Será que acabou? |
Domingo, 02 Outubro 2011 |
O governo Berlusconi, por causa da crise financeira e dos muitos escândalos, parece destinado ao seu fim. Mas o “berlusconismo”, como ideologia e prática política baseada na corrupção e na “ditadura da imagem”, está longe de acabar. A última votação do Parlamento sobre a autorização para proceder (pela Procuradoria da República) contra o ulterior deputado acusado de corrupção teve lugar no princípio de Agosto, um mês bem quente, quando normalmente as portas das Câmaras estão fechadas para férias. Mas o Parlamento estava em plena actividade: a ameaça financeira alcançava o mercado italiano e o governo tentava acalmar os investidores. O Primeiro-ministro reunia o parlamento para um inusual discurso agostinho; nas horas vagas, tratava-se das usuais vicissitudes penais daquela que dois agudos jornalistas definiram, num best-seller de alguns anos atrás, como a Casta.(1) É a actualidade política da Itália de Berlusconi. O leit-motif de 16 anos de império político-económico-mediático do homem mais rico do pais, que nos últimos dois anos transformaram-se num terrível pesadelo para o próprio líder, arrastado directa e indirectamente por uma série incrível de escândalos de vária natureza: sexuais, financeiros, mediáticos, de quinhões, etc. Tudo isso, fique bem claro, sem que levasse o Primeiro-ministro, ou o seu governo, ou os seus ministros, à demissão; sem que a oposição, dividida, confusa e atingida (nem que em tom menor) pelos mesmos escândalos, conseguisse organizar uma frente coesa e determinada e liderar um movimento popular que obrigasse o executivo a deixar o poder e convocar novas eleições. Tudo isto torna o caso italiano único na Europa e no mundo das “democracias”, aproximando-o muito mais às caricaturais “repúblicas das bananas”. Três anos atrás (2008), nesta mesma revista, revisitámos o estrondoso sucesso do “Popolo delle Libertà”(2) (PdL) nas últimas eleições legislativas do país. Hoje é útil elencar o que aconteceu neste prazo de tempo para ter ideia da deriva moral e cívica da política e da sociedade italianas; da situação de crise de tardo-império que se criou; da Gomorra hoje em dia bem evidente ao mundo inteiro. Vamos a isso, então: Abril de 2009. Eclode um escândalo sexual que atinge, em breve tempo, proporções desmedidas. As fotos de Berlusconi na festa dos 18 anos de uma rapariga napolitana conduzem até ao sistema de “festas” com fundo sexual realizadas na residência romana do Primeiro-ministro, à presença de personagens notórias na opinião pública e de outras ligadas a ambientes da prostituição e da droga. Esclareça-se que a rapariga citada era menor de idade quando frequentava os aposentos de Silvio Berlusconi. O escândalo é acompanhado pelas duras e “barulhentas” declarações concedidas à imprensa pela mulher de Berlusconi, Veronica Lario, que fala de “meninas que se dão ao dragão” e anuncia a separação.(3) Novembro de 2010. Novo escândalo sexual. Através de circunstâncias casuais descobre-se que na residência milanesa de Berlusconi realizam-se numerosas festas com fundo sexual, com a presença de várias mulheres entre as quais menores, como a marroquina Karima El Mahroug, em arte “Ruby Rubacuori”. É o escândalo do bunga-bunga, do nome da dança (na verdade uma prática sexual) a que eram sujeitas as ninfas que participavam (sob pagamento). Presumíveis organizadores dos convívios a deputada da assembleia regional da Lombardia, Nicole Minetti, cuja candidatura foi imposta pelo próprio Berlusconi em 2009 e Emilio Fede, braço direito de Berlusconi na comunicação Mediaset (a empresa de telecomunicações da família Berlusconi). Atrás deste proscénio, de que Berlusconi fora só utilizador final (conforme as opiniões dos seus advogados), existia um verdadeiro sistema de emirado árabe: as escutas telefónicas do inquérito judicial deixam emergir dezenas de raparigas na folha de salários do Premier. Berlusconi, na tentativa de justificar a relação com a jovem marroquina, afirmou que a conheceu sendo ela a neta do então presidente egípcio Hosni Mubarak, criando grave embaraço entre as chancelarias diplomáticas dos dois países. Por esta questão, Berlusconi está a ser julgado por concussão e prostituição de menores. Primavera de 2010. Explode o escândalo da “Protecção Civil”, que atropela homens de confiança do Premier, entre os quais os chefes do Conselho Nacional das Obras Públicas e da Protecção Civil, a que o governo entregara plenos poderes. O sistema é o de troca de favores com empresários do sector das construções. Entre 2010 e 2011. Descobrem-se sistemas de poder, chamados de P3 e P4,(4) orientados para o controlo do sistema das empreitadas públicas através da usual troca de favores e envolvendo alguns dos mais estreitos colaboradores de Berlusconi.(5) As “lojas” também tencionavam definir um sistema de controlo sobre a actividade da magistratura, ao fim de obter notícias acerca de eventuais actividades de investigação. Estes são somente as maiores vicissitudes que mancharam o último governo Berlusconi e que se entrelaçam com outras questões pessoais do Primeiro-ministro, in primis os processos ainda existentes e que o seu governo está a tentar bloquear (até hoje sem sucesso) com numerosas medidas legislativas. Silvio Berlusconi é ainda arguido nos seguintes processos: corrupção judiciária, fraude fiscal, apropriação ilícita de fundos financeiros, além do já citado processo por concussão e prostituição de menores. Além de tudo isso, o governo Berlusconi teve de enfrentar profundas crises: políticas no seu interior e sociais no país. No que diz respeito às primeiras, o seu cume representou em final de Em relação às segundas,(6) a mais grave foi a contestação estudantil e do mundo universitário na sua totalidade à reforma do ensino superior pela Ministra da Instrução Pública, Mariastella Gelmini, e que levou à ocupações e protestos, que redundaram nos três dias de luta e incidentes (sobretudo em Roma) em Dezembro, por ocasião da moção de censura ao governo Berlusconi.(7) Em conclusão desta listagem, parece realmente incrível como o governo tem aguentado até hoje, apesar de o seu líder, Silvio Berlusconi, ter sofrido golpes que dificilmente o levarão a nova candidatura em 2013.(8) Isto foi possível graças a vários factores: no Parlamento, a maioria de apoio ao governo, realmente inexistente no final de 2010 (após a ruptura com Fini), foi reconquistada por ocasião da moção de censura de 14 de Dezembro através da “compra” (postos de relevo em comissões ou secretarias de estado) de numerosos deputados da oposição; muitos dos quais, coisa realmente repugnante, pertencentes ao partido justicialista “Italia dei Valori” (dirigido pelo ex-magistrado Antonio di Pietro), que funda a própria razão política num obstinado anti-berlusconismo. Outra vantagem é representada pela falta de uma oposição coesa, incapaz de guiar os movimentos populares (mulheres, estudantes) que no último ano têm animado a contestação da sociedade civil ao “sistema” Berlusconi; uma oposição onde o maior partido, o Partido Democrático (PD)(9), não pode aspirar a constituir uma alternativa “moral” a Berlusconi, sendo também alcançado por escândalos de corrupção, o último dos quais (Julho de 2011) tocou o braço direito do secretário nacional Pierluigi Bersani. Mas, com certeza, o aliado mais inquietante de Berlusconi é o povo silencioso, aquela maioria dos italianos moralmente corrompida por vinte anos de ditadura mediática do Cavaliere (Berlusconi, como é sabido, controla com as suas sociedades grande parte do sistema da comunicação - tv, imprensa, rádio e cinema – e do mundo publicitário). Ao considerar que quase 80% dos italianos informa-se exclusivamente através da televisão, e que Berlusconi, na sua qualidade de premier e empresário controla 5 dos 7 canais nacionais, percebe-se como a sociedade italiana enfrenta uma dramática queda de valores cívicos que permitem ao Primeiro-ministro poder superar os repetidos problemas pessoais e políticos, podendo contar ainda com um forte consenso eleitoral. Por outro lado, e sobretudo no estrangeiro, parece evidente o drama social italiano, como bem tem evidenciado uma certa intelectualidade muito mais escutada fora que dentro da nação (é o caso, por exemplo, do filme Videocracy do realizador italiano Erik Gandini, gravado em Itália mas produzido na Suécia); drama que o escritor Pier Paolo Pasolini definiu como desastre antropológico, quando o “berlusconismo” estava longe de chegar mas já se tornavam evidentes os efeitos do consumismo.(10) Artigo de Carmine Cassino. Tradução de Mário Tomé ([1]) Gian Antonio Stella, Marco Rizzo, La Casta. Così i politici italiani soni diventati intoccabili, Rizzoli, Milano, 2007, pp. 300. (2) A coligação política, sucessivamente transformada em partido, liderada por Silvio Berlusconi. (3) Em 28 de Abril de 2009. (4) Em referência a um dos maiores escândalos políticos da história republicana italiana, o da P2 (Propaganda 2), a loja maçónica criada pelo extremista de direita Ligio Gelli que, entre os anos ’70 e ’80, chegou influenciar e controlar vários níveis de poder, na base de um programa de “Rinascita Democratica” (renascença democrática) que tinha como principais objectivos: dissolução do multi-partidarismo e implantação de um sistema “bipolar”; monopólio no campo da informação; controle governativo dos bancos; implantação da República Presidencial; controle da magistratura pelo poder político. A téssera n. 1816 pertencia a Silvio Berlusconi, à época empresário de construção e no princípio da sua actividade no sector das telecomunicações. A loja, oficialmente desmantelada pelos inquéritos da magistratura, levou à instituição de uma comissão parlamentar de inquérito, sendo ingente o número de deputados, generais e altos funcionários envolvidos no affaire. (5) O nome mais estrepitoso é o de Denis Verdini, coordenador do “Popolo delle Libertà”, e contra o qual o parlamento recusou à Procuradoria da República autorização para proceder. (6) Particular interesse adquire a luta dos povos da Valsusa, na região de Piemonte, contra a construção de um túnel da alta velocidade (pertencente ao chamado corredor Lisboa-Kiev) naquele território. Mobilização que dura há vários anos, mas que no mês de Julho de 2011 tem eclodido em duros confrontos com poderosas forças policiais por ocasião da abertura da obra. (7) Momento que tem representado, sem dúvida, a passagem mais difícil dos três anos de governo. (8) A este respeito, Berlusconi tem já coroado (Junho de 2011) o seu sucessor, o então Ministro da Justiça Angelino Alfano (38 anos), agora coordenador (carga que substitui a de secretário) do PDL. (9) Fundado em 2007 pela fusão entre católicos liberais (“Popolari”) e os social-.democratas do PDS (herdeiros do “Partito Comunista Italiano”). (10) Pier Paolo Pisolini, Il vuoto di potere, artigo publicado no “Corriere della Sera” de 1/2/1975. |
A Comuna 33 e 34
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