às gerações por vir as condições de usufruto e partilha de bens que consideremos comuns, escassos, frágeis e preciosos” e “objectivo das políticas públicas acrescentar aos bens recebidos os que é suposto que a humanidade, em cada tempo, vá construindo” (p.37). E afirma ainda que “A esquerda democrática (…) encara a colectividade não como coesão pressuposta mas como coesão conquistada, em resultado das tensões entre as diferentes forças e interesses que constituem a sociedade pluralista” (p.55). A questão é: de que lado está, nessa luta entre diferentes forças, a sua dita “esquerda democrática” quando privatiza sectores estratégicos da economia, quando coloca serviços públicos nas mãos dos burguesia parasitária constituída pelos “donos de Portugal”? De que lado está? Quando a esquerda socialista defende as conquistas do Estado social, os PS's apressam-se a acusá-la de “esquerda conservadora”. A sua lógica é expressa nestes termos: “desconfiam da transformação social: os conservadores de direita (…) e os conservadores de esquerda, comunistas ou radicais, que, a pretexto de que a reforma é sempre remendo e uma legitimação da ordem e uma tentativa de anular a “verdadeira” revolução, desde há muito se tornaram, de facto, porta-vozes oficiosos de interesses beliscados por impulsos reformistas para a modernização” (p. 56). Uma vez mais, há que responder a Santos Silva com as suas próprias palavras: “A ordem económica, social, política, legal, tem de justificar-se – demonstrar que é justa. E esta orientação predispõe a esquerda a integrar a atitude crítica no coração do seu pensamento e valorizar mais (do que a direita) manifestações de insatisfação, resistência, heterodoxia, e até contestação ou dissidência” (p. 30). O problema é que essa “modernidade” que a dita “esquerda democrática”defende é, em resumo, um ataque às conquistas sociais do Pós-Guerra, é um retrocesso na luta social. Ou seja, os PS's chamam “conservadora” à esquerda socialista por defender as posições conquistadas ao nível da participação na economia, nos direitos laborais e nos serviços públicos. Este PS está dominado ideologicamente pelo liberalismo, é cada vez mais o lado esquerdo do liberalismo e não o lado direito do socialismo. É de sublinhar, na linha da sua capitulação a favor do liberalismo, que o PS e os PS's da Europa fazem parte de uma maioria política responsável pela construção de uma União Europeia de estrutura anti-democrática e de um Pacto de Estabilidade e Crescimento sem conceito de desenvolvimento e, portanto, anti-social. A Crise da Dívida Soberana Europeia, iniciada com o ataque especulativo à dívida grega, deu o mote e o pretexto para um ataque profundo aos conceitos e às bases materiais do Estado social europeu. Conduzidos pelo vanguardismo do sector financeiro todos os sectores da burguesia aproveitam esta boleia no combate às conquistas civilizacionais do Pós-guerra. É especialmente nestes momentos que é necessário afirmar a Alternativa Socialista. Porém, quando afirmamos a alternativa socialista, surgem sempre os apelos ao medo do regresso das ditaduras do socialismo real. Ora, a resposta que temos de dar é constatação do facto de os temidos burocratas vermelhos estarem já no poder, na China. À sombra de uma bandeira vermelha, aplicam uma colossal extorsão da mais-valia, praticam o chamado 'capitalismo com valores asiáticos'. Esse é o perigo, o capitalismo encontrou um modelo de Estado e economia que coloca pressão negativa sobre as conquistas da democracia e do socialismo, favorecendo nomeadamente o dumping social e a destruição do Estado social europeu. E, nesta luta, de que lado está a dita “esquerda democrática”? Tanto quanto sei, a fazer “negócios da china” com a sua direita para melhor defender os interesses dos “donos” de Portugal, da Europa e do mundo. Isso não é ser socialista. E o que entendemos nós por Socialismo, então? Para enquadrar a resposta, podemos dizer que o movimento socialista moderno nasce com a teoria da mais-valia de Karl Marx. O movimento da classe trabalhadora fica munido com uma teoria que identifica a divergência de interesses entre a classe explorada e a classe que se apropria da mais-valia. O socialismo, nesta perspectiva, não é um um tipo ideal, não é uma utopia; o socialismo, nesta perspectiva, é parafraseando Marx o movimento real para a superação do actual estado de coisas, ou seja, para a superação do capitalismo e de todas as opressões que impedem a emancipação humana. Neste sentido, embora seja fundamental a questão da divergência de interesses entre exploradores e explorados (ou seja, a ideia da luta de classes), o socialismo não se esgota nessa dimensão. Podemos igualmente falar num Acervo Socialista, ou seja numa acumulação histórica de lutas, reivindicações e conquistas dos movimentos populares. Quero com isto dizer que as lutas pelo voto directo e secreto, pelo pluralismo, pela liberdade de expressão, as lutas anti-imperialistas e anti-militaristas, as lutas feministas, as lutas LGBT, a ecologia; todas essas lutas devem ser encaradas como parte do acervo socialista de conquistas e reivindicações e não como meros frutos da tática ou de um etapismo revolucionário. É necessária uma verdadeira alternativa socialista, claramente à esquerda da ideologia dominante no PS, mas evidentemente com a força de todo o povo de esquerda que ainda vota PS. Não há alianças governativas aceitáveis com este “liberalismo moderado” que se mascara de “esquerda democrática”. O FMI aterrou no Largo do Rato, para virar à esquerda o caminho é outro. Bruno Góis
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