A vítima que ainda não é apenas-vítima Versão para impressão
Quarta, 04 Julho 2012

 

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No final do mês de junho, o jornal I trazia a público um estudo de Madalena Duarte, investigadora do ICS, que revelava que as mulheres vítimas de violência doméstica continuam a ser consideradas em parte "culpadas" pelos tribunais portugueses. No cerne da questão estão os estereótipos de género ainda prevalecentes na sociedade portuguesa.

Esta notícia e as conclusões do respetivo estudo, ainda que lamentáveis e frustrantes, não são extraordinárias. O crime de violência doméstica que conta apenas (ou já, conforme o ponto de vista) com 30 anos de existência legal, ainda não está irrevogavelmente aceite e plenamente entendido e inscrito na mentalidade portuguesa. De um ponto de vista teórico, pode-se arriscar afirmar que ele é consensualmente aceite como crime. Mas na sua prática, quando chega o momento da sua análise e escamoteamento, facilmente surgem os obstáculos. E nenhum deles é tão corriqueiro como a averiguação da dose de culpa da vítima. É frequente, após o relato entre amigos ou conhecidos de um caso de violência doméstica, surgir a pergunta "Mas o que é que ela fez?" Como se a agressão tivesse que ter sido provocada, tivesse obrigatoriamente uma causa e, logo, uma atenuante. "O que é que ela fez para o provocar?", é a pergunta que surge ainda tão corriqueiramente e que procura implicitamente atribuir uma parte da culpa à vítima.

O mesmo fenómeno acontece quando nos deparamos com casos de violação nos media; quantas vezes as próprias notícias revelam factos que procuram declarar implicitamente que a vítima "estava a pedi-las": "Andava sozinha à noite numa parte duvidosa da cidade...", "Vestia uma mini-saia/decote sugestivo...", "Estava bebêda...". No fundo, afirmando que o agressor foi motivado a cometer tal crime brutal porque a vítima "se pôs a jeito".

Esta infeliz e extremamente perigosa lógica de desculpabilização do agressor através da atribuição da culpa à vítima está presente não só nas conversas de café e na mentalidade geral, como também - e de forma mais preocupante - nas decisões judiciais. No caso da notícia avançada pelo jornal I, foi dado o exemplo de um marido acusado de homícidio, cuja pena recebeu uma atenuante pelo facto de a sua mulher se ter recusado a ter relações sexuais com este. Outro caso, o de uma vítima culpabilizada pelo facto de ter insistido em falar com o seu agressor apesar de este se encontrar visivelmente enervado. Outro caso ainda, onde uma dose de culpa é atribuída à vítima pelo facto de esta não ter denunciado a situação com antecedência suficiente.

Temos com estes casos, especialmente com o primeiro, refletida a lógica pela qual a mulher ainda é tida e avaliada nos tribunais portugueses: a sua dimensão de esposa e mãe, com os deveres inerentes a estes papéis. Esta dimensão de análise sobrepõe-se ainda muitas vezes à dimensão fundamental da mulher enquanto pessoa com direitos inerentes, entre os quais figura o direito a não ser agredida física, psicológica ou sexualmente, seja em que circunstância for.

É certo que o direito espelha a sociedade que este regula, bem como a mentalidade predominante. Uma velha questão divide ainda hoje feministas: saber se o direito, enquanto reflexo do modelo de organização patriarcal da sociedade, é eficaz na luta pela igualdade de género. Existe a dúvida sobre a capacidade de o direito, codificador do status quo por excelência, ser capaz de salvaguardar as conquistas feministas, os avanços na igualdade de género que favorecem as mulheres e tentam minar a lógica do desequilíbrio de poderes que favorece os homens desde o início da civilização. Algumas feministas vão mais longe neste questionamento, afirmando que as conquistas no âmbito da igualdade da cidadania, como é o caso da igualdade salarial, de oportunidades e de representação política, nunca poderão ser consolidadas enquanto a igualdade na esfera privada não for alcançada, enquanto a violência doméstica não for erradicada e os papéis estereotipados de género efetivamente abolidos.

Não obstante o mérito destas considerações, a verdade é que a luta pela igualdade de género tem necessariamente de assentar na conquista de direitos, direitos esses que terão que ser inscritos na legislação para poderem ser efetivamente protegidos pela lei e pela justiça.

O problema, bem espelhado nos casos referidos pelo jornal I, surge quando a própria justiça é permeável aos estereótipos de género presentes na sociedade e desenvolve racionalidades próprias para justificar o status quo. Madalena Duarte concluiu no seu estudo sobre os obstáculos que a aplicação da lei enfrenta em Portugal que a mulher é vista pelos tribunais portugueses segundo três lentes:

- a de "Maria", esposa e mãe dedicada que tentou tudo para salvar uma relação pontuada durante anos por maus tratos, e que é vista como clara vítima;

- a de "Eva", eterna tentadora mulher que leva o homem a agredir, através do seu comportamento sedutor ou irritante, e que portanto não tem a empatia do tribunal oferecida a "Maria";

- a de "Super Mulher", aquela que ganha o seu próprio sustento, com recursos para se defender e que igualmente a Eva é olhada com desconfiança pela justiça no seu papel de vítima.

Esta categorização da mulher face ao crime de violência doméstica, averiguada pela investigadora através do discurso de magistrados e outros funcionários judiciais portugueses, vem comprovar que a mulher raramente é dada como vítima sem quaisquer considerações adicionais: "é vítima mas..." em oposição ao "é vítima, ponto final" que deveria ser ponto assente quando está em causa o crime de violência doméstica em Portugal.

Sara Reis



 

 

Referências:

"Violência Doméstica e Sua Criminalização em Portugal: Obstáculos à Aplicação da Lei", Madalena Duarte, Sistema Penal e Violência, Vol. 3, Nº 2, pp. 1-12, 2011

"Vítimas de violência doméstica 'culpadas' em tribunal", in I online, http://www.ionline.pt/portugal/vitimas-violencia-domestica-culpadas-tribunal, acesso em 4 julho 2012

 

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