O socialismo como um fim Versão para impressão
Sexta, 07 Janeiro 2011

Augusto Santos Silva, buscando o papel de teórico oficial do PS, depois de ter sido o redactor da Declaração de Princípios do partido, oferece ao escrutínio crítico o duplo decálogo, os 20 mandamentos do “centro-esquerda”. O escrito não pretende ser, em caso algum, uma obra socialista. A inspiração do autor é cristalinamente de ruptura com os postulados originais do Socialismo, até da 2ª Internacional, quanto à propriedade, ao Estado, à crítica das armas. O abandono do reformismo socialista e o acolhimento do “híbrido centrista” é manifestamente o propósito de catequese das fileiras dos degenerados (no sentido literal de não terem género) partidos socialistas, social-democratas ou trabalhistas.

O texto “Os Valores da Esquerda Democrática” é formalmente hermético, contido nos vocábulos, quase silogístico. A densidade da sua abstracção contínua faz lembrar muito dos manuais dos anos 70 e 80 da academia soviética das ciências. Repare-se que a análise daquilo que ASS pensa ser a boa teoria política actual, matriz do progresso da história social, não parte de qualquer análise do nosso tempo, da economia, do estudo das classes, das nações, dos continentes, não se alicerça sequer em factos marcantes e próximos da história política. Os “Valores” de Augusto Santos Silva não partem de uma leitura (sequer a sua, dele) da realidade contemporânea, ou de um balanço histórico das realizações da sociedade, ou da difusa civilização.

Não. ASS fez um exercício, exigente concede-se, de leitura interna de doutrinas, de conexões e desconexões de pensamento, ou até de filosofias gerais. É quase um enciclopedismo do bouquet doutrinário existente (ou remanescente para o conceptista). A isto chama-se, vulgarmente, escolástica. Convenhamos que conseguir definir, com a precisão do grau de longitude e latitude, o centro-esquerda, só por determinação escolástica poderia atingir o objectivo. O eixo da Terra é imaginário mas é material porque a ele se reporta a rotação do planeta. O centro-esquerda é material, obscuro e variável, contudo só existe como um ponto constante graças à imaginação de um publicista…

Apesar de ser um escrito de combustão lenta não deve ser subestimada a listagem das várias fontes onde supostamente se “encaixa” o centro-esquerda.

ASS expõe a curiosa contradição de valorizar, e justamente, a revolução burguesa contra o Antigo Regime, dela fazer fluir algumas das conquistas da democracia moderna, e ao mesmo tempo demonstrar todo o seu horror pela revolução socialista. A violência da revolução burguesa foi incomparavelmente maior que a revolução de 17, em qualquer das versões de contabilidade mais mortífera e destrutiva. A revolução francesa exportou as guerras napoleónicas, e todas as outras que se seguiram em vários continentes até à afirmação absoluta do sistema capitalista. A guerra civil e o terror de Outubro soviético, de que se discorda, não têm paralelo nessa confrontação, nem sequer próximo.

É estranho que o sociólogo entenda que a violência exercida em nome da burguesia foi progressista, a violência exercida em nome dos trabalhadores foi execrável. Sou daqueles que condeno o desvio estalinista do Socialismo, como no século XIX muitos condenaram os desvios do terror das revoluções burguesas. Não podemos é, em coerência, pretender que há uma violência parteira da história (para usar a expressão de Marx) e outra violência que “congelou” a história. Ninguém consegue desmentir (embora com valorações díspares) que as chamadas realizações do estado-providência, o mítico “estado social”, montra europeia, pese a luta dos trabalhadores da europa ocidental, não teria existido sem o medo do comunismo, do vermelho do lado lá. De tal sorte que a queda da URSS, já tardia, fez soar as trombetas para desmantelar o estado-providência, processo reaccionário em curso há vinte anos, do qual ASS também é partícipe. Compreender que a URSS era um fóssil do Socialismo e um regime de concentração não ilude o papel que as revoluções dos trabalhadores tiveram na história. Sem elas não haveria direitos do Trabalho, nem os mais elementares.

Desse ponto de partida, na democracia liberal, ASS desenhou (com a ajuda da sociologia, claro está) a engenharia do acordo, do pacto sobre o estado, sobre os serviços, sobre a economia, sobre o nível de liberdade – a pactologia, eis a doutrina do centro-esquerda.

Essa pactologia, à qual não falta a auto-reclamação de uma atitude moderada, diz-se que inspirada em Aristóteles, e uma ferramenta de utilidade política, a antropologia, que se há-de distinguir pelo seu finalismo optimista. Tudo isso culminou na aprendizagem com a direita dos valores de mercado e das políticas de segurança, assumidamente o diálogo preferencial do “centro-esquerda”. “Aprender com a direita” é a expressão autoral. Com a esquerda em geral, o “centro-esquerda” não tem nada a aprender, apenas é possível, talvez, umas convergências numas questões pós-materialistas (?) e dependendo da circunstância de conjuntura, não vá o diabo tecê-las. Porém, quem quererá revalorizar o mercado com o PS? Quem quererá aprender segurança com a direita pela mão do PS? Qualquer partido conservador burguês desempenha muito melhor a tarefa, convenhamos. Isso é de uma evidência tão cristalina que até arrepia que ASS nos queira alocar este novo chip. A peça é totalmente estranha à equipagem dos partidos social-reformistas. A confusão do intelecto deriva da dificílima situação em que o PS, e os partidos da mesma constelação na UE, se encontram por terem sido os gestionários das privatizações e do reforço penal do estado, e verem chegar a hora de passar a pasta aos partidos que genuinamente representam o capitalismo privado. O texto “Os Valores da Esquerda Democrática”, tão fértil em secções, alíneas e chavetas sobre o poliedro da criatura política “centro-esquerda”, não tem nem uma página a explicar como e quando se impede que a economia de mercado não seja “a sociedade de mercado” que, efectivamente, tende a ser por inteiro. Nem uma proposta, nem uma medida prática, algo que fizesse sentido no “capitalismo regulado”, que parece ser a “oração das almas” do autor. A aprendizagem com a direita é a cadência da integração no compromisso liberal e privatístico. Essa é a matriz reciclada do PS.

O trabalho de ensaio que damos nota, na sua dimensão teórica, na maior crise estratégica do reformismo no último século e meio, tenta apenas um GPS de sobrevivência. A ironia das coisas é que perante a ofensiva neoliberal, a pretexto da fragilidade das dívidas soberanas na zona euro, o governo do partido socialista até mesmo as poucas “políticas sociais” de redistribuição amputou. Mau grado até a explanação neste livro da “solidariedade colectiva” que faria afinal a “centralidade dos direitos sociais”. Não sei se o programa do PS, mesmo aquele que data de 2009, social-liberal de estirpe, está hoje em estado de emergência ou de sítio. Sei, sem dúvida, que ninguém vê qualquer diferença nos reais programas de austeridade de todos os políticos europeus. O diabo encontrará o contraste de Barroso ou Zapatero, ou Sócrates.

ASS entende que “a expressão esquerda democrática exprime as correntes das esquerdas para as quais a democracia é um fim em si mesma e não um mal menor”. Na verdade, também pertenço a uma esquerda que entende ser a democracia um fim em si mesmo. A diferença é que a esquerda socialista também acha o socialismo um fim em si mesmo e não o mal maior. De facto, o que hoje nos diferencia não é a democracia mas o socialismo obtido por uma maioria social e política, plural e constituinte. Isso é a diferença.

Adopte-se esta acepção dos fins em si mesmo só para combinar, nos mesmos termos, democracia e socialismo. Contudo, os objectivos do progresso social e da eco-garantia são sempre a atracção do que há-de vir numa história sem pontos finais.

Luís Fazenda

 

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