Família e Escola: eixos da desigualdade de classe e de género Versão para impressão
Terça, 03 Maio 2011

 

discrimination

 

Não será por acaso que mesmo no livro de História do 12º ano, está um documento sobre a Simone de Beauvoir, referenciada como “a mulher de Jean Paul Satre”, a mulher do Homem.

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Artigo de João Mineiro


 

Desigualdades, realidades não - estáticas

A desigualdade não é uma entidade abstracta e homogénea passível de ser analisada de frases feitas na lapela, com concepções estáticas no tempo e no espaço e com visões simplistas “de classe”. Na verdade, a questão da desigualdade é, na minha óptima, a questão mais difícil para a esquerda. É estruturada com formas de poder e de domínio cada vez mais complexas, subtis e controversas em si mesmas, mas que encontram um equilíbrio estático que nos mantém presos de mais ao status quo, que molda o senso comum de forma quase impenetrável e que nos mantém numa inércia que bloqueia a emancipação e muitas vezes a própria luta pela emancipação. A melhor forma de valorizar esse resgate do debate em torno da desigualdade e a disputa teórica nesse campo é reflectir em tom de pergunta, é lançar pistas e provocações para um debate que se faz diariamente e que nos deve levar muito mais ao fundo e menos à superfície. Saber que a desigualdade é muito a desigualdade de classe é saber também que na desigualdade de classe existem desigualdades contraditórias que não podemos ignorar. E a melhor forma de encararmos de frente esses pequenos grandes mundos que nos cercam é perceber o que estrutura hoje a desigualdade e a sua reprodução e de que forma os vários mecanismos de dominação contribuem para essa estruturação. A desigualdade continua a ter a classe como epicentro, certamente. Mas que classes? O que é a burguesia e o proletariado do nosso tempo? Onde equacionamos os lugares contraditórios de classe? E dentro das classes que outras desigualdade existem? E como problematizamos as desigualdades (que são tantas) na luta de classes que cremos ser transformadora? Como é que a luta de classes inclui a emancipação feminina (e feminina inclui as mulheres no seu todo e não apenas as mulheres proletárias ou afectas a esse lado)? Perguntas não faltam. Serve este prólogo para dizer que a discussão teórica sobre a desigualdade não é tão simples: já não chega dizer, uns têm a propriedade e exploram e outros não a têm e são explorados. A realidade pede-nos mais que isso. A minha tentativa de contributo centra-se em torno de duas instituições sociais de grande relevância: a família e a escola. A forma como elas formam, legitimam e reproduzem a desigualdade de classe e como estruturam a desigualdade de género.

 

Amor e casamento com marcas de classe

O campo teórico e prático do Marxismo não é por si só economia. O campo filosófico e sociológico do Marxismo tem enorme validade. E se a rejeição de um certo determinismo histórico já é mais ou menos aceite entre os muitos marxistas, permanece intacto o ângulo de perspectiva sobre o real que o marxismo nos oferece e que tão bem soubemos actualizar. É com esse ângulo de visão que devemos olhar para as questões que quase sempre passam ao lado da discussão na esquerda em torno da desigualdade. É na acção social que construímos as nossas práticas e representações quotidianas, e o amor, e a construção dos seus padrões, enquanto componente da acção social e das relações de socialização entre os indivíduos não está fora das estruturas de poder na sociedade. O amor não é um campo abstracto fora das relações de poder, bem pelo contrário. O amor é uma possibilidade psicológica universal, desse facto quase ninguém dúvida, mas a construção dos seus padrões obedece a regras, a normas, conscientes e inconscientes, que o limitam. É essa a linha de pensamento de autores como o sociólogo Americano William Goode e o antropólogo Brasileiro Gilberto Velho. Goode afirma que apesar da democratização do amor e da sua relação com a modernidade, sobre ele existem cinco tipos de controlo institucional que limitam os indivíduos e condicionam as escolha dos parceiros amorosos em função de critérios económicos e de transmissão de património. Os mecanismos de controlo sobre o amor são estruturados no sentido de não romper as configurações sociais existentes e portanto no sentido de não romper com a divisão de classes existente. Também o antropólogo Gilberto Velho, baseado em histórias de vida de indivíduos de classe média da zona Sul do Rio de Janeiro, comprovou que a construção do amor e a escolha do parceiro para o casamento é subordinada à necessidade de não romper com os laços familiares, com a transmissão de património e com as linhagens. A verdade é que é a endogamia, de critério económico e de classe, que estrutura a construção social do amor, a escolha do parceiro para o casamento e a construção da família.

A endogamia é produto e produtora de desigualdade: é originada pela desigualdade porque é originada pela segregação dos espaços físicos e sociais, pelo controlo institucional na formação dos grupos de pares e dos parceiros amorosos, pelos esforços de separação de classe na escola e em todos os espaços de socialização fora dela, e pela própria interiorização da divisão; e produz desigualdade porque ao mesmo tempo a reproduz, faz com que os indivíduos se juntem com indivíduos da mesma classe, reproduzindo a posição social de origem.

 

Do amor à família: desigualdade de género e superar Giddens, outra vez

A construção identitária do amor, e a sua relação com o ideal romântico, criou uma nova visão de família que ultrapassou a concepção pré-industrial e que a transformou numa instituição da modernidade onde é possível encontrar o consolo, o conforto, o companheirismo e até mesmo a identidade, uma vez que a separação entre o espaço público e o espaço privado relega a construção da identidade para a esfera privada e portanto para a família. O movimento feminista tem neste aspecto um contributo ímpar. O movimento feminista pôs em cheque esta visão romântica da família: efectivamente o espaço da família não é nem um espaço harmonioso nem um espaço igualitário. Benny Freidman denunciou o isolamento, o aborrecimento e a apatia das mulheres dos subúrbios Americanos, Laing os efeitos sufocantes das relações interpessoais dos espaços familiares. O feminismo entrou para dentro da família e trouxe a debate público as contradições internas do ideal romântico da família. É desigual a repartição das tarefas domésticas no seio da família, é desigual o trabalho pago e não pago, é desigual a distribuição de recursos entre os membros da família, bem como acesso às finanças do agregado e o seu controlo, é desigual a violência, o abuso sexual e a dominação. Ou seja, dentro da família a opressão e a violência é desigual e tem marca de género.

É aqui que começam incómodos no pensamento teórico à esquerda: as denúncias das feministas sobre as famílias são denúncias também sobre famílias de classe baixa, ou seja, a classe não faz a emancipação por si só, porque dentro das classes exploradas existem relações de força, de violência, de opressão, de dominação e de exploração. Giddens em 1992 tenta entrar em debate com as feministas lançando a proposta do “amor confluente” (confluente love 1992). Giddens diz identificar uma tendência cada vez mais notória para a igualdade entre homens e mulheres e que a construção do ideal de amor partilhado, nestes tempos de “pós-modernidade e modernidade tardia” (linguagem dele) é uma construção muito mais igualitária e portanto mudámos o paradigma do “amor romântico” para o “amor confluente”. A resposta a Giddens é a realidade concreta. Não é verdade que o amor seja hoje um espaço de igualdade entre homens mulheres nem tão pouco que para lá estejamos a caminhar a passos largos. Bourdieu é muito mais claro: o amor pode ter a capacidade de momentaneamente suspender a dominação masculina mas não a elimina e invariavelmente ela vai voltar a surgir.

 

Da família à escola: transmissão do testemunho

Existe uma cumplicidade histórica entre a instituição família e a instituição escola. Várias investigações provaram já a forma como a família está dentro da escola e como a escola é tributária das heranças (desiguais) que a família transmite (Nunes, 2005). A problemática da escola como espaço de enraizamento, produção e reprodução de desigualdades é uma problemática moderna. É na passagem do século XIX e na transição da modernidade que a família ocupa novas formas e desígnios, que a concepção da criança e da infância surge e que a escola ganha forma e conteúdo como “família educativa”. A cumplicidade história verifica-se porque quando se acentua a separação do espaço público com espaço privado, a separação entre os espaços pessoais e impessoais, a família ganha forma como refúgio para a privacidade, para o “eu autêntico”, para as relações pessoais. É nesse momento histórico que a escola ganha um papel decisivo. A família já não é simultaneamente o espaço religioso, social e económico dos indivíduos. É agora um espaço de relações pessoais e de identidade e a escola preenche os espaços deixados em aberto pelas transfigurações das famílias, assumindo novas responsabilidades pedagógicas, morais e sociais. Mas se nos tempos modernos a escola é um espaço aparentemente autónomo ele não permanece isolado das contradições de classe na sociedade, logo nas famílias. O contexto familiar de pertença, e portanto o contexto de classe de pertença, é um factor explicativo das desigualdades na escola. As heranças sociais, culturais e económicas da família são desiguais e interrompem o ideal democrático da escola: a família faz reproduzir os privilégios e as desvantagens herdadas, contrariando o projecto da escola libertadora e promotora da igualdade democrática. Ana Benavente (1994) numa investigação na área da sociologia da educação conclui que se olharmos para a estrutura do abandono e do insucesso escolar verificamos que a pobreza e a precariedade das condições de muitas famílias geram mecanismos de exclusão e de abandono escolar precoce, trajectórias crónicas de insucesso no sistema de ensino. Ou seja: os grupos com mais tendência para o insucesso e o abandono são os grupos com famílias em condições mais precárias. E qual é a resposta da escola no nosso tempo? Desistência, punição, expulsão: reprodução da desigualdade. Há uma repartição desigual das probabilidades de sucesso escolar porque as posições de classe das famílias de origem delimitam e criam barreiras (que a escola não ultrapassa e acentua) à obtenção do sucesso. Além disso, mesmo nos alunos que conseguem chegar ao Superior existe uma marca de classe, porque apesar da abertura dos cursos, há grupos que socialmente estão mais vocacionados para umas áreas e outros grupos para outras, bem como determinados cursos têm uma direcção de classe, têm mestrados integrados caríssimos, acordos com empresas, obrigatoriedade de usarem roupa formal nas apresentações, estágios associados em empresas de topo. Sabemos bem a quem isto se direcciona.

 

Que género na escola?

Falámos da divisão de classes que a escola evidência mas e a desigualdade de género? As alunas desde cedo são privadas de praticar determinados desportos e jogos quando é preciso mais força física ou agilidade, os manuais continuam a transmitir uma imagem do homem com iniciativa, empreendedor, trabalhador e independente e uma imagem da mulher muito mais passiva na sombra do homem. (Não será por acaso que mesmo no livro de História do 12º ano, está um documento sobre a Simone de Beauvoir, referenciada como “a mulher de Jean Paul Satre”, a mulher do Homem). Se olharmos para o caso Português não só a taxa de analfabetização das mulheres era elevada como o seu acesso a graus superior de ensino estava praticamente vedado. Contudo, a partir dos anos 80/90 esta tendência inverteu-se e as mulheres têm hoje o mesmo acesso ao ensino que os homens. Apesar de isto ser uma vitória histórica podemos continuar a questionar o fosso de género que ainda existe na escola, que ainda que não seja tão material e visível é simbólico e ainda assim estruturante. Se abrirmos por exemplo os livros de ciência e biologia a generalidade das representações humanas são de homens, e não de mulheres. Se por outro lado olharmos para a distribuição dos sexos pelos cursos no Ensino Superior vemos que as mulheres estão em predominância nos cursos sociais: psicologia, sociologia, antropologia, ciência política; e os homens nos cursos técnicos: engenharias, electrotécnica, mecânica.

 

 

Não será isto ainda a ideia de que a “mulher é mais dócil e sensível” e o “homem mais técnico e físico”? E que há cursos feitos para homens? É que homens em ciências sociais ainda assim é “normal” mas mulheres em cursos de engenharias é “estranho”. Se por exemplo formos ao currículo de autores obrigatórios no Secundário na disciplina de Português não temos nem uma mulher, apenas homens: começam no Padre António Vieira, acaba no Sttau Monteiro e passa no Camões, Saramago, Eça, Pessoa, entre outros, mas escritoras nem uma. Não haverá boas escritoras na história da literatura Portuguesa? São apenas exemplos de como as diferenças de género nas escolas ainda se fazem sentir seja na primazia dada aos homens e ao corpo do homem, seja da reprodução das ideias mais essencialistas sobre os sexos seja na auto-exclusão de determinadas áreas curriculares para as mulheres.

 

João Mineiro


 

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