Manifestação de 14 de Novembro de 2012 – o outro lado da novela |
Sábado, 17 Novembro 2012 | |||
Deixem-me que desde já deixe claras duas coisas. Primeiro, a actuação dos manifestantes violentos é condenável a todos os níveis e iniciou o descalabro a que se assistiu frente à Assembleia da República; segundo, lamento o registo de tantos feridos, quer entre civis quer entre policias. Isto dito, e com todo o ênfase que merece para que fique bem claro, cabe-me hoje, enquanto cidadã que sofreu injustificadamente uma carga policial violenta, condenar, em contrariedade ao estado patético da nação, a actuação policial. Comecemos por deixar claros alguns pontos: não pertenço a qualquer partido político, não represento qualquer instituição, órgão de comunicação social ou grupo cívico, não atirei pedras a ninguém, não sou suspeita de qualquer tipo de crime de desobediência ou vandalismo. Entremos agora nas questões de fundo, e em tom de resposta às acusações com que todos os que não participaram na selvajaria de alguns arruaceiros mas estavam naquele local têm sido confrontados. Nesta espiral esquizofrénica assiste-se a um pouco de tudo. Desde acusações de ter o dever omnipresente de perceber tudo o que se passa em todas as frentes de um largo com cerca de 1000 pessoas, a acusações de não poder, pelo mero facto de lá se estar, ver tudo o que se passa para poder condenar a actuação policial. Esta curiosa dualidade parte de um facto extra e que me assusta muito mais do que a polícia em fúria: o poder dos media. Aquilo que nos entra em casa pela televisão acreditamos que seja lei universal. Muita gente insiste em dizer “mas eu vi”, como se lá tivesse estado, como se a TV tivesse um ângulo de 360 graus, como se tudo o que nos dizem os media fosse verdade absoluta. “Eu vi” e portanto tu que lá estavas nada sabes. É um fenómeno tragicamente curioso e que mostra bem o poder que os meios de comunicação social exercem sobre a população, capaz de lhes moldar a mente. Posso concordar que todos nós temos só ângulos de um quadro total, quer na TV, quer presencialmente, mas no meu ângulo o que eu vi foi uma multidão a correr em minha direcção, a polícia a cercar-nos contra o muro junto à Travessa da Peixeira e a bater com os seus bastões em todos os objectos movíveis, idosos, jovens, crianças, com ou sem pedras na mão, naquele ou em momento anterior. E por trás dos seus escudos e capacetes e coletes anti balas e sob todo o seu intenso treino policial a bater essencialmente na cabeça ou no tronco de todos e por vezes mesmo com o cano de ferro do bastão. Não ponho em causa a necessidade de intervenção policial, coloco outrossim a sua actuação durante a mesma. Até nas imagens cuidadosamente seleccionadas que todos podem ver na TV é possível ver quem são os manifestantes em desacato e quem são os manifestantes (e transeuntes) que não promovem qualquer tipo de violência. E mesmo nessas imagens é possível ver como a polícia de intervenção agrediu a todos indiscriminadamente e como as bastonadas assentam duramente sobre as suas cabeças. O que as imagens já não são capazes de mostrar é o pânico, é a forma como fomos encurralados ali, com duas opções: saltar o muro de cerca de 5m ou levar bastonadas; é a senhora idosa que ao saltar, depois de levar umas quantas bastonadas, caiu mal e ficou inconsciente no chão; é a criança de 13 anos a chorar com o tronco carregado de hematomas arroxeados e inchaços; é o senhor que grita enquanto lhe batem na cabeça “deixem-me passar por favor, eu não fiz nada” e o polícia que o ignora e continua; é a quantidade de gente que salta por todos os lados, empurrando-se, caindo uns sobre os outros; é o polícia que continuam a bater mesmo quando a pessoa já está estendida no chão. Mas isto ninguém viu mas também não se interessa por averiguá-lo ou sequer considerar que tenha sido real, porque a polícia teve um papel “heróico e estóico” ao aguentar pedradas sobre os seus capacetes e petardos à sua frente durante uma hora. E não contesto como esse momento foi de facto errado e violento e como em nada acresce a qualquer argumento válido de revolta, muito pelo contrário. Aquilo que me surpreende é ver como ninguém questiona porque é que a polícia, com uma quantidade de agentes muito superior à dos arruaceiros e com agentes à paisana, todos eles treinados para controlar grupos marginais dentro de multidões, e que estavam visivelmente a identificá-los, como e porque é que esses polícias esperaram uma hora para intervir? E mais importante ainda, porque é que ao fazê-lo fizeram-no sobre toda e qualquer pessoa, mesmo quem sabiam (porque sabiam) não estar envolvido e perseguiram todas as pessoas pelas ruas adjacentes? Surgem depois duas outras acusações sobre quem não participou em qualquer acto de violência: porque não dispersaram ao ser avisados de que a polícia iria atacar? Porque ainda lá estavam se havia quem atirasse pedras? Quanto à primeira questão, o aviso, se o houve, e acredito que sim pelo que agora vejo na TV, foi feito aos manifestantes que estavam em frente à escadaria. Se qualquer um de vós conseguir ouvir um comunicado por entre os gritos de ordem e os ocasionais petardos quando está do outro lado do largo, dou-vos os meus parabéns pela audição sobre natural. Mais importante do que isso é a pergunta que em resposta se impõe: desde quando é que um aviso dá carta branca para atacar indiscriminadamente qualquer pessoa (ou objecto, se considerarmos o pontapear de bicicletas) nas redondezas? Quanto à segunda questão, posso responder apenas o que me movia a mim e às pessoas à minha volta, mas essa questão é absolutamente irrelevante porque independentemente das minhas razões eu não ataquei ninguém, não atirei pedras nem garrafas, não compactuei com essa actuação, não a incentivei, ainda briguei com quem apanhei a fazê-lo tentando tirar-lhes pedras da mão e mesmo que não o tivesse feito eu não provoquei qualquer desacato, assim sendo, qual a legitimidade da polícia de intervenção para me atacar? O uso de força de um corpo de intervenção para controlar uma população insurgente é natural, mas não só tem limites legais como não permite alastrar a quem não está sequer no meio da multidão, como é o meu caso, que caminhava rumo a casa precisamente por sentir que aquela manifestação que começou pacífica e civilizada, lutando pelos direitos que são de todos nós e pelo fim de um status quo que deixa a todos descontentes, estava a desvirtuar-se. E há quem pergunte, se estavam a atirar pedras há uma hora porque só afastar nessa altura? Essa moralidade do “eu faria melhor” não se coaduna com um debate racional, particularmente quando é seguido por conclusões como “é porque estavas a pedi-las”. Mas se querem a resposta é simples. Porque a causa é maior que uns quantos inergumenos e portanto acreditei que o facto da maioria ali estar pacificamente conseguiria superar a minoria idiota. E tentei até fazer o papel da polícia e dissuadir quem cometia desacatos, tal como outros o fizeram, mas como deveria ser auto-evidente não só não é essa a nossa função, mas sim a da polícia, como também não é possível fazê-lo sem meios e muito menos conhecimento de controlo de grupos agressivos. Deveria ter ido embora mais cedo? Talvez, mas essa questão foge ao escopo do que se deveria tentar avaliar: houve ou não uso excessivo de força por parte da polícia de intervenção? Eu, pelo que vi, digo que sim. Não aceito a ideia de “danos colaterais” e muito em especial quando não estávamos no estado de perfeito caos que se seguiu à intervenção policial. Mesmo esse momento posterior traz consigo outros contornos ainda mais arrepiantes ao Estado de Direito em que alegadamente vivemos. Detenções ilegais, coacção à assinatura de documentos em branco, impedimento de acesso a advogado ou mesmo de contactar a família, entre outros abusos também já denunciados pela própria Ordem dos Advogados. À violência respondeu-se com mais violência e o resultado foi a entrada no abismo de uma aproximação a estado de sítio. Tudo isto encoberto por uma suposta legitimidade ao arrepio da Constituição. E as consequências são claras. Manifestações mais violentas se seguirão porque os arruaceiros sentem-se fortalecidos; menos manifestantes pacíficos em próximas manifestações por medo de ver repetidos estes episódios; a aceitação generalizada de inflexões à legalidade; vítimas de agressão policial abusiva que nunca verão justiça ser feita e viverão com as sequelas desse crime aceite e louvado pela generalidade da população; um total esquecimento daqueles que são os reais resultados da greve geral e a atitude cívica de muitos portugueses e portuguesas acompanhados de nacionais de outros países em demonstração do seu descontentamento pela situação nacional, europeia e mundial. O meu apelo é simples e claro: faça-se justiça, e isso implica reconhecer que a violência começou na manifestação e deveria ser efectivamente controlada pela polícia, mas também que houve uso excessivo de força, nomeadamente atacando quem não cometeu qualquer desacato e foi seguida de procedimentos de legalidade duvidosa. Ana Ferreira
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A Comuna 33 e 34
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