Reflexão breve sobre os «movimentos sociais» Versão para impressão
Segunda, 03 Outubro 2011

ilustrao de artigo de mrio tom

I.

Uma situação revolucionária exige, não apenas a existência de uma crise da burguesia, por mais profunda que ela seja e por mais revolta que desperte nas massas e acentue a necessidade do movimento social para lutar contra o poder dominante, mas também, e decisivamente, a vontade de a liquidar e de se lançar , com entusiasmo*, na real transformação das relações sociais.

A transformação profunda das relações sociais e entre as pessoas, mais que a mudança (aparente, se aquela não se consumar) de poder constitui a bitola do caminho para o êxito da revolução anti-capitalista.

Essa transformação, já inscrita no movimento revolucionário desde o seu início, desenvolve-se simultaneamente como consequência e como causa efectiva e potencial em cada acto da construção de uma nova sociedade.

Tal transformação decorrente da conquista da direcção política e económica do movimento  social pelos trabalhadores, ou seja a massa assalariada, a partir e através das suas organizações próprias existentes, e as entretanto criadas com tal objectivo , é tornada possível pela unidade na luta e pela apropriação do conhecimento que antes lhes estava forçadamente vedado ou obstaculizado pela organização política, social e económica imposta pelo capitalismo e pelo imperialismo.

Os partidos dos trabalhadores têm a responsabilidade de fazerem a síntese entre o conhecimento científico da realidade e as necessidades e interesses sociais e económicos do proletariado na luta contra o capitalismo, traduzindo-a em propostas políticas que correspondam a cada fase da luta e reforcem e desenvolvam as capacidades do movimento enquanto agente único da revolução. Essa deve ser a sua tarefa por excelência e não a pretensa direcção do movimento social e revolucionário.

Quero dizer que a relação dos militantes revolucionários com o movimento social real e com as suas variadíssimas formas de expressão e organização deve ter como objectivo o desmascaramento racional, inteligente e adequado da ideologia do capital – o mais difícil obstáculo a superar – através do debate e, particularmente, da acção no seio da sociedade em geral e das diversas organizações sociais em particular.

Tal processa-se através da participação activa nas suas actividades; pela polémica política como forma de isolar e vencer as variadas expressões de colaboração de classes, sejam elas de cedência directa à pressão reaccionária dita reformista, ou de aparente radicalismo político que se traduz com mais frequência nas posições ditas libertárias e anarquistas incapazes de dar suporte à luta organizada ou apontando as organizações sociais a granel como aptas a definir o rumo do movimento revolucionário.

Dum certo ponto de vista de «tudo ao molhe e fé em Deus», nas suas expressões mais radicais manifestam-se contra a participação no funcionamento da actual organização político-social ignorando, deliberadamente ou não, que cada situação na sociedade capitalista, é consequência da confrontação permanente entre o proletariado e a burguesia, ou seja que o proletariado também é parte activa, por acção ou por omissão, na criação das condições em que está inserido.

Tais posições, traduzem-se em inoperância real, apenas conseguindo, ou sobreviver à sombra de partidos de que dizem recusar o espartilho ou manter-se como grupos isolados, de opinião e/ou de acção por vezes pontualmente marcante mas ineficaz politicamente, porque inconsequente.

O movimento real é constituído por todas estas partes em presença e o seu desenvolvimento decorre do peso que a acção e a consciência do proletariado tenham em cada momento.

II.

O movimento social comporta todo este tipo de organizações, lado a lado com as organizações tradicionais da luta dos trabalhadores, como os sindicatos e as comissões de trabalhadores e, a um nível político superior, os partidos revolucionários.

Apesar das diferenças profundas que as separam, todas devem ser encaradas como instrumentos da luta de classes cuja importância decorrerá da forma como se inserem na luta concreta dos trabalhadores e/ou como contribuem para o desmascaramento do capital e do imperialismo, como conseguem mobilizar massas e sectores sociais diferenciados.

Sempre no sentido de aumentar o grau de consciência cívica e política de classe através da divulgação do conhecimento: quer através da luta activa, seja ela frontal ou envolvente, quer através da luta de ideias. Em ambos os casos os únicos avaliadores credenciados serão os trabalhadores em função dos seus interesses imediatos e do grau de consciência socialista que vão adquirindo.

O papel dos militantes revolucionários decorre, em grande parte, de como souberem integrar-se nessas organizações e nelas conseguirem inscrever, pela acção e pela luta de ideias, os ideais socialistas e a compreensão científica da realidade como passos indispensáveis para a unidade revolucionária dos trabalhadores.

Diferenças ideológicas ou de opinião, por mais radicais ou sectárias que sejam, não devem impedir a nossa participação individual, com os objectivos apontados, desde que as organizações se afirmem pela luta concreta no confronto contra o capital, o imperialismo e os seus instrumentos de poder.

Só desta forma se contribui seriamente para a capacidade de os trabalhadores irem encontrando os traços comuns que levem à luta unida e, assim, aproximarem-se do objectivo da revolução: a emancipação dos trabalhadores como obra dos próprios trabalhadores.

Os grupos e organizações de intervenção científica, cultural, ecológica, ambiental, pela paz e pelos direitos humanos nas suas várias vertentes, da imigração ao feminismo, aos direitos e liberdade de opção e vivência sexual e familiar, às liberdades em geral, ao ensino universal e gratuito, à saúde, à habitação, ao emprego, etc.; ou simplesmente assumindo-se contra as instituições do capital e do imperialismo, o militarismo, a guerra, o racismo, têm um papel de grande importância desde que ligados à prática, à acção que lhes são próprios.

A intervenção cultural, em toda a sua abrangência, os grupos de acção cultural (lembremo-nos do GAC nos tempos do PREC) com especial relevo para o teatro – o Bloco de Esquerda tem desenvolvido um relevante trabalho neste âmbito, tomando a iniciativa de divulgar a prática teatral com base no «Teatro do Oprimido» ou seja o teatro como ferramenta vocacionada, desde os clássicos gregos, aliás, para a intervenção directa na luta contra a ideologia de classe e contra a política do poder - detém uma grande capacidade de intervenção junto das massas.

O pensamento filosófico em torno dos caminhos para a transformação do real é fundamental. Nesse campo, os comunistas nomeadamente, têm um papel decisivo desde que Marx colocou a questão nuclear: «os filósofos têm-se entretido a interpretar o mundo, quando o que é necessário é transformá-lo». Com esta ideia Marx não atacou os filósofos; atribui-lhes um novo papel, aquele que ele próprio assumiu.

Nessas organizações que cada vez mais se movem e afirmam em rede, desenvolvem importantes processos de debate e polémica na web ou em assembleias quase informais, e tomam decisões muito frequentemente por consenso, dando grande importância ao colectivo, estamos naturalmente como peixe na água. Temos como instrumentos o pensamento teórico, de desafio filosófico, capazes de obrigar ao aprofundamento sério e com objectividade das polémicas ligando-as à situação real, afirmando-nos como práticos da acção.

III

O Bloco de Esquerda, assumindo a tarefa de contribuir para refundar a esquerda europeia, tem orientado o seu trabalho político em cinco sentidos complementares: a proposta política; a legiferação consequente disputando no Parlamento um lugar insubstituível; o enraizamento no movimento (mais ou menos visível, ele existe sempre) espontâneo dos trabalhadores e do povo em geral; criando organização própria como catalisador desse movimento; e o estímulo à participação individual activa dos seus militantes nas mais diversas organizações sociais, cívicas, culturais e de luta dos trabalhadores.

Apesar das dificuldades naturais no desbravar de novos caminhos, novas ideias, novos comportamentos, combatendo conscientemente resistências inculcadas por anos de práticas ultrapassadas, o Bloco conta hoje com um afluxo de militantes libertos de atavismos ideológicos e organizativos que lhe dão uma dinâmica e energia imparáveis e inesgotáveis, capacitando-o para entender sem grandes resistências a necessidade de intervenção nos mais diversos «teatros de operações» e com os mais difíceis compagnons de route.

É de grande valia que sejamos capazes de desconstruir a ideia subjacente à qualidade de compagnons de route que propositadamente utilizei. A nova compreensão do fenómeno político e social que o Bloco trouxe para a liça a isso obriga.

Para nós, e nos dias de hoje, o movimento real que conduzirá ao movimento revolucionário deve contar à partida com todos aqueles que, na sua prática, se afirmam contra o capitalismo e o imperialismo. E esses são parte constituinte do movimento e potenciais participantes na construção de um grande partido de trabalhadores. As forçadas divisões ideológicas só têm peso, essa deve ser a nossa compreensão, enquanto o programa político do proletariado não se impuser, ganhando as grandes massas e levando-as a criar os seus próprios organismos de combate político, económico e social.

A pedra de toque do combate revolucionário é a sua capacidade de criar organização própria, em que os trabalhadores se organizam, decidem livre e democraticamente. Esta foi a grande experiência do PREC e, «ontologicamente», da Comuna, cujo estudo levou o próprio Karl Marx a evoluir na sua opinião, expressa no Manifesto Comunista, de que seria a economia de Estado que levaria à desaparição da sociedade de classes.

A Comuna de Paris, apesar de ter sido liquidada com requintes de crueldade, pelo poder da burguesia, inscreveu-se como acto seminal da revolução proletária. Os sovietes de 1905 e 1917 na Rússia, os Concelhos Operários na Alemanha e na Hungria não só continuaram a linha da Comuna, como abriram o caminho para a criação dos órgãos de real poder proletário.

As Comissões (de trabalhadores, moradores, artistas, ocupantes de casas e de terras, soldados, de luta pelo julgamento do fascismo e da Pide, etc.) que nasceram com o PREC, marcaram o carácter revolucionário do movimento social entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro.

As características, em última instância pequeno-burguesas, dos partidos que combateram empenhadamente pela revolução, a prisão ideológica que os caracterizou, a «imitação» ou inspiração na URSS ou na China ou na Albânia (agarrando-se à revolução cubana e ao seu carácter libertário inicial, como bálsamo para as consciências incomodadas pela ortodoxia a que se haviam submetido) impediu-os de serem capazes de cumprir o seu papel na revolução portuguesa.

Uns abraçaram o conceito ideológico «marxista-leninista», nomeadamente quanto ao poder do estado «proletário» sobre tudo o mais, nomeadamente a luta revolucionária do proletariado.

Outros, seguindo Trotsky  sem repararem que a sua perspectiva não se afastava, bem vistas as coisas, do nacionalismo soviético que iria redundar no socialismo num só país que serviu de instrumento à repressão stalinista:  Trostky perante o eclodir das revoluções na Alemanha e na Hungria depois da carnificina da I Guerra Mundial, declarava ao Manchester Guardian: «Claro que nos interessamos pela vitória das classes trabalhadoras, mas não teríamos de modo algum interesse em ver rebentar uma revolução na Europa exangue e em ver o proletariado receber apenas ruínas das mãos da burguesia»*!!!

IV

A reflexão que já fizemos e a que estamos a fazer, associada à nossa prática concreta durante o PREC, permite-nos estar genuinamente preparados para os novos desafios que temos pela frente, nomeadamente o que constitui a matéria desta minha reflexão, no fundo o papel das organizações sociais no movimento real e na sua transformação em movimento revolucionário.

A entusiástica adesão à formação do Bloco de Esquerda só foi possível porque não soçobrámos, primeiro ao abraço mortal da ideologia, depois ao cataclismo que, com a queda do Muro, se abateu sobre a consciência dos trabalhadores e, portanto, sobre a sua capacidade de luta.

E não soçobrámos graças à compreensão das características do movimento dos trabalhadores, e à ligação que conseguimos ao movimento popular e à forma, ainda que com erros e perspectivas sectárias que a ideologia a que chamávamos nossa determinava, como os soubemos respeitar e neles nos integrarmos.

O nosso lugar é junto das massas, lutar com elas, respeitá-las, ajudá-las a construir as suas próprias formas de organização, e lutar democrática e firmemente contra todas as tentativas de controlo do movimento popular. «Os trabalhadores são os únicos donos dos sindicatos», eis uma palavra de ordem que ainda hoje nos inspira e nos guia para a luta revolucionária. Com a revolução, o proletariado será o único dono da economia.

V

Como conclusão desta reflexão sublinho:

As organizações a que vulgarmente se chama «movimentos sociais», ou seja que não são organizações próprias dos trabalhadores, como sindicatos e comissões de trabalhadores ou ainda associações espontâneas e formadas ad hoc para a resolução de problemas concretos e nas quais devemos intervir também, representam, independentemente das características e grau da sua actividade:

- núcleos de fixação e organização mais ou menos formal de activismo, de pensamento e acção colectivos;

- focos de denúncia, divulgação e propaganda;

- alavancas para a acção;

- potenciais catalisadores e integradores de movimentos mais vastos.

Estas organizações nascem, sem dúvida, da iniciativa de activistas avançados do movimento social que, em geral, se organizem fora dos partidos dos trabalhadores, e onde os militantes revolucionários podem e devem participar sempre a título individual.

Podem representar posições contra os partidos, por princípio ou por decisão baseada em experiências sem sucesso, individualismo ou independentismo. Podem ser suporte e factor de disseminação de ideias progressistas ou, pelo contrário, servirem de empecilho, de factor de diversão ou mesmo tornar-se adversários, por convicção ou por abdicação, das ideias e propostas anti-capitalistas. Isso dependerá, em muito, das características do movimento e da força que o programa político do proletariado ganhar entre as massas.

A crítica séria das suas posições e ideias, da mesma forma que temos que ter em conta a sua crítica, só terá efeito se for feita na acção face aos trabalhadores, usando unicamente critérios políticos e nunca ideológicos.

Toda a reflexão teórica e toda a acção prática têm de ser determinadas pela necessidade de fabricar os componentes que assegurem a transformação radical das relações sociais na revolução, contribuindo desde já para a libertação progressiva da alienação capitalista.

*«Nenhuma classe da sociedade civil pode desempenhar este papel [libertar a sociedade inteira] se não provocar por si mesma e na massa um momento de entusiasmo, um momento no qual ela confraterniza e se funde com a sociedade em geral (…) em que é reconhecida como representante geral de tal sociedade; um momento em que as suas reivindicações e os seus direitos são na verdade as reivindicações e os direitos da própria sociedade, um momento em que ela é, verdadeiramente, a cabeça social e o coração social» - Karl Marx, Contribuição para a criticada filosofia do direito de Hegel – Fevereiro de 1844

**Paul Mattic,I.C.C. (International Council Correspondenc)  Vol.II.nº1 – Dezembro de 1935

Mário Tomé

 

 

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