QUE FORÇA FOI ESSA, ABRIL E MAIO? Versão para impressão
Quarta, 07 Maio 2014

Que força foi essa, Abril em Maio. Maria João Barbosa40 anos depois de Abril, o que vemos: salário mínimo inferior ao de 1974, 120 mil crianças com fome, 2 milhões de pobres, desmantelamento do Serviço Nacional de Saúde, da Escola Pública e da Segurança Social.

 

testemunho de Carlos Vieira e Castro

 

Que força é essa
que força é essa
que trazes nos braços
que só te serve para obedecer
que só te manda obedecer

Que força é essa, amigo
que te põe de bem com outros
e de mal contigo
Que força é essa, amigo

Não me digas que não me compr´endes
quando os dias se tornam azedos
não me digas que nunca sentiste
uma força a crescer-te nos dedos
e uma raiva a nascer-te nos dentes
Não me digas que não me compr´endes

Sim, compreendo-te ! -  gritei eu por dentro, com a peito a estalar, o olhar liquefeito  e um frémito a percorrer-me a espinha....  Eu compreendo-te, Sérgio! Ou és tu que me compreendes?... Teria eu 16 ou  17 anos, a estudar ou a ler noite fora enquanto ouvia  rádio... "Os censores e os pides devem estar a dormir a esta hora!" Estaria em 1971, o ano da gravação, em França, de "Os sobreviventes",   ou, talvez, em  1972, quando  uma das faixas, "O Charlatão", esteve no 10º lugar do Top Twenty dos singles mais vendidos ( três lugares à frente de "Imagine" de John Lennon),  na discoteca Esquina, o lugar de descoberta de novidades musicais  subversivas e inovadoras, em Viseu.  Na classe dos LP, logo a seguir ao "If 3", "Meddle"  dos Pink Floyd  e "Led Zeppelin IV", a preferência dos viseenses ia para "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades", de José Mário Branco, que também inclui "O Charlatão", com música do Zé Mário. "No beco dos mal-fadados/ os catraios passam fome/ têm os dentes enterrados no pão que ninguém mais come/ os catraios passam fome" // "Entre a rua e o país/vai o passo de um anão/ vai o rei que ninguém quis/ vai o tiro de um canhão/ e o trono é do charlatão".

A música de intervenção contribuiu para a minha débil politização,  a par da influência de alguns amigos mais velhos que contavam histórias da guerra colonial, alguns romances neo-realistas e as entrelinhas dos jornais e revistas que passavam na rede da censura prévia. A minha  única acção antifascista foi a distribuição "clandestina" da edição única do jornal  dos alunos da Escola Industrial e Comercial de Viseu, sem respeitar os cortes dos dois censores/"professores orientadores" , em textos com  referências à Chacina de My Lai, no Vietnam, pela tropa dos EUA, ou ao nobelizado  Bertrand Russel, por ter escrito o "Porque Não Sou Cristão?" (um dos censores era cónego) ou ainda uma citação de Mao Tzé Tung contra o dogmatismo. A ameaça de expulsão por parte do director da escola, um velho e ridículo fascistóide, foi  o único acto repressivo de que posso orgulhar-me  de ter sofrido durante a ditadura, para além de, aos doze anos,  ter sido atirado pelos colarinhos contra a parede por um inspector da Mocidade Portuguesa, membro da Legião,  por eu ter feito rir alguns colegas na parada, ao deturpar a letra da "Marcha dos Lusitos":  "Somos pequenos lusitos/, mas já firmes e leais/ amamos e respeitamos/ nossos chefes, nossos pais (...) E se amanhã preciso for/ ir combater pela Nação/ iremos com a fé em Deus/ e a Pátria no coração").

Não foi fácil anunciar ao meu pai que eu não queria ir para o Instituto Comercial, mas antes   estudar alemão para  poder exilar-me num país qualquer onde me aceitassem como refractário da Guerra Colonial, que eu achava preferível a desertar para me juntar ao único lado justo da guerra. O meu  pai, que foi  um homem bom, não sabia, nem eu na altura, que de 1961 a 1974, 100 mil jovens portugueses saíram de Portugal para não irem para a guerra, tantos quantos os que partiram para lutar, a maioria a contragosto,  contra os povos das colónias

O 25 de Abril furou-me os planos, felizmente. Também o Povo furou os planos de Spínola e de outros militares conservadores que alinharam com o MFA, ao transformar o golpe de Estado numa revolução.  O Povo foi quem mais ordenou. Mas apenas durante o ano e meio que durou a Revolução. Eis o seu programa:

"A Paz, o pão, habitação, saúde, educação,/ só há liberdade a sério quando houver/ liberdade de pensar e de decidir/ e quando pertencer ao Povo/ o que o Povo  produzir".

25 de Abril, sempre! Uma ova!... Ainda conseguiu abortar dois golpes dos spinolistas, mas depois do golpe de direita do 25 de Novembro, Abril foi (re)conduzido ao redil.

O salazarismo foi a primeira e a última ditadura da Europa, no século XX.  Caiu da cadeira com estrondo, mas não sem resistência. Os fascistas reciclaram-se, viraram a casaca, formaram e aderiram a partidos democráticos, mas não deixaram de conspirar contra a democracia, violentamente durante o PREC – Processo Revolucionário em Curso.

Em Viseu conhecemo-los bem. No princípio de Junho de 1976, uns 40 ou 50 militantes e simpatizantes dos partidos de direita, à mistura com operacionais da extrema-direita, e pelo menos um operacional do ELP, uma das organizações  implicadas na  rede bombista,   provocaram e agrediram meia dúzia de militantes da esquerda revolucionária, a maioria da UDP, que com mais vinte ou trinta populares, homens e mulheres, alguns idosos,  apoiantes da candidatura de Otelo à Presidência da República, aguardavam aquele militar de Abril junto à Cava de Viriato. Um grupo de camaradas foi na direcção de Lamego,  ao encontro de Otelo, para o avisar da recepção fascista, mas já a caravana do candidato presidencial tinha sido atacada a tiro, perto de Castro Daire, pelo que foi decidido  não passar por Viseu, nem ir a Canas de Senhorim onde o esperavam operários da ENU e dos Companhia Portuguesa dos Fornos Eléctricos,  cortando pelas Termas do Carvalhal para S. Pedro do Sul em direcção a Aveiro, onde tinha um comício nessa noite.

Face às ameaças dos fascistas, e tendo em conta que alguns tinham participado na tentativa de assalto, a tiro, à sede do PCP em Viseu, em 20 de Julho de 75,  os militantes revolucionários, com a solidariedade de outros antifascistas, decidiram defender a sede da UDP, no Solar dos Peixotos (que hoje alberga a Assembleia Municipal de Viseu). Avisou-se  a PSP e o RIV de  que iriamos defender a todo o custo a nossa sede,  responsabilizando as forças policiais e militares pelos actos violentos que viessem a ocorrer. Uma brigada fez cartazes que colou pela cidade denunciando à população as provocações da direita fascista. A mobilização popular e a operação montada pela PSP nas entradas e saídas da cidade,  deve ter dissuadido o ataque que se indiciava.

Já não me lembro se nesse ano ou num dos seguintes, fui com outros camaradas comemorar o 25 de Abril para Torredeita, uma aldeia do concelho de Viseu, onde havia um núcleo da UDP. Ao regressarmos  a Viseu, já de madrugada, deparámos com a cidade inundada com panfletos de propaganda fascista, intitulados "Portugal está de luto", com uma cruz negra e um texto contra o 25 de Abril, numa linguagem anticomunista primária. Não consegui ir dormir. Sozinho, corri as ruas da cidade recolhendo os panfletos do chão, metendo-os por dentro do blusão e despejando-os no contentor mais próximo. Quase a chegar ao Rossio, surge-me pela frente o tal operacional do ELP, ex-comando, de uma família de contrabandistas, mas que também inclui gente de esquerda de quem sou amigo. Lançava mais panfletos para o chão e perguntou-me:  " Que andas aqui a fazer?" "Isso pergunto eu",  ripostei, bravateiro.   "Ando a distribuir a minha propaganda". "Que, coincidência, eu ando a apanhá-la", disse eu com as costas quentes pelos polícias que à esquina, guardavam o Banco de Portugal. "Não vais chegar hoje a casa!", vociferou. "Vai uma aposta?" Dirigi-me aos polícias, denunciei a ameaça e responsabilizei-os por qualquer agressão de que viesse a ser vítima. Afastei-me para o centro da praça, enquanto ia apanhando os panfletos. Ele aproxima-se. Meto a mão ao bolso, como se lá tivesse alguma arma. Apanho com uma patada de karaté. Instintivamente tiro a mão do bolso, vazia,  para aparar o golpe. Ficou por ali, olhou para os polícias e afastou-se.  Pouco depois, passou a camioneta dos serviços municipalizados de recolha do lixo. Reconheci um dos funcionários, contei-lhes das ameaças e ele convidou-me a subir para a boleia. Enquanto nos afastávamos gritavam: "Fascista! Vai trabalhar... !" E, assim,  ganhei a aposta e fui dormir a casa.

No livro de Josué da Silva "O Julgamento da Rede Bombista" e no "Dossier Terrorismo" das edições Avante, são mencionados elementos da rede bombista do MDLP (de Spinola e Galvão) e do ELP,  com ligações ao PPD e ao CDS. O terrorismo fascista provocou mais de uma dezena de mortes, incluindo militantes do PCP, sindicalistas,  o padre Maximino de Sousa (que fora candidato pela UDP) e a estudante Maria de Lurdes Pereira. Para além de inúmeros  atentados à bomba em sedes do PCP, do MDP/CDE e da UDP, em casas e automóveis de militantes de esquerda, e mesmo agressões a militantes do PS.  Não esquecemos!

"O fascismo é uma minhoca/ que penetra na maçã/ ou vem com botas cardadas ou com pezinhos de lã" .

O reputado filósofo holandês Rob Riemen,  em "O Eterno Retorno do Fascismo" diz o mesmo por outras palavras: "Os fascistas do século XXI não se assumirão como fascistas".  40 anos depois de Abril, o que vemos: salário mínimo inferior ao de 1974, 120 mil crianças com fome, 2 milhões de pobres, desmantelamento do Serviço Nacional de Saúde, da Escola Pública e da Segurança Social. O governo faz tábua rasa da Constituição da República e a Presidente da Assembleia da República é insultuosa com os militares de Abril."  O problema não é deles, é nosso.  O problema dela é o medo de os ouvir dizer: " Não foi para isto que fizemos o 25 de Abril". Formalmente ainda vivemos em democracia, mas...

"Cuidado,  Casimiro/ cuidado com as imitações/ cuidado, minha gente/ cuidado justamente com as imitações" .

Carlos Vieira e Castro - A Comuna nr. 31 (Maio 2014) 27-29.

edição Especial 40 Anos do 25 de Abril.

ilustração: Maria João Barbosa/LunaKirscheIllustration para A Comuna