Um bom debate |
Quinta, 12 Julho 2012 | |||
A detecção há muito esperada do Bosão de Higgs , uma partícula elementar que, a ter realmente existência conforme a previsão teórica de Higgs há cinquenta anos atrás, vem preencher um vazio que, a manter-se, poria em risco toda a actual concepção teórica do universo. Artigo de Mário Tomé De facto no estado actual de compreensão do universo a infinidade de partículas que o compõem não têm massa, o que levaria ao paradoxo total: a matéria sem massa. O Bosão de Higgs é o elemento que permite que a concepção teórica possa ser considerada completa, pois é essa partícula e o campo que lhe está associado e que preenche o universo, que na interacção com as outras partículas elementares lhes confere a massa que constitui a matéria do universo. Talvez por causa da tal malfadada e censurada expressão do cientista em torno do estudo da hipótese teórica da partícula, goddam the particle, “porra para a partícula”, ela ficou associada ao nome de Deus, a partícula de Deus, que continua a escrever direito por linhas tortas, a apresentadora do programa, Fátima Campos Ferreira, colocou o debate em torno da descoberta que tanto entusiasmo despertou na comunidade científica no seu contacto com a hipótese de Deus. A discussão entre os participantes deu um importante contributo para a divulgação do pensamento científico teórico e da sua aplicação prática nomeadamente ao progresso tecnológico. Foi marcada oportunamente pela descasca bem fundamentada e vigorosa que os três cientistas e a professora Olga Pombo deram na política do governo, acusando-a de ser uma ameaça para a participação de vanguarda de já centenas de cientistas nas investigações do CERNE pondo mesmo em perigo fases fundamentais do processo da responsabilidade de Portugal, e ainda um ataque violento ao contributo de toda uma geração de novos cientistas e investigadores para a formação e sustentação do processo educativo e formativo dos novos professores e investigadores num campo em que Portugal se tem distinguido mundialmente. Os dois teólogos, professor de filosofia um, professor de física das partículas o outro, lançaram desafios à ciência na sua relação com Deus. Nomeadamente, invertendo os termos do quebrado divisor: seria da ciência a pretensão do dogma e da religião, católica, a abertura ao conhecimento. De jesuítas só o Padre António Vieira que usou a retórica e a dialéctica metafísica contra o poder e o Padre Manuel Antunes que teve uma abertura de espírito que, em tempos de opróbrio e solidão, foi uma arma poderosa na formação de pessoas livres. A resposta dos cientistas foi segura até que aceitaram deitar-se com o inimigo. Ou seja entraram na tal conversa dos cientistas que conseguem sê-lo independentemente das suas convicções religiosas, o que não é novidade. E de que a ciência não pode imiscuir-se nas questões de Deus, se bem que Alfredo Dinis e Bruno Nobre tenham dado indicações precisas de até onde a ciência pode ir. Aliás, Bruno Nobre, professor de Física das partículas na Universidade Católica, dá-se melhor com as questões teológicas dado que sublinhou que do estudo das partículas não se podem deduzir as leis da química, para explicar que, citando o físico Phillip Anderson, das realidades elementares da física não se podem deduzir directamente as leis mais vastas… Bem, uma das descobertas já antigas da ciência é a de que as leis da química decorrem das propriedades dos átomos tendo a química, portanto, por suporte estrutural, a física. Ficou bem patente, entretanto, a questão fundamental: a religião está acantonada e aprisionada pelo dogma ao passo que a ciência é a exigência da liberdade e da interrogação permanente. Olga Pombo deixou isso bem claro apesar de o teólogo e professor de filosofia Alfredo Dinis pretender que a religião, católica frisou, aceita tudo praticamente que a ciência, desde que lhes deixem “Deus criador do céu e da terra”. O resto são trocos. Onde já chegámos. De facto, a Igreja a isso foi obrigada pela própria vida que tentou impedir de correr durante dois milénios. A afirmação que ficou a pairar, e que se pode debitar a todos, de que a ciência saiu do mundo religioso (a perene devoção de Galileu mesmo depois de contrariar a doutrina da Igreja e de ter sido punido por isso) e a sua racionalidade se ficou a dever até certo ponto à evolução da religião para o monoteísmo, merece contestação De facto, a ciência nasceu da filosofia que teve o seu berço na Grécia do politeísmo e foi violentamente atacada no seu método e na sua liberdade crítica pelo surgimento da religião monoteísta. O dogma apoderou-se do pensamento e o saber foi capturado pela Igreja, sendo a Abadia de Cluny a referência máxima do enclausuramento e da monopolização do saber. O “Nome da Rosa”, livro de Umberto Eco adaptado para cinema por Jean Jacques Anneau, dá-nos uma vívida ideia de como o saber foi ciosamente sequestrado pela hierarquia para não pôr em causa o dogma. A relação dos cientistas com a religião não pode ser entendida da mesma forma que a relação da ciência com a religião. De facto há muitos cientistas que precisam de Deus. A ciência é a forma única, conhecida, de perscrutar o universo. Mas Bruno Nobre viu claro (como teólogo ou como cientista?) quando afirmou que se a descoberta de Bosão de Higgs não se confirmar (a ciência admite que há uma probabilidade de 3 em 10 milhões de não se confirmar, como referiu João Varela) isso abre um campo ainda mais vasto à ciência abrindo mesmo a hipótese radical de mudança de paradigma. Eis o que para a ciência é um desafio e para a religião a esperança vã da capitulação perante a resposta fácil e irracional de Deus como o arquitecto do universo, embora os católicos finjam que o criacionismo, como rejeição da evolução darwinista, lhes é estranho, como jurou o professor Alfredo Dinis. A ciência dispensa Deus; não precisei dessa hipótese, respondeu Laplace a Napoleão quando lhe apresentou o Tratado de Mecânica Celeste e o imperador lhe perguntou onde estava Deus. E, no paradigma actual de compreensão do universo, a ciência nega Deus, na medida em que ele não pertence à teoria geral do universo confirmada pelo previsto, esperado e muito provavelmente confirmado Bosão de Higgs Mas o nosso físico teólogo, agora pós-moderno, lançou que o mundo não é só o que mostra a ciência. O olhar e o sentir uma flor escapa-lhe. A música, a pintura, eu sei lá! Claro que sim. Escapa-lhe enquanto fenómeno estrito de sentir próprio individual ou colectivo. O espírito em acção. Livre de amar e de sonhar. Mas o que não escapa à curiosidade crítica da ciência e à sua investigação são os processos materiais, físicos e químicos que proporcionam as maiores, melhores ou desgraçadas fruições e sentimentos, desde o amor ao ódio, do desespero à alegria mais esfusiante. A heresia, como dirão muitos, de ver os mais nobres e sublimes sentimentos reduzidos, pelo princípio da incerteza de Heisenberg, ao caos quântico. Quando falo de hino ao materialismo refiro-me ao materialismo dialéctico por muito que isso aborreça o professor Gaspar Barreira, que muito admiro, aliás, que não conseguiu escapar à abordagem ideológica de uma questão científica. Mas aí, admito e reconheço, a culpa não é dele. Eis uma questão a ser repetidamente abordada e questionada dum ponto de vista científico, ou seja: o método científico estará ou não indissoluvelmente ligado, numa prática necessária, consciente ou inconscientemente, ao materialismo dialéctico? A dialéctica materialista será ou não a lei mais universal de todas as leis? Não será através dela que se poderá chegar à compreensão de uma lei geral do universo que tantos e tantos cientistas, incluindo Einstein, têm procurado e que seria essa sim a resposta da ciência àqueles que querem, dizendo o contrário, substituir a ciência “abstracta”, não os seus resultados práticos claro, pela ideia de Deus? Uma palavra final para a professora Olga Pombo que, no meu entender, deu um colorido muito especial ao debate ao posicionar-se tão eficazmente na afirmação da filosofia, neste caso a filosofia da ciência, como pilar e pedra angular do pensamento crítico. Como disse Engels, num tom talvez demasiado peremptório, cito de memória antiga, “por muito que isso possa custar aos cientistas, eles nada seriam sem a filosofia”. Neste debate geral o que está em causa, para além das questões próprias da religião e da ciência, é a necessidade de nos assegurarmos que a cidadania acede à compreensão do método crítico da ciência, única forma, cito uma vez mais Sagan, de distinguir a verdadeira ciência da pseudo-ciência, já que ambas nos são apresentadas como verdades insofismáveis, de distinguir o que nos agrada do que é verdadeiro. E, quando os elementos fundamentais da nossa civilização dependem (até as eleições) da ciência e da tecnologia, e quase ninguém os compreende, temos a receita para a catástrofe. Uma mistura explosiva de ignorância e de poder. Nos dias de hoje, sob a avalanche brutal da manipulação das consciências para aceitarem o absurdo com base no medo e na ignorância, debates como este a que tenho vindo a referir-me, são de grande importância.
*As citações de Carl Sagan são da sua última obra escrita de divulgação: “Um mundo infestado de demónios”
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