Só a democracia socialista pode barrar o ascenso da extrema-direita e criar uma Europa sem muros nem ameias Versão para impressão
Quarta, 14 Maio 2014

ilustração de Ângelo de SousaForam os muçulmanos, com a expansão do comércio, os primeiros a criar cidades sustentáveis, rodeadas por hortas e pomares, com um urbanismo organizado, como nas cidades mediterrânicas, [...] e desta interculturalidade floresceu um dos períodos mais fecundos das artes e das ciências europeias.

 

Artigo de Carlos Vieira e Castro

 

Em Fevereiro de 1990, o filósofo e analista político, David Selbourne, encontrou-se, em Berlim Ocidental, com Günter Grass que, conforme conta no livro "A morte do comunismo", lhe terá dito: "Vamos directamente ao assunto, se pensarmos a respeito da Alemanha e do seu futuro, temos de pensar em Auschwitz. Representa tudo o que é hostil à ideia de unidade europeia. É a própria expressão do espírito anti-europeu. Não estou a dizer que venha a acontecer outro Auschwitz. O que digo é que será muito mau para o futuro da Europa se no centro do continente existir um colosso unificado com oitenta milhões de pessoas, com todo o nosso poder económico. Se as coisas seguirem por esse caminho, esta nação super forte não irá invadir os vizinhos do leste, claro que não. Vai comprá-los com o marco alemão".

Passados 24 anos parece que mau augúrio do escritor alemão se está a cumprir: Merkel está a conseguir com os bancos o que Hitler não conseguiu com os tanques. E os ucranianos já estão a ver-se esmagados entre dois regimes autoritários de oligarcas corruptos, com os nazis no poder em Kiev, apoiados pela União Europeia, a atirá-los para o abraço de urso de Putin.

Philippe Legrain, ex-conselheiro económico, independente, do presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, entrevistado pelo jornal Público, a propósito do lançamento do seu livro"European Spring: Why our Economies and Politics are in a mess"., confirma o que o BE anda a dizer desde o princípio da crise:

"Uma grande parte da explicação é que o sector bancário dominou os governos de todos os países e as instituições da zona euro. Foi por isso que, quando a crise financeira rebentou, foram todos a correr salvar os bancos, com consequências muito severas para as finanças públicas e sem resolver os problemas do sector bancário. .(...) Ou seja, o que começou por ser uma crise bancária que deveria ter unido a Europa nos esforços para limitar os bancos, acabou por se transformar numa crise da dívida que dividiu a Europa entre países credores e países devedores. E em que as instituições europeias funcionaram como instrumentos para os credores imporem a sua vontade aos devedores. Podemos vê-lo claramente em Portugal: a troika (de credores da zona euro e FMI) que desempenhou um papel quase colonial, imperial, e sem qualquer controlo democrático, não agiu no interesse europeu mas, de facto, no interesse dos credores de Portugal. E pior que tudo, impondo as políticas erradas (...)Portugal está mais endividado que antes por causa do programa, e a dívida privada não caiu." (...)os Governos puseram os interesses dos bancos à frente dos interesses dos cidadãos. (...)Muitos políticos seniores ou trabalharam para bancos antes, ou esperam trabalhar para bancos depois. Há uma relação quase corrupta entre bancos e políticos. .(...) A Alemanha tentou redesenhar a Europa no seu próprio interesse. É por isso que temos uma Alemanha quase-hegemónica, o que é muito destrutivo".

Mas a narrativa de Frau Merkel, de tão repetida pela propaganda oficial e oficiosa (de jornalisteiros, comentirosos e politolos), acabou por convencer as próprias vítimas. Uma boa parte do povo, crente e temente, interiorizou o pecado de ter vivido acima das suas possibilidades e aceitou a austeridade como expiação e o empobrecimento por mais 20 anos como penitência. Agora, só falta o Paulo Portas aparecer no alto de uma azinheira a ordenar que no dia 17, ao bater das doze badaladas, os crentes em milagres agitem lenços brancos na "despedida" da Troika, que será avistada a ascender aos céus na forma de uma pomba branca ( a cor do espírito da saída limpa), mas matizada de negro (cor de "foge que já te agarro, burro").

Há sondagens que prevêem que no próximo dia 25 de Maio, poderá saír o 13, dia de azar na Europa, com a extrema-direita a subir assustadoramente em França, Reino Unido, Áustria, Hungria, Itália, Finlândia, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Suécia, Eslováquia, Roménia, Bulgária e Alemanha. E como é que chegámos aqui? O filósofo holandês Rob Riemen chama-lhe "o eterno retorno do fascismo" e alerta: "Os fascistas do século XXI não se assumirão como fascistas". E tinha razão. Eles burilaram o discurso mais bruto do ódio, limitando-se a contestar o sistema capitalista que todos sentem injusto, e os seus ícones europeus: o euro e a União Europeia, responsáveis pela austeridade e o desemprego. Por isso, não é de estranhar que tenham conseguido disputar votos à esquerda, como tem acontecido em França, com o operariado francês desiludido com o "mais do mesmo" do partido de Hollande. Sendo mais heterogénea, a extrema-direita europeia tem um denominador comum: o ódio aos imigrantes, os novos "judeus" da Europa. O que é lamentável é que tenha sido a política europeia de imigração, como a "directiva de retorno", conhecida como "directiva da vergonha", aprovada com os votos da direita e de uma maioria de "socialistas" europeus, a abrir caminho à extrema-direita. A Europa já não tem campos de extermínio, mas continua a ter campos de concentração, a que chama "centros de acolhimento de imigrantes", como o de Lampedusa, e fez do Mediterrâneo um "mar de extermínio".

Os neo-fascistas insistem em fazer dos imigrantes o bode expiatório do desemprego, a começar pelos muçulmanos, mas passando por cidadãos comunitários romenos e búlgaros, ciganos ou não, muçulmanos ou cristãos, e a acabar em todos os outros, incluindo portugueses. Mais uma vez, os governos "democráticos" do Bloco Central, abrem-lhes o caminho, como acontece na Alemanha, com as leis acordadas entre o partido de Merkel e o SPD de Schultz, parceiros no governo, no sentido de expulsar estrangeiros desempregados. Importa, pois, desmascarar esta pretensa identidade nacionalista e europeia, de caucasianos puros e cristãos, indo às origens culturais do nosso continente.

Já na Grécia arcaica havia um ritual de purificação ("catharsis") das comunidades, que consistia em designar um "pharmakos", personagem pobre e marginal, rejeitado socialmente, que servia de "bode expiatório" dos males que afectavam a cidade. Era acompanhado em procissão até ao exterior das muralhas onde era lapidado, por vezes até à morte, ou atirado de uma ravina. Tiranos houve, porém, que também foram condenados à lapidação e ao exílio.

Na Grécia antiga, o deus protector das fronteiras, das estradas e das viagens, Hermes, era simultaneamente o deus dos comerciantes. As cidades nasceram do comércio, das trocas, de mercadorias e de saberes, e as fronteiras eram pontos de encontro dos viajantes e comerciantes. Talvez por isso foram os muçulmanos, com a expansão do comércio, os primeiros a criar cidades sustentáveis, rodeadas por hortas e pomares, com um urbanismo organizado, como nas cidades mediterrânicas, ao contrário do que acontecia na alta idade Média, em Paris ou Londres, cidades sujas e desorganizadas. Nestas cidades mediterrânicas nasceu uma civilização superior, onde coabitavam as três religiões do Livro, com liberdade de culto para cristãos e judeus. Toledo , nos séculos XII e XIII, ficou conhecida como a cidade da tolerância, onde coexistiam árabes, judeus, castelhanos, francos, moçárabes, mouros conversos e desta interculturalidade floresceu um dos períodos mais fecundos das artes e das ciências europeias. Arquitectos, astrónomos, matemáticos, filósofos, médicos que deixaram excepcional obra para a posteridade. Sábios de toda a Europa iam a Toledo atraídos por este ambiente cultural e pelos inúmeros tradutores árabes, a quem devemos ainda hoje a sobrevivência de muitas obras de autores da antiguidade clássica, como Euclides, Ptolomeu, Galeno, Hipócrates e Aristóteles.

O arqueólogo Cláudio Torres (terceiro candidato da lista do BE ao Parlamento Europeu) é um dos maiores investigadores mundiais da civilização islâmica e tem promovido o diálogo intercultural entre as margens Norte e Sul do Mediterrãneo, através da participação do Campo Arqueológico de Mértola, de que é director, na Fundação Anna Lindh, Rede construída entre redes nacionais dos 43 países da região Euro-mediterrânica. Em entrevista ao semanário Já, em 1.08.96, alertava premonitório: "As clivagens entre o capitalismo liberal proposto e defendido pelo mundo anglo-saxónico e uma tentativa de política social defendida pelos países do Sul, com enormes problemas sociais, marcam hoje a fronteira na questão política da construção europeia. Nesse sentido – estando convencido de que a Alemanha vai conquistar, política, económica e militarmente, todo o Leste europeu – é decisivo alargar o espaço da identidade mediterrânica aos países do Norte de África, se se quer defender a identidade dos países do Sul da Europa."

Convirá lembrar que os portugueses têm uma carga genética marcada pelos judeus sefarditas (20%), e pelos berberes do Norte de África. Cerca de 15% dos homens do Sul de Portugal têm um ascendente norte-africano, enquanto no Norte apenas 10%,  de acordo com um estudo coordenado por João Lavinha, investigador de biologia molecular humana no Instituto de Saúde Ricardo Jorge (curiosamente o 2º candidato da lista do BE ao Parlamento Europeu). Aos árabes e aos berberes devemos nós, portugueses, para além de muitos outros aspectos da herança cultural, expressa na língua e na arquitectura, o fado (como defendia a própria Amália), o Cante Alentejano e o país de poetas de que nos orgulhamos de ser.

Os sangrentos acontecimentos na Ucrânia parecem dar razão a Gunter Grass e a Cláudio Torres. Mais um motivo para votarmos no dia 25 de Maio, na esquerda europeia que defende a solidariedade entre os povos esmagados pela desregulação financeira do capitalismo selvagem. Para não acordarmos um dia com fascistas ou seus sucedâneos no governo.

Carlos Vieira e Castro

imagem: ilustração de Ângelo de Sousa