A vida tinha um preço Versão para impressão
Domingo, 02 Outubro 2011

ilustrao de artigo de montserrat abumalham

Ao ler um livro de Tzvetan Todorov, publicado recentemente em Espanha (2010), A Conquista da América. O problema do Outro, pela editora Siglo XXI, deparei-me com uma frase devastadora:

Existe aí uma ligação terrível, pois a compreensão leva ao domínio e ao domínio através da destruição (p.137).

A frase contextualiza-se na conquista do México por Hernán Cortés. Todorov mostra através do texto do conquistador e de outros testemunhos, como Cortés percebe e, até certo ponto, admira os aztecas.

Mas essa admiração e compreensão não o conduz senão ao uso e manipulação dos próprios indígenas em seu benefício, de forma a atingir os seus objectivos, com absoluto desprezo pelas pessoas, a sua cultura e as suas diferenças.

A tese geral do autor consiste em afirmar que a conquista, tal como foi realizada, destaca a mudança de uma mentalidade medieval para um mentalidade moderna, até mesmo contemporânea, na qual o que prevalece não é tanto a vida, o trabalho ou a compreensão da diferença, mas a gratificação imediata do que se ambiciona ou deseja.

Recebemos e-mails nos nossos computadores que, como pragas, nos alertam para as empresas internacionais que esgotam os recursos da floresta amazónica brasileira. As notícias dos jornais ou outros meios de comunicação informam-nos que algumas empresas nacionais, espalhadas por todo o mundo e com prestígio, se abastecem em fábricas onde o respeito pelo trabalho é inexistente e, em vez disso, exploram as "Maquilas" (fábricas têxteis que exploram as mulheres), onde se trabalha em regime de completa escravidão.

A forte especulação que faz oscilar os números dos indicadores nacionais dos mercados bolsistas, bem como o preço do dinheiro, promovendo o crescimento e acumulação do ouro como um valor seguro, muito semelhante aos tempos de Hernán Cortés, é a forma moderna de ignorar que por trás do potencial lucro, não há somente um lucro imediato mas algo tangível, como as pessoas que utilizam o seu talento e conhecimento para produção de bens de todos os tipos.

Ou seja, por trás de tudo o que se produz estão as mãos de pessoas que têm direito a que o seu esforço tenha um preço e, dentro do possível, a um preço justo que lhes garanta uma vida decente.

Desvaloriza-se tudo, enquanto que essa convenção que é o papel-moeda prolifera como a espuma, tornando-se inacessível para o comum dos mortais. Chegámos ao absurdo total no qual o papel-moeda, que é absoluta ficção, se torna na realidade que nos condiciona a todos, enquanto que o único bem livre, a vida, não possui qualquer valor.

Assim, tendo sido essa a aprendizagem que fizemos a partir das formas modernas de colonialismo e conquista, visto de outra perspectiva, este torna-se num conhecimento que é a regressão à mais absoluta infantilidade.

Se a mentalidade ocidental foi construída sobre a compreensão para aniquilar, retrocedemos, em termos de humanização, a tempos que nem sequer podemos denominar como pré-históricos mas como da destruição da história humana. Ou seja, chegámos a tempos apocalípticos, não no sentido da esperança de alcançar um mundo melhor, mas no sentido comum e popular em que tudo é destruído e desaparecerá.

Enquanto lia o livro referido, recordava o trabalho dos tintureiros e tecelões da Guatemala, que empregam meses e muitas mãos para fazer os tecidos que são a base do traje tradicional feminino: o corte (a saia).

Estes tecidos vendem-se a preços irrisórios quando comparados com o vestuário produzido em fábricas clandestinas, ou não, mas que funcionam como um regime esclavagista.

Se umas calças de fato de treino, fabricadas por um sistema predador, custam cerca de dois quetzales (0,20 €) num mercado, o corte, peça de roupa básica, custa entre 300 e 500 (ou mais) quetzales (20, 30 ou 50 €). O salário médio de um mês é gasto numa dessas peças de roupa. Uma peça produzida mecanicamente, que não gera um salário digno, contrasta com o produzido de forma inteiramente artesanal, em situações de maior dignidade e independência.

No entanto, enquanto que uma verdadeira obra de arte é valorizada apenas por aqueles que a usam diariamente, todos os restantes usam uniformemente as calças de fato de treino de dois quetzals (0,20 cêntimos).

Não sei o que diria um economista ou a que teoria recorreria para explicar o fenómeno. Nem sequer posso imaginar o que diria um sociólogo ou antropólogo na certeza, porém, que se no Velho Oeste, esse dos filmes dos índios e cowboys “A morte tinha um preço”, agora é a vida que tem um preço: os lucros daqueles cujo rosto jamais aparecem e de todos nós que por indiferença somos cúmplices.

Neste momento, não podemos dizer que não sabemos o que acontece no Novo Continente, como nos dias de Cortés. Hoje temos toda a informação em tempo real mas possivelmente, tal como aconteceu com Cortés, estamos interessados apenas em compreender e aniquilar.

Tornámo-nos infantis e, tal como as crianças no seu lado mais negativo, somos os grandes manipuladores. Não nos interessam as pessoas, nem as suas vidas inúteis, só nos interessa a gratificação instantânea e estabelecer, conhecendo o melhor possível, os mecanismos de controlo e domínio.

A humanidade mais evoluída transformou-se numa criança tirana. Talvez todos nós devêssemos consultar um psicanalista porque estamos a sulcar a nossa própria destruição.

Montserrat Abumalham

Tradução de Belmira Ferreira

 

Destaques:

Por trás de tudo o que se produz estão as mãos de pessoas que têm direito a que o seu esforço tenha um preço e, dentro do possível, a um preço justo que lhes garanta uma vida decente.

 

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