Anti-austeridade: condição necessária...mas suficiente? Versão para impressão
Segunda, 24 Fevereiro 2014

virar à esquerdaPode parecer que esta reflexão está desfasada no tempo porque agora o léxico político deslocou-se para o "pós-troika" e o modelo de saída do "programa de ajustamento", contudo a austeridade das políticas de classe é um processo perpétuo e condição inerente. Aliás, a austeridade enquanto palavra dominante na sociedade apenas surge pela velocidade que a degradação das condições de vida assumiram, na prática o projeto de longo prazo sempre foi descobrir novas formas de continuar e agravar a exploração porque a dominância de classe assim o exige. Não existe aqui nenhuma vingança mesquinha, são circunstâncias da coisa. Da finitude dos mercados e das suas possibilidades resultam processos agressivos e violentos em curtos espaços de tempo, os tais "ajustamentos". Mas nesta voracidade onde se situa a esquerda? Qual a resposta ou quais as respostas?

A primeira resposta óbvia é a de resistência contra a austeridade e a degradação das condições de vida, mas as respostas óbvias fazem uma parte do caminho, não todo. É indispensável, aliás, impensável que pelas esquerdas parte da resposta não seja a de pôr fim ao processo de empobrecimento coletivo, contudo há diferentes perspetivas e até divergentes que emanam do discurso anti-austeridade. A resposta da esquerda socialista é a de pôr um travão e fazer marcha atrás no processo de erosão salarial (seja salário direto ou indireto), a resposta da esquerda "social democrata" é que pomos o pé no travão mas a "consolidação orçamental" não está em causa. Ou seja, a segunda versão anti-austeridade é a da raposa: somos contra mas há fatores que ultrapassam a nossa bondade política e por isso até podemos fazer mais do mesmo. Sendo certo que mesmo a não haver "necessidade" de novas medidas, a versão PS nunca se compromete com a recuperação do roubo já efetuado. Na prática a segunda versão nem é anti-austeridade, ela só assume que os mercados e a recuperação económica resolverão as tensões que se agudizaram neste ciclo, ou seja se a incapacidade de gerar novos mercados continuar esta "esquerda" não tenciona mudar rigorosamente nada.

Nas respostas óbvias segue-se um processo lógico, e a esquerda socialista nesse processo concluiu que o que seria necessário era um espécie de novo new deal (redundante, é certo). Esta resposta é muito mais séria, porque preocupada em resolver os problemas de curto prazo da população, quer devolver poder compra já e nesse processo, e perante a falência dos mercados, gerar investimento público que não seja porta de fundo para negociatas privadas. Mas a bondade esbarra na realidade, e a razão está nos pressupostos. Há aqui uma ideia base, que podendo resultar da análise da correlação de forças, assume a recuperação salarial com base em novo crescimento. Ou seja, admitindo que, perante grande conflitualidade entre capital e trabalho num cenário de não crescimento da economia, a esquerda não terá a capacidade de equilibrar a balança, ou seja, expropriar e taxar o capital, assume uma espécie de fuga para a frente onde o crescimento económico evitaria essa tensão...mas não outras de resolução mais fácil. O crescimento económico deve ser instrumental das necessidades humanas, ele deve ser a resposta natural de novas ou acrescidas necessidades, torná-lo instrumento de recuperação de um roubo afasta-o do seu propósito. Não admira que teóricos como David Harvey falem em crescimento zero, porque reconhecem a insustentabilidade da demanda por crescimento contínuo das economias capitalistas.

A florescência dos mercados especulativos é por um lado o resultado da incapacidade de gerar novos mercados de consumo real, mas note-se que perante falta de soluções o capital não evita a conflitualidade. Se faltam mercados, o capital ataca o Estado social e os seus sectores estratégicos e ainda vai aos mercados especulativos, onde nada se cria e tudo se ganha, procurar um reajustamento entre a burguesia, sendo que a fatura desse reajuste será paga pelo trabalho.

A ideia de um "new deal" para Europa não responde ao cerne da questão: não foi resultado de anos de crescimento (as vacas gordas) a criação da sociedade mais desigual que há memória? Não será que os "anos de bonança", onde a burguesia e povo perspetivaram progressos em simultâneo, eram na realidade uma mistura insolúvel que se fingiu possível? Que tipo de crescimento vamos ter? Vamos ter o crescimento clássico baseado no lucro? Como se gera lucro sem, em menor ou maior espaço temporal, gerar nova crise e uma sociedade classista? Nem sequer aqui é mencionado o contexto histórico do new deal que hoje não existe dada a hegemonia mundial do capitalismo.

Assume-se como interessante e produtiva a reflexão sobre as condições que uma esquerda progressista desenha para implementar uma transformação social suficiente para que não seja, novamente, apanhada nas contradições de quem navegou sem nunca fazer frente ao mercado. Por diversas vezes surge a errónea ideia de que a esquerda tem gosto pela conflitualidade, quando é na realidade a necessidade material de transformar a sociedade que obriga a esquerda a revelar a conflitualidade existente em palavras tão singelas como "mercado". A conflitualidade não é a nossa natureza mas está natureza do caminho necessário e a esquerda faz o caminho necessário...

João Dias