As polémicas sobre a burca Versão para impressão
Domingo, 14 Fevereiro 2010
A decisão de Sarkozy de proibir burcas em transportes, escolas, (…) lançou um polémico debate na Europa. Não nos guiamos pela agenda da extrema-direita, que Sarkozy está a protagonizar, mas a polémica merece umas notas.

Comecemos pelo princípio.

1. A crise económica afecta o mundo globalmente. A primeira crise verdadeiramente global é uma derrota ideológica do neoliberalismo, do pensamento único, que tinha anunciado o “reino dos céus” no mundo da competitividade, do individualismo e da supressão do papel social do Estado.

2. Na Europa a crise tocou, ideologicamente, ainda mais forte porque ela derrubou o “modelo social europeu e mostrou uma Internacional Socialista deitada aos prazeres da especulação financeira e à submissão sádica aos senhores da guerra. Os que abominavam o Estado passaram a sugá-lo perdidamente. A esperança projecto União Europeia transformou-se numa arrastada desilusão.

3. Quando os de cima se vêm em dificuldades ideológicas e políticas e quando o domínio militar se atola nos pântanos (Iraque e Afeganistão) os dominadores precisam de reinventar o seu domínio – precisam de dividir os de baixo.

4. Quando estão em crise os de cima precisam de encontrar uma saída política, com apoio de massas, que esconda as razões da crise capitalista e possibilite espaço político às suas medidas conservadoras.

5. Foi assim ao longo dos séculos, foi assim que Hitler começou, foi assim que Berlusconi se desenvolveu, foi assim que a extrema-direita cresceu, é assim com Sarkozy contra os muçulmanos, é assim com Paulo Portas contra os ciganos/rendimento mínimo.

6. O populismo da extrema-direita arrasta consigo um outro perigo: os desempregados são-no por demérito, os pobres são-no por incapazes ou preguiça. As vítimas passam a réus – tapam-se as idiossincrasias do capitalismo e as suas tragédias.

7. Para dividir os de baixo é preciso desenvolver uma linha populista, e / ou nacionalista, que segrega os que aproveitam as migalhas que caiem da mesa mas fazem esquecer quem comeu o banquete; é preciso apontar as características ou “identidades” bem visíveis que marcam as minorias: cor da pele, etnia, imigrante, cigano, minarete, lenço… Os bons e os maus.

8. Se o fundamentalismo religioso ajudar tanto melhor. Binyamin Netanyahu e Mahmoud Ahminejad são duas faces da mesma moeda.

9. No actual momento político os muçulmanos são os judeus de outros tempos.

10. Atacar as opressões dos outros é, também, afastar as atenções para as múltiplas opressões de que o mundo ocidental é impulsor, sobretudo a opressão da exploração capitalista sobre os povos, que atinge formas extremas e de grande violência, afirmando hipocritamente o mundo ocidental como o bastião da liberdade.

11. Por outro lado, o integrismo islâmico assume-se identitariamente como resistência contra o imperialismo global. Este sentimento de resistência alimenta as suas fileiras. Mais uma vez as duas faces da mesma moeda, que nos levam a antever um crescendo de violência sem fim à vista.

O papel do Estado.

1. O Estado, tal como o defendemos, é laico. As religiões têm iguais direitos e deveres, são igualmente respeitadas mas não podem impor ao Estado conceitos religiosos e transformá-los em leis estatais.

2. Sendo laico o Estado assegura, por exemplo, os serviços públicos de educação. As escolas tuteladas por confissões religiosas terão que cumprir integralmente as regras que o Estado determina para a educação. Assim, por exemplo, todas as crianças terão que frequentar a ginástica, as turmas serão mistas e terão que ter educação sexual.

3. O Estado respeita a liberdade individual, religiosa ou outra, e valoriza a interculturalidade - mas não pode admitir violações aos direitos humanos em nome de uma qualquer cultura ou religião: impedir as meninas de irem à escola, praticar a mutilação genital, impedir as mulheres de serem consultadas por médicos homens, impedir as mulheres de acederem à participação política e cívica, lapidação e assassínio de mulheres (e só de mulheres adúlteras), impedir as mulheres de tirar a carta de condução… O Estado não se submete a uma qualquer “lei religiosa”; a religião – seja ela qual for - é que se submete aos princípios de um Estado democrático, moderno e laico.

4. Acresce que algumas pessoas, argumentando que isso é um problema das famílias, defendem um pretenso direito à não introdução na vida dessas famílias. Mas o que se passa nas famílias não é privado, é público e o que é público é político pois diz respeito às relações entre pessoas. Se diz respeito às pessoas diz respeito ao Estado.

E a burca?

1. O uso da cara tapada pelo nikab ou burca (e não estamos a falar do simples véu) viola a identidade da mulher, representa uma forma ainda mais reaccionária de patriarcado e impede a mulher de se assumir como mulher e cidadã - de igual para igual com o homem.

2. Defender o uso do nikab ou da burca em nome do respeito pela liberdade individual é defender o patriarcado mais conservador. Defendê-lo em nome da liberdade religiosa é defender a submissão dos direitos humanos e do Estado perante a religião. Defendê-lo em nome do inter-culturalismo é, não só esquecer que essas culturas são construídas em sistemas de valores que exprimem uma dominação, é defender a violação dos direitos humanos.

3. No entanto, a proibição sarkoziana é o argumento útil para a perseguição à minoria por mais ínfima que ela seja – como é o caso da burca. Na França é a burca, na Suiça são os minaretes, e assim sucessivamente. Voltar as massas populares contra essa minoria e torná-la o inimigo a abater, o causador da crise, é o objectivo ideológico imediato dessas burguesias. A divisão e o conflito entre as massas assegura o poder de quem domina. A história repete-se.

4. No actual momento, os e as defensoras da democracia moderna e do laicismo precisam de dar um sinal às mulheres oprimidas pelo patriarcado mais reaccionário e mostrar solidariedade para com todas as que lutam pela dignidade e emancipação social. Quando, no Sudão, as mulheres forem presas e chicoteadas por usarem calças cabe-nos uma atitude solidária e pública. Cabe-nos não calar a voz à proibição das mulheres conduzirem na Arábia Saudita. Cabe-nos protestar contra a repressão às milhares de mulheres que lutam pelo direito a não usar uma qualquer burca, contra a subjugação sexual, a proibição de viajar sem autorização do marido e tantos outros exemplos que pululam num qualquer fundamentalismo religioso.

5. Os partidos de esquerda, os movimentos sociais e sindicais, os lugares mais avançados das universidades precisam de reforçar o sinal solidário à luta pelos direitos das mulheres. Lá como cá há uma consciencialização a ganhar, não uma proibição. Lá como cá o feminismo tem um espaço de luta a desenvolver.

Rita Silva, Timóteo Macedo e Victor Franco

 

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