O FADO, UMA PARTE DO VASTO E RICO PATRIMÓNIO ETNO-MUSICAL PORTUGUÊS Versão para impressão
Sexta, 27 Janeiro 2012

FadoA proclamação do fado como Património Imaterial da Humanidade foi, talvez, a notícia que mais estimulou a depauperada auto-estima de um povo tão deprimido pela crise e pela austeridade imposta por uma elite tão corrupta quanto incompetente (como prova a ameaça da UNESCO de retirar a classificação do Alto Douro Vinhateiro como Património Mundial devido ao impacto irreversível da Barragem do Tua).

Vítima de preconceitos sociais e políticos (não obstante o regime salazarista se ter esforçado por alienar o povo com a politica “dos 3 efes” – Fátima, futebol e fado – a verdade é que Salazar não gostava de fado, apesar de se ter aproveitado da popularidade de Amália, da mesma maneira que se aproveitou da fama de Eusébio, embora não respeitasse os povos das colónias que desprezou e massacrou), o fado haveria de converter alguns dos seus detractores durante a ditadura e na euforia de Abril, pouco consentânea com o fatalismo em tom menor. Foi o caso de José Mário Branco, compositor de alguns dos mais belos fados cantados por Camané e Carlos do Carmo. Lopes Graça, fascinado pela descoberta da música tradicional portuguesa, que recolheu, estudou e divulgou, com Michel Giacometti, criticou a pobreza musical desta canção urbana que considerou “execranda”.

Ainda hoje etnomusicólogos e investigadores se digladiam quanto às origens do fado, com uns a defenderem a herança árabe (Amina Alaoui, Adalberto Alves); outros (Ramos Tinhorão, Rui Vieira Nery, Ruben de Carvalho) a influência das danças afro-brasileiras como a Fofa e o Lundum que os escravos negros trouxeram do Brasil e que, a despeito da sua popularidade entre o povo de Lisboa (marinheiros, prostitutas e a aristocracia decadente), seriam alvo de censura religiosa dado a sua carga erótica; e, em 2010, o etnomusicólogo José Alberto Sardinha publicou “A Origem do Fado”, retomando a ideia de Carolina Michaelis de que o fado tem origem no séc. XVI, na tradição oral portuguesa, do romanceiro e da literatura de cordel, de “faca e alguidar” (“fado da desgraçadinha”, tipo Rosa Enjeitada), cantada por músicos ambulantes e “ceguinhos”.

Quer-nos parecer que todos têm razão, excepto quando excluem as teses alheias, porque o fado deve ser a síntese dos romances tradicionais, da influência afro-brasileira e da herança de sete séculos de presença árabe (que nos marcou até a genética; e não esqueçamos que também levámos escravos mouros para o Brasil, pelo que a influência moura é muito forte no Nordeste, como lembrou Chico César em entrevista a Carlos Vaz Marques, na TSF); tudo isso misturado com as canções e danças tradicionais que os marinheiros, artesãos e camponeses migrados para a capital, caldearam nas tabernas e bordéis da Mouraria, Bairro Alto e Alfama, onde o fatalismo árabe expresso na poesia do Al-Andalus resistiu à “reconquista” cristã. Amália atribuía o “tremolo” dos fadistas à influência da música árabe, confessando que era a música que mais apreciava, mas basta ouvir o grande fadista Ricardo Ribeiro a cantar com Rabih Abou-Khalil “Em Português” (disco gravado por sugestão de Ricardo Pais) para não se duvidar da fusão histórica das duas culturas.

fado

O fado já era património da humanidade mesmo antes de ser resgatado por uma nova geração de fadistas, mas a chancela da UNESCO não nos autoriza a esquecer que o maior património do povo português (e, por extensão, da Humanidade, como são as genuínas expressões culturais de todos os povos) é sua riqueza e diversidade etnomusical: os romances e as danças ao som da gaita-de-foles de Trás-os-Montes, os bailes de roda do Algarve, os cantos polifónicos da Beira Baixa e da Beira Alta (das adufeiras de Monsanto e de Idanha-a-Nova às exuberantes vozes da região de Lafões, onde se destacou Manhouce e Isabel Silvestre), as chulas e cantares ao desafio do Minho e Douro Litoral e o “cante” alentejano (futuro candidato ao reconhecimento da UNESCO).

Acontece que muito deste património corre risco de extinção, quer por morte “natural” (como quase ia acontecendo com a viola campaniça) num país sem auto-estima, nem consciência da sua identidade cultural, quer por morte “assistida” pelo “empobrecimento, devido à simplificação das estruturas melódicas e harmónicas” (Giacometti) ou pela “contrafacção folclórica” (Lopes Graça) da genuína música popular e tradicional portuguesa. Sem investigação e apoios do Estado à Cultura não haverá UNESCO que nos valha.

Vale à música popular portuguesa, de raiz tradicional, o movimento perpétuo da renovação inspirada pelo exemplo de José Afonso, José Mário Branco, GAC, Carlos Paredes, Fausto, Sérgio Godinho, Vitorino, Janita Salomé, Amélia Muge, Júlio Pereira, Gaiteiros de Lisboa, Brigada Victor Jara, Almanaque, Vai de Roda, Raízes, Terra a Terra, Rosa dos Ventos, Zeca Medeiros, Toque de Caixa, e mais recentemente, os Deolinda, A Presença das Formigas, Toques do Caramulo, Pé na Terra e muitos outros que, viajando incógnitos, ou quase, nos transportam por paisagens sonoras que só a genial alma de um povo pode criar.

E viva a música!

Carlos Vieira e Castro

(também publicado em A Comuna nr 28)

 

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