Bases políticas para aprofundar a democracia local Versão para impressão
Domingo, 02 Outubro 2011

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O Bloco é, desde a fundação há 12 anos, um fenómeno político em Portugal e na esquerda europeia, um verdadeiro “caso de estudo”. É obra, no espaço de dois anos, duplicar a votação e o número de deputados e agora vê-los reduzidos a metade. É compreensível a “euforia” de Setembro de 2009, assim como a “depressão” de Junho de 2011. Mas não é desejável a adopção de um comportamento bipolar ou de uma trajectória errática. Vimos de longe e queremos ir ainda mais longe…

Entre as causas da derrota eleitoral de 2011, umas são de ordem conjuntural e outras estruturais. Sem ignorar as primeiras, este artigo concentra-se nas segundas, em especial sobre as debilidades na intervenção política local, na militância e organização bloquistas. Já em 2009, no curto espaço de quinze dias entre as legislativas e as autárquicas, estas debilidades tinham saltado à vista.

Perante as reais dificuldades no terreno, não nos conformámos. Recusamos o estereótipo de que “o Bloco é um fenómeno urbano, sem capacidade de penetração no Alentejo, com o espaço ocupado à esquerda”, o que aliás foi desmentido pelos resultados eleitorais: quer em 2009, quer em 2011, as percentagens nos distritos de Évora e Beja igualaram ou até superaram ligeiramente a média nacional.

Um partido da esquerda popular e socialista, combativo e plural, precisa de criar raízes fortes em todo o país, assentes nos movimentos sociais, em espectro amplo, pela luta toda: laboral, estudantil, ambientalista, feminista, imigrante, LGBT, etc. Esta luta global precisa de expressão política também local, através de uma esquerda moderna, capaz não apenas de ir resistindo, mas de disputar terreno ao social-liberalismo.

Este caminho, árduo e complexo, não exclui uma política de alianças. Mas a unidade à esquerda exige, em primeiro lugar, plataformas políticas sólidas e coerentes. A segunda questão é com que forças nos poderemos aliar.

Do ponto de vista programático, analisemos as questões essenciais da actualidade: a privatização da água, através do monopólio Águas de Portugal; a extinção de municípios e freguesias, mantendo na gaveta a regionalização; e a nova lei eleitoral das autarquias locais, há muito cozinhada entre o PSD e o PS.

 

Privatizações – Águas de Portugal e não só…

O processo de privatização da água, um bem essencial à vida designado como “o petróleo do século XXI”, prossegue a diferentes velocidades. Alguns municípios já cederam a gestão da água a privados.

O Cartaxo andou recentemente nos telejornais devido aos protestos da população contra os aumentos brutais nas tarifas da água. A Câmara PS e o consórcio luso-espanhol Aquália/Lena celebraram em Março de 2010 um contrato de concessão, durante 35 anos e a troco de 20 milhões de euros, à Cartágua – Águas do Cartaxo, SA – da exploração e gestão dos serviços públicos de distribuição de água e de drenagem de águas residuais.

Algumas dezenas de municípios enveredaram por este caminho aventureiro que, além do sector das águas, se estende à recolha dos lixos e a tudo o que permita algum encaixe financeiro imediato, alienando competências próprias dos municípios e proporcionando bons negócios a empresas, em cujas administrações é possível encontrar antigos autarcas. Nem só ministros têm reformas douradas…

Mas a via predominante para a privatização deste sector estratégico passa pela Águas de Portugal – AdP, SGPS, SA – e foi laboriosamente preparado ao longo de uma década. Sócrates, então ministro do Ambiente, foi o pioneiro da engorda da AdP, à custa das competências dos municípios, preparando o actual processo de privatização com que o PS está comprometido, através do memorando da troika.

Mais de 200 municípios, cobrindo cerca de 80% da população (ver mapa AdP), 

MapaAdP

estão amarrados a consórcios regionais em que a AdP detém 51% do capital que irá passar para as mãos de privados. Em geral, estes consórcios obtiveram a concessão da captação e tratamento da água “em alta” que depois vendem a cada município, segundo o critério neoliberal que faz reflectir os chamados “custos reais” sobre o consumidor.


Os municípios que insistam em praticar tarifas sociais da água verão disparar as dívidas à AdP. Assim, no último ano, as tarifas da água duplicaram em média mas as dívidas à AdP não param de crescer. Évora, a maior Câmara do Alentejo, acumulou uma dívida de mais de 6,5 milhões de euros à Águas do Centro Alentejo, SA e ameaçou retirar-se deste consórcio, a que o executivo PS aderiu em 2003 e no qual detém 26,84% do capital – absurdos da moda neoliberal da “empresarialização”…

Também o PCP, não obstante declarações sonantes de Jerónimo de Sousa sobre a adesão do Redondo à Águas do Alentejo Centro – “perdemos uma Câmara, mas não perdemos a honra” – avalizou a adesão por 50 anos de mais duma dezena de municípios CDU à Águas Públicas do Alentejo, SA, igualmente controladas a 51% pela AdP.

Para tentarem fugir ao estrangulamento financeiro, a opinião expressa por alguns autarcas é entregarem à AdP também a distribuição de água “em baixa” – uma possibilidade ardilosamente introduzida nos estatutos de diversos consórcios regionais.

Isto é, os cidadãos passarão a pagar muito mais cara água de pior qualidade e nem se podem ir queixar à Câmara, pois esta já alienou o controlo democrático sobre a água. Algo de semelhante se passou com a EDP: também a distribuição pública de electricidade é uma competência dos municípios, há muito cedida a esta empresa monopolista, hoje privada, com tarifas exorbitantes e sujeitas à taxa máxima de IVA.

Os arautos da privatização procuram apresentá-la como “inevitável” e “a única alternativa” para aceder aos fundos comunitários indispensáveis aos grandes investimentos nas redes de distribuição de água. Mas a experiência mostra que, esgotado o financiamento público (nacional e comunitário), a gestão privada deixa degradar as redes e faz disparar as tarifas, em nome do lucro máximo. Por absurdo, a privatização das águas chega a Portugal depois de Londres e Paris as terem remunicipalizado, perante o desastre das concessões privadas!

É falso que não existam alternativas: Almada e outros municípios da península de Setúbal mantêm o controlo dos sistemas de abastecimento público e não cederam à transformação dos SMAS em empresas municipais. E a Águas do Ribatejo, EIM é um bom exemplo de associativismo intermunicipal, sem privados nem Águas de Portugal, englobando câmaras com diferentes cores políticas: Salvaterra de Magos (BE), Benavente (CDU), Almeirim, Chamusca, Coruche e Torres Novas (PS). Curiosamente, Santarém (PSD) e o Cartaxo (PS) retiraram-se desta empresa intermunicipal, com os resultados que estão à vista!

Além de praticar tarifas inferiores à média nacional, a Águas do Ribatejo obteve em 2009 a confirmação de mais 15,2 milhões de euros de financiamentos a fundo perdido do Fundo de Coesão, garantindo cerca de 44 milhões de euros para obras a desenvolver até 2015, num investimento que ronda o total de 75 milhões de euros.

Em nome da democracia e da defesa do interesse público, urge travar o crime económico, social e ambiental da privatização da água. Assim, faz todo o sentido a proposta de referendo à privatização da Águas de Portugal que o Bloco defendeu no parlamento.

 

 

Reforma Administrativa: agravar o centralismo, a macrocefalia e a desertificação.

Ainda antes do acordo com a troika, já PS, PSD e CDS se afadigavam na redução do número de freguesias em Lisboa. O Bloco não se limitou a reagir a esta iniciativa e pôs em cima da mesa uma proposta que constava do compromisso eleitoral de 2009: a agregação voluntária das 53 freguesias em 12 Distritos Urbanos, com a vantagem de produzir efeitos imediatos, desde que a Câmara tivesse vontade política para transferir competências e recursos humanos, técnicos e financeiros para estes DU. A coligação PS – PSD insiste em impor a redução de 53 para 24 freguesias (o CDS quer nove…) que, no entanto, terá de esperar pela aprovação no parlamento e só produzirá efeitos a partir de 2013.

Esta atitude proactiva em Lisboa é um exemplo a seguir perante a propalada reforma administrativa, imposta sob o rolo compressor da troika, em relação à qual não vale a pena alimentar ilusões: o objectivo é reforçar o centralismo no país com uma das administrações mais centralistas da Europa. Além da redução orçamental, a direita aproveita para cortar nos “custos da democracia” local, enfraquecendo-a e removendo obstáculos à aplicação de mais medidas antipopulares.

Basta ver o contexto europeu: antes de qualquer intervenção directa do FMI e do BCE, o governo Berlusconi já anunciou a supressão de 29 a 35 províncias, com população inferior a 300 mil habitantes. Para cerca de 1970 municípios (num total de 8094) com menos de mil habitantes, será obrigatória a fusão. Em Espanha, o mesmo desenho, tal como na Grécia, Irlanda, Portugal e onde mais se verá…

No recente Congresso da Associação Nacional de Municípios circulou a ilusão de que a reforma administrativa não afectará as câmaras, mas “apenas” as freguesias. A ver vamos, dizia o cego… E ouviram-se apelos pouco convictos à regionalização que esbarraram no silêncio de Passos Coelho.

É óbvio que a regionalização não está na agenda das troikas nacional e estrangeira, que a remeteram para as calendas gregas. Mas, na resistência a estes planos antidemocráticos, não podemos deixar cair a regionalização, peça essencial de uma reforma administrativa coerente, democrática e descentralizadora.

A eventual fusão de municípios ou freguesias, com critérios numéricos cegos, teria efeitos díspares em diferentes contextos regionais, em meio urbano ou rural, sendo certo que agravaria irremediavelmente a desertificação de dois terços do território.

Na abordagem da reforma administrativa, não nos satisfazemos apenas com alguns flashes, exigimos “ver o filme todo”: competências a descentralizar para as regiões, municípios e freguesias, novas leis das finanças regionais e locais, leis eleitorais, etc. Uma atitude proactiva não pode nem deve confinar-se à mera “engenharia territorial”, aparentemente bem-intencionada, mas que poderia servir como batedor dos planos da troika.

Não há aqui lugar para ingenuidades, o objectivo é reforçar o bipartidarismo e o exemplo de Lisboa é claro: PS e PSD acabam por varrer do mapa as últimas cinco freguesias de presidência CDU. Mera coincidência? Não dá para acreditar, sobretudo quando o novo líder Seguro, mal foi eleito, veio reafirmar a disponibilidade do PS para entendimentos com o PSD e o governo na revisão da lei eleitoral autárquica.

 

Mais participação, não à batota eleitoral e às maiorias “na secretaria”.

A revisão da lei eleitoral para as autarquias locais é uma prioridade para o PS e o PSD há várias legislaturas que, por razões conjunturais, tem vindo a ser adiada. Mas “desta vez é de vez” e a troika vem dar o empurrão decisivo.

Pormenores à parte, ambos pretendem alterar a lei para facilitar a formação de maiorias absolutas, em nome da estabilidade governativa, quer nas autarquias, quer no parlamento.

O PS tem ido mais longe: não quer só atribuir a maioria dos mandatos ao partido que obtenha a maioria relativa, mas também afastar os vereadores da oposição, impondo executivos monocolores. O PS pretende acabar com a eleição directa da Câmara, em nome de uma suposta parlamentarização da vida autárquica, pois o executivo teria de “passar” na Assembleia Municipal. O presidencialismo e a fulanização que hoje marcam excessivamente a eleição da Câmara seriam assim transferidos para a Assembleia Municipal, minimizando o carácter representativo e fiscalizador deste órgão.

No projecto PS, o cabeça da lista mais votada para a Assembleia Municipal será Presidente da Câmara e poderá escolher livremente os restantes membros do executivo, que podem ou não sair dos eleitos. Em vez de vereadores com legitimidade eleitoral própria, passaríamos a ter meros assessores e a Câmara seria reduzida a um gabinete de apoio ao Presidente.

Na ausência de vereadores da oposição, perante uma Assembleia Municipal que reúne espaçadamente e cujos membros têm pouca disponibilidade, a capacidade de fiscalização sobre os executivos seria praticamente anulada. Os escândalos de corrupção e os abusos de poder por parte do “bloco central de interesses” não teriam limites!

A versão mitigada do PSD, embora mantendo a existência de vereadores da oposição, converge com o PS ao atribuir a maioria absoluta “na secretaria” ao partido mais votado, distorcendo a proporcionalidade. Deveremos opor-nos sem tibiezas a qualquer lei eleitoral saída dum acordo entre esta dupla de batoteiros e que representará, seguramente, mais um aleijão na democracia local.

Defendemos a eleição directa da Câmara Municipal que encontra raízes na tradição municipalista portuguesa – a própria designação de Câmara traduz a ideia de representação plural (embora nem sempre democrática) das “forças vivas” locais que extravasa o papel de um simples executivo.

Em paralelo, urge reforçar a capacidade de fiscalização das Assembleias Municipais e de Freguesia face aos executivos, inclusive com a introdução do poder de iniciativa em matérias orçamentais e outras bem definidas.

Mas a nossa prioridade será sempre o aprofundamento da democracia participativa, designadamente através do reforço do papel das organizações populares de base e da regulamentação do direito de petição a nível local, inclusive com a capacidade de convocação de referendos locais por iniciativa cidadã.

 

Convergências só na acção ou com programas claros.

Em relação a muitas matérias, é óbvia a impossibilidade de entendimentos com os partidos da troika. Quem defende convergências com o PS a nível local, terá de explicar ao que vem.

Com o PCP há diferenças significativas que não impedem convergências na acção. Mais difícil é o relacionamento em autarquias onde este dispõe de maioria absoluta e tem práticas de gestão pouco consentâneas com a democracia participativa, às quais nos opomos.

Estas diferenças políticas substanciais não inviabilizam coligações ou acordos pontuais, respeitando a identidade de cada força política, em situações bem identificadas: em 2009, a Convenção admitiu o caso do Funchal.

Uma ou outra excepção, em determinado concelho ou freguesia, não se pode transformar em linha, sob pena de o Bloco abdicar da sua implantação local, o que seria desastroso e agravaria uma das nossas fraquezas estruturais. Sem uma rede consistente de activistas sociais e de eleitos locais não é possível enraizar e multiplicar a nossa expressão eleitoral.

Além da plataforma política, outra questão básica de qualquer política de alianças, até para os possíveis aliados, é saber quais são as nossas forças. Sem “tropas aptas para o combate”, nunca haverá política de alianças, apenas submissão e dissolução.

A acção política independente do Bloco é indispensável para combater a despolitização da vida autárquica, reduzida a “critérios de gestão” que pouco distinguem “esquerda” e direita – na questão da água, por exemplo, o pragmatismo escancarou as portas à privatização. Dizer não ao consenso neoliberal é também afirmar o valor da diferença em democracia.

Não adianta meter a cabeça na areia ou inventar passes de mágica para escapar às agruras da vida. A nível local, o Bloco tem de desbravar o seu caminho. As eleições autárquicas, a dois anos de distância, serão um óptimo teste de resiliência, isto é, à nossa capacidade de “dar a volta”, transformando as fraquezas em forças, o que implica muito trabalho.

É preciso dar um novo impulso à segunda metade dos actuais mandatos autárquicos, na qual vamos enfrentar duríssimas medidas da troika. A extinção de autarquias é apenas o corolário dos encerramentos de escolas, serviços públicos de saúde, postos dos CTT ou linhas ferroviárias. O Bloco tem de estar presente e crescer na mobilização popular.

Urge reforçar a intervenção política, orientada pelas coordenadoras distritais e concelhias; dar maior visibilidade aos autarcas, que não podem ficar confinados aos órgãos para que foram eleitos; intensificar a troca de experiências e a coordenação autárquica nacional, com mais apoio político e técnico; promover novas Jornadas Autárquicas nacionais e regionais.

Em paralelo, não é cedo para iniciar a preparação das listas para as próximas autárquicas. Em cada concelho, a presença no máximo número de freguesias é, desde logo, uma garantia de melhores resultados eleitorais e, sobretudo, reforça a nossa implantação local. Por aí passa, também, a tão propalada renovação do Bloco.

Rejeitamos o sectarismo e a auto-suficiência, abrindo as listas a independentes. Em casos bem determinados, poderemos apoiar projectos de cidadãos com dinâmica própria (não confundir com listas partidárias encapotadas) que se identifiquem com os valores da democracia local e da participação cidadã. Mas a regra só pode ser: listas do Bloco.

No fundo, trata-se apenas de continuarmos fiéis ao nosso manifesto fundador: “não esperamos nada do PS e não ficamos à espera do PCP”.

E venham mais cinco, muitas vezes!

Alberto Matos

Este artigo de “A Comuna” n.º 26 desenvolve o que foi publicado on-line, com o título “Aprofundar a Democracia Local”, em 26/07/2011.

Em vez da tradicional designação de “poder local”, prefiro a “democracia local” – afinal, o povo é quem mais ordena!

 

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