Os tempos, a crise e Bob Jessop Versão para impressão
Segunda, 20 Fevereiro 2012

crisejessopA força de uma ideia mede-se pela sua abrangência e aceitação, o neoliberalismo é um caso paradigmático e aparentemente contraditório dessa realidade.

Artigo de Fabian Figueiredo

Imposto na América-Latina e reproduzido no Ocidente como solução para os dilemas da crise do Estado Social, o neoliberalismo tornou-se a receita tipo para qualquer economia e sociedade. Baseada na propaganda pro-individuo e anti-intervenção do Estado, esta formulação do liberalismo, conseguiu criar uma nova representação no senso comum e na vox populi do que é a liberdade e a justiça social.

A força de uma ideia mede-se pela sua abrangência e aceitação, o neoliberalismo é um caso paradigmático e aparentemente contraditório dessa realidade.

Patrocinado por uma refinada elite intelectual e económica, conseguiu de forma extraordinária popularizar uma forma actualizada do capitalismo desenfreado do século XIX.

O sucesso do neoliberalismo explica-se através de diversos factores, mas começa pela sua ilusória inexistência. À parte dos intelectuais e dos sectores mais esclarecidos da comunidade global, o termo era por demais desconhecido. De grosso modo apresentou-se um admirável mundo novo de oportunidades e de fácil acesso ao elevador social, composto pelo mercado livre, o empreendedorismo, o espírito de risco, o esforço individual e a liberdade de consumo. A tónica estava posta do lado do indivíduo, criou-se o estereótipo do acesso de todos ao Oásis e à bonança. No entanto, o que desvirtuava toda a justiça do jogo era o seu árbitro. O Estado passou a ser caracterizado como um excelente esbanjador, um mecenas da preguiça e um péssimo gestor. Tornava-se necessário diminuir ao mínimo a sua regulação e actuação, sob a pena de promover free riders e penalizar a acção voluntária do indivíduo em criar riqueza.

A cereja no topo do bolo da penetração desta ideologia, era a sua não ideologia. Isto é, ao contrário das “velhas” e falidas ideologias do socialismo e da social-democracia, a versão aprumada do mercantilismo, era baseada em certezas científicas, materiais e inquestionáveis. A propaganda certificou-se que todo o seu receituário seria visto como lei absoluta, e não como desvarios políticos, como supostamente existira até então, o neoliberalismo é dessa maneira, embutido de totalitarismo.

A capacidade de atribuição de uma roupagem pós-ideológica à teoria dominante foi uma das chaves para a sua mundialização. Alimentando a ideia que a prosperidade do seu futuro apenas dependeria das suas capacidades individuais, o restante seria conduzido pelo determinismo económico das pedras basilares do pensamento neoclássico.

Para além de toda a ginástica teórica da doutrina neoliberal, a sua aplicação teve um enquadramento conjuntural que se torna necessário compreender.

A América Latina foi o grande laboratório histórico da doutrina de choque.  Em 1970 a direita chilena, com total suporte dos EUA, responde com um golpe de estado liderado por Augusto Pinochet ao governo de esquerda liderado por Salvador Allende. Rapidamente se preocupa em reestruturar economicamente o país com um duro programa austeritário. Com recurso aos Chicago Boys, com o apoio de Milton Friedman e com o patrocínio do FMI, liberaliza os recursos naturais, as relações com o comércio externo, reversa as nacionalizações e privatiza quase todos os sectores e serviços do Estado, como a segurança-social.

A via chilena não podia ser exportada através do copy e paste. Seja pela forma ou velocidade com que foi imposta, dadas as particularidades políticas e sociais dos países que compunham o pulmão do capitalismo mundial. O caminho foi outro.

A década de setenta foi fértil em crises (aumento do desemprego, inflação, crise de acumulação de capital, falência dos acordos de Bretton Woods, aumento das taxas de juro, crise petrolífera de 1973) o que abriu janelas para se colocar termo ao liberalismo embutido que vigorava desde do pós-guerra.

O fim dos “trinta gloriosos” marca o início do neoliberalismo como modelo de economia e sociedade dominantes, aparecendo como solução para a crise do Estado corporativo. Ao que se deve somar os prémios Nobel de Hayek em 1974 e de Milton Friedman em 1976 e a vitória esmagadora de Margareth Thatcher no Reino Unido em 1979 e a eleição de Ronald Reagan em 1981 como Presidente dos Estados Unidos da América.

Desde então vigorou de forma hegemónica, dando azo a aplicação de planos de choque por todo o mundo.

O desmantelamento do Estado Social, a flexibilização e precarização das relações laborais, a financeirização da economia, a desregulação do mercados (…) foram caracterizando as políticas dos partidos de centro - mesmo aqueles que pertenciam a uma certa tradição de esquerda .

Até ao estalar da crise em 2008 a certeza da actuação do neoliberalismo era dominante , apesar das assimetrias sociais se terem agravado, as contradições se terem forçado, o desemprego aumentado, a ideologia dominante, continuava a dar garantias ilusórias à sociedade que o caminho por eles trilhado, contribuiria para uma continuidade do progresso e das melhorias das condições de vida.

Quando a bolha financeira arrebentou e as contradições inerentes se viram a cores na televisão, o neoliberalismo demonstrou-se falível, e afinal toda a sua racionalidade teórica de base inquestionável, mostrara-se mais frágil que um castelo de cartas.

A ideia do Estado-obstrucção esfumou-se, e o santo mercado já não correspondia aos pedidos dos seus imensos acólitos. Os pedidos de desculpa por parte de economistas válidos repetiram-se, à mesma velocidade que os líderes socorreram os bancos com nacionalizações e repentinas vontades de regulação do mercado.

Muitos afirmam que se trata da maior crise desde o craque bolsista de 1929, da imobiliária às dívidas soberanas, o que fez com que muitos governos adoptassem planos que se designam entre os comuns como de “austeridade”. Os direitos sociais recuaram, os impostos incrementaram, o desemprego acentuou-se e a contestação subiu de tom, um pouco por todo o mundo ocidental.

Esta crise não trouxe só ao de cima a frágil capacidade de regulação dos Estados soberanos, a supremacia da economia financeirizada, a transferência dos eixos de decisão económica para Oriente, mas também uma disputa no campo dos discursos e das narrativas oficiais – essenciais para o desencadeamento da orientação e do rumo que a sociedade deve tomar, ou acaba por tomar.

Pegando na definição de selectividades estratégicas estruturalmente inscritas de Bob Jessop que afirma que, “determinadas estruturas reforçam selectivamente formas de acção, tácticas e estratégias específicas e desencorajam outras (2010)”, podemos concluir que o campo de disputa em torno do discurso “oficial” é elevado - nesse sentido, é útil focar a proposta de abordagem relacional estratégica desenvolvida por Bob Jessop. Sucintamente a teoria do referido autor, pretende ultrapassar a dicotomia acção/estrutura, a dicotomia mundo social/natural e a dicotomia cultura/sociedade. O uso do tempo e do espaço, e a forma como este se traduz para a narrativa social “oficial” é fulcral, e frequentemente utilizado pelos corpos sociais em disputa, aliás como refere Jessop “estratégias e tácticas podem ser orientadas para horizontes espácio-temporais mais apropriados ou para mudar as formas de governação espácio-temporal ou para a narrativa reflexiva do passado e do presente para modificar o futuro (uso estratégico do tempo e do espaço).

A capacidade dos discursos se institucionalizarem para darem corpo a medidas e decisões concretas dependem, nem sempre uma retórica aparentemente maioritária se configura em tomadas de decisão. A capacidade de transformar a narrativa em estratégia política, é lapidar neste processo, por outro lado, depende do controlo exercido sobre “organizações-chave, redes e configurações institucionais de inclusão, exclusão e dominação, controle sobre recursos estratégicos, capacidades técnicas, mídia instrumentos disciplinares e meios de coordenação, as qualidades de agentes individuais e colectivos particulares e conjunturas particulares (idem)”.

Materializando, a detenção de conteúdo e de forma discursiva para a criação de uma hegemonia no campo das ideias - o que de um ponto de vista gramsciano, significa a detenção da hegemonia ideológica – aliado ao controlo das vias de transmissão de informação dominantes – imprensa no seu campo amplo – e influência no aparelho de Estado, afiguram-se como os ingredientes base para a institucionalização das políticas.

Se regressarmos temporalmente ao estalar da crise, quando foi notório que o discurso oficial e oficioso quebrara, muitos autores assumiram esse acontecimento como falecimento da globalização neoliberal, como foi o caso de Immanuel Wallerstein.          Isto é, no campo das ideias e dos rumos políticos o modelo neoliberal, já não se configurava solidamente como referência política e ideológica, o que deu azo, a um “contexto de desorientação cognitiva e estratégica das forças sociais e proliferação de interpretações discursivas e soluções materiais propostas (idem),” ou como lhe chama Claus Offe na sua definição de crise da gestão da crise “quando as respostas normais já não funcionam. Podem implicar estagnação ou regressão, levar a esforços para inovação, a regimes excepcionais ou tentativas de mudar estes regimes(idem)”.

A crise de legitimidade da globalização hegemónica neoliberal - “podemos definir globalização hegemónica como o processo através do qual um dado fenómeno ou entidade local consegue difundir-se globalmente e, ao fazê-lo, adquire a capacidade de designar um fenómeno ou uma entidade rival como local (Santos, 2001) – abriu fendas na narrativa dominante, é dentro desse âmbito que se pode interpretar o mea culpa do Governador da Reserva Federal Americana e Nobel em economia Alan Greenspan¹, sobre a crise financeira, derivada da flexibilização e liberalização das regras do mercado e ausência de regulação por parte do Estado, ao que se aliaram processos de intenções por parte dos principais dirigentes mundiais contra os paraísos fiscais e ausência de políticas reguladoras dos mercados financeiros.

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1 "It is important, indeed crucial, that any reforms in, and adjustments to, the structure of markets and regulation not inhibit our most reliable and effective safeguards against cumulative economic failure: market flexibility and open competition." Disponível em: http://www.ft.com/cms/s/0/edbdbcf6-f360-11dc-b6bc-0000779fd2ac.html#axzz1j6272u1F

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Ou como afirma Jessop em vez disso, a crise emerge quando padrões estabelecidos para se lidar com contradições estruturais, suas tendências-a-crise e dilemas não funcionam mais conforme as expectativas, e quando o fato de continuar contando com aqueles padrões arrisca agravar a situação (2010).

A mudança da narração por parte dos narradores, contrariando o que eles próprios estabeleceram como regra, norma ou manual de actuação estabelecido, é demonstrativa do supracitado de Bob Jessop. O não funcionamento como apregoado, obriga a que se crie uma nova narrativa, o que, tal como se foi discutindo, abre brechas, espaços, ao cinzentismo pensante do stablisment, assistindo-se, retomando o autor, “as crises incentivam a semiótica bem como a inovação estratégica. Elas suscitam, muitas vezes, uma notável proliferação das visões alternativas enraizadas nos sistemas semióticos e ordens semióticas, antigos e novos. Muitos desses invocam, repetem ou re-articulam géneros, discursos e estilos estabelecidos; outros podem desenvolver, nem que seja parcialmente, uma “poesia para o futuro (MARX, 1852/1996 apud Jessop, Bob, 2010).  ”, que ressone com novas potencialidades (idem)”

É dentro destas fronteiras conjunturais que proliferam disputas ideológicas/narrativas, sobre as causas da crise, bem como as soluções para a resolver. São autênticos momentos de descompressão do poder das ideias dominantes ¹ e da hegemonia estabelecida - “A hegemonia é um processo que expressa a consciência e os valores organizados praticamente por significados específicos e dominantes, ou seja, a hegemonia de um grupo social equivale à cultura que esse grupo conseguiu generalizar para outros segmentos sociais” (Gramsci, apud Kohan, Nestor 2009)” – que permitem a penetração de explicações alternativas e de mobilização de forças alternativas ao status quo, de forma a influenciarem o rumo das políticas e da sua consequente institucionalização.

É de acordo com este paradigma que se disputam geralmente as narrativas em momentos de crise, retomando Bob Jessop, existem várias interpretações, seja dentro do campo dominante ou do campo das interpretações alternativas.

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1“Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material dominante numa sociedade é também a potência dominante espiritual. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe igualmente dos meios de produção intelectual; de tal modo que o pensamento daqueles a quem é recusado os meios de produção intelectual está submetido igualmente à classe dominante. Os pensamentos dominantes são apenas a expressão ideal das relações materiais dominantes concebidas sob a forma de ideias e, portanto, a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante; dizendo de outro modo, são as ideias e, portanto, a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante; dizendo de outro modo, são as ideias do seu domínio”. (Marx, 1976: 33)

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 A explicação dominante afirma que se trata de uma crise de acumulação financeira, que pode ser resolvida através de um massivo, mas temporário, estímulo financeiro, recapitalização dos bancos (mas não todos) maiores em estado vulnerável, maior regulação e a implementação de um regime económico internacional reformado (mantendo-se neoliberal) (…) estas medidas terão custos necessários advindos do orçamento público, que levarão a cortes nas despesas públicas. O que permitirá regressar ao business as usual neoliberal. (Jessop, Bob).

Para além desta enunciação do autor, é curioso olhar para outro seu argumento, que afirma que todos são culpados pela crise, pois a ganância e o consumo excessivo foi generalizado. Razão que aponta para a reduzida mobilização contra as medidas anunciadas por diversos governos, e o que permite legitimar a não regulação das instituições de crédito.

Os principais actores desta estratégia de intervenção são o G20, FMI, Banco Mundial, Banco Central Europeu, União Europeia e os respectivos governos nacionais.

Do “outro lado” desta narrativa, florescem outras explicações, como já tinha sido afirmado, que assenta o seu argumento no controlo sobre os mercados financeiros, o recuo do neoliberalismo, limitar a influência do sector financeiro e incrementar o investimento na economia real e na criação de emprego.

É sabido, que a perspectiva dominante, tornou-se também dominante na implementação, pois tem maior potencial de retenção, que tem passado, segundo Jessop: por reestruturar, recapitalizar e nacionalizar os bancos e consequente colocação dos activos tóxicos dos bancos nas mãos dos bancos estatais; keynesianismo estatal invés de keynesianismo privado, até aqui sustentado através do consumo pelo crédito; Mudança na arquitectura mundial, o que se tem afigurado como difícil, nesse sentido, tem-se optado por modificar as antigas instituições, passando o G8 a dar cada vez mais lugar ao G20; A viragem para mercados em crescimento como os BRIC, que se afiguram como boas perspectivas de investimentos e uma saída para as economias mais desenvolvidas que crescem a baixo ritmo, ao mesmo tempo que se procura fazer deles parceiros para uma regulação multilateral; remoralização do capitalismo, através da responsabilidade social e da competição responsável; Green New Deal: restauração do crescimento económico através das indústrias verdes.

Existem outras soluções e propostas, para além das descritas - e que os demais países intervencionados ou com planos de austeridade em curso têm conhecido. Como não são enunciados por actores que detenham recursos legislativos e económicos, a fim de impor uma via alternativa para a ordem económica global, não são aplicados.

Dentro deste campo, Jessop refere como proponentes alternativos: relatório Stiglitz; soluções regionais autónomas que procuram o seu afastamento das soluções do Norte Mundial (ALBA e Fórum Monetário Asiático); reajustamente na relação capital/trabalho para promover emprego e trabalho decente; incrementar a ligação entre desenvolvimento económico e protecção social; investimento nos pobres; estratégias de desenvolvimento alternativo, reformas fiscais, encerramento dos offshores e taxação das transacções financeiras; Proliferação de outros paradigmas (Forúm Social Mundial).

Apesar das interpretações sobre a crise serem variadas, tal como fora explicitado, as soluções dominantes provieram da mesma narrativa, que desde os anos 70/80 estabeleceu as condições e as contradições para que ela se concretizasse.

Apesar de se ter registado durante um curto espaço de tempo uma aparente brisa de mudança por parte dos governadores económicos e políticos, que poderia apontar para uma vontade – confrontada com a dureza empírica do colapso económico e financeiro – de rumo diferente, isso não se veio a registar, podendo-se determinar hoje, que toda essa janela, foi essencial para a materialização de uma nova narrativa. A culpabilização dos mercados financeiros e da ganância dos banqueiros, transformou-se numa retórica de culpabilização dos comuns e de obrigatoriedade dos estados adoptarem medidas intervencionistas de “salvação” do capital financeiro, em detrimento da economia real.

A velocidade com que se passou do julgamento dos administradores da Goldman Sachs para a necessidade de reduzir a despesa pública, foi estonteante. A atenção pública foi de forma célere reorientada para a necessidade de reduzir os serviços públicos, os trabalhadores do aparelho de estado, cortar os salários e pôr fim às “gorduras do estado”, caso contrário não se conseguiria “acalmar os mercados” e recuperar a confiança dos credores.

Notas

1. Bob Jessop é professor na Universidade de Lancaster.

 

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