O Amor não mata Versão para impressão
Quinta, 24 Novembro 2011

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As relações afectivas são relações que envolvem uma maior complexidade interpessoal. Quando falamos de relações amorosas essa complexidade aumenta. O afecto por outro ser humano tem, necessariamente um impacto muito significativo na estruturação da nossa vida, no modo como interagimos com essa pessoa. Estamos perante uma espécie de reestruturação. Já não caminhamos sós, caminhamos com outro e numa vida conjunta as nossas decisões, escolhas e comportamentos têm também algum impacto na vida do outro. Esta construção relacional amorosa e uma construção inter-pessoal onde ambas as partes partilham, aprendem, se adaptam e se transformam mutuamente. Como base de qualquer relação é importante que esteja o respeito e reconhecimento do outro, na sua plenitude, como um ser autónomo, com identidade e personalidade próprias, com vontade, desejos, sonhos, aspirações, medos e receios, forças e fraquezas. O aceitar de ambas as partes dessa realidade e a vontade de construção de uma vida em conjunto fará com que todas as adaptações sejam empáticas e conscientes das necessidades de ambos. Para a construção de uma relação afectiva, amorosa, de vida em comum, saudável, temos de ter por base uma relação equalitária. Porquê saudável? Porque se assim não for uma das partes sairá lesada, diminuída ou anulada pela outra o que trará impactos muito relevantes em todas as esferas da sua vida incluindo na sua economia psíquica.

Numa relação não equalitária em que um elemento se anula para satisfazer todas as exigências e necessidades do outro por imposição deste estamos perante uma submissão e um apropriamento que não poderá ser senão nocivo e opressivo e certamente não poderemos chamar amor a uma relação deste tipo. Infelizmente, como sabemos, esta é uma exigência comum das sociedades patriarcais e machistas relativamente ao papel das mulheres na relação conjugal, e assim sendo, torna-se muito fácil transpor esses valores sociais para a conjugalidade oprimindo as mulheres justificadamente.

Quer-se uma mulher que cuide, que esteja presente, que seja boa mãe e boa esposa, que deixe a casa arrumada, perfumada, limpa, que satisfaça as exigências do marido sejam elas quais forem. Pede-se uma mulher “como deve ser” e as mulheres “como deve ser” são mulheres que se anulam por completo, que não têm sonhos, aspirações pessoais e profissionais, nem interesses ou desejos para além dos desejos dos seus maridos e filhos mas também dos seus pais e sogros. As mulheres, segundo esta perspectiva, nasceram para servir e cuidar e uma mulher que o não faça não é uma mulher que desempenhe bem o seu papel natural.

Este pensamento arcaico valida uma relação conjugal desigual, por vezes muito violenta e opressora porque vê as mulheres enquanto propriedade de outros, primeiro do pai e depois do marido.

O acto simbólico que observamos nos casamentos católicos, por exemplo, nos quais o pai leva a sua filha ao altar pelo braço passando depois o braço para o marido é exactamente isso que representa (“dou-ta para que seja tua responsabilidade, para que cuides dela, deixa de estar debaixo da minha alçada para passar para a tua”). Mesmo o pedido de casamento reflecte isso mesmo. Tradicionalmente, nas sociedades católicas como a nossa, o pretendente a marido vai pedir a mão da sua noiva ao pai desta (“quero ficar com ela, dás-ma?”). Trata-se de uma passagem de propriedade de um para o outro, uma passagem de mercadoria. Choca-nos ver o casamento exposto deste modo cru, mas se nos afastarmos e olharmos objectivamente para o ritual que envolve e o simbolismo latente, o modo como é concretizado é todo ele de desigualdade e opressão feminina.

Não nos poderemos esquecer também que nem todas as relações conjugais têm por base uma relação afectiva, aliás as relações conjugais verdadeiramente afectivas não serão talvez a maioria, até porque a ideia de casamento por amor é relativamente recente e moderna na nossa história. Muitas relações conjugais têm origem em acordos familiares e nestes casos a violência começa ainda antes da relação conjugal propriamente dita, pela impossibilidade de escolha até no que diz respeito à escolha da pessoa com quem pretendemos passar a nossa vida.

Estas relações desiguais têm um profundo impacto social a todos os níveis. Em muitos países do mundo ter uma filha é sinal de má sorte porque implica um gasto no dote e o investimento feito nela é a fundo perdido. Contrariamente, um rapaz representa um investimento válido, importa nutri-lo e educá-lo bem, pagar os seus estudos e proporcionar-lhe tudo o que estiver ao alcance da família pois mais tarde esse filho trará a casa o respeito da comunidade e quem sabe até propriedades, dinheiro e uma esposa que ajudará não só com o dote que a acompanha mas também a ajudar a sogra nos afazeres domésticos e cuidará deles quando a velhice chegar. Por sua vez, a família da rapariga perde o investimento nela feito, esvazia o orçamento familiar no dote e não tem quem cuide deles na velhice. Esta mentalidade enraizada justifica em muitos países os abortos selectivos, o desinvestimento nutritivos, de cuidados e de educação feito às raparigas entre outras violências.

Como vimos existe uma transmissão de propriedade da família das mulheres, em específico de pai para marido, por conseguinte, o marido passa a ser o detentor e proprietário simbólico da sua mulher pelo que espera dela o cumprimento de determinados requisitos que definiu à priori.

É este fenómeno que subjaz aos maus-tratos conjugais, a ideia patriarcal e machista que as mulheres têm de obedecer aos maridos já que eles detêm a sua propriedade. Se as mulheres não cumprem, eles julgam-se no direito de as repreender, se assim entenderem através de agressão física, para as educar, de as forçar a ter relações sexuais (porque as mulheres têm de cumprir os deveres do matrimónio) ou até de as matar.

Terminar com a violência conjugal envolve uma mudança social no sentido da igualdade de género, sem ela, haverá sempre um desequilíbrio que penderá para a legitimação da violência conjugal e de todas as formas de violência de género.

Em Portugal os números de femicídios são assustadores e revoltantes, a violência conjugal é uma constante mas este tipo de violência estende-se para além do domínio da agressão física e psíquica, a sobrecarga de trabalho que as mulheres têm no cuidado do lar e da família como tarefas de sua exclusividade é também uma forma de violência que as priva de terem tempo para si próprias, de investir nas suas carreiras profissionais, de sair da esfera privada para reivindicar o seu espaço e voz pública, política e interventiva.

No lar, que deveria ser um lugar acolhedor, protector, alegre, criativo, de partilha de afecto, amor, desejo, de construção e companheirismo, muitas mulheres vivem um verdadeiro inferno do qual sentem dificuldade em escapar até porque socialmente dispõem de poucos apoios e os poucos recursos que têm pecam muitas vezes na eficácia. Apesar da violência doméstica ser considerada crime público, muitas das queixas são desconsideradas, os processos judiciais não avançam, a protecção não é activada e perante este quadro de incerteza e perigo real, estas mulheres vêem-se envoltas numa teia de violência que se entrelaça envolvendo as esferas públicas e privadas. A exigência e persistência na eficácia destas medidas de segurança e protecção têm de ser uma batalha nossa, diária. A solidariedade com estas mulheres, o apoio e a sensibilização social não pode adormecer.

O Amor não mata, não fere, não magoa, não desrespeita nem desconsidera, não domina nem escraviza, não anula nem silencia. Se o faz não é amor, tem outro nome: violência.

Esperemos que consigamos travar as mortes, as agressões físicas, a opressão ensinando e alertando as jovens e os jovens que o Amor é criativo e pode ser construído com os ingredientes e intervenientes que se quiser mas que definitivamente, a violência, não entra na “receita”.

Nádia Cantanhede

 

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