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Quinta, 15 Maio 2014

Dia 25 de abril – no Alexandre HerculanoNão fazia ideia que a Grândola que acabava de gravar era uma senha. Vim a sabê-lo um dia depois, já no 26 de abril.

 

Testemunho de Joaquim Espírito Santo

 

Dia 25 de abril – no Alexandre Herculano

Como todos os dias chego ao Liceu Alexandre Herculano um pouco atrasado. Venho de Fânzeres-Gondomar. Venho ensonado como sempre. Ouvira religiosamente o programa Limite até às duas da manhã, para gravar música "proibida", aquela que passava da meia noite às duas na Rádio Renascença no programa Limite. Por volta da meia hora, há quem diga meia noite e meia, ouvi o anúncio em palavras da primeira estrofe da Grândola: "Grândola Vila Morena, Terra da fraternidade, o povo é quem mais ordena, dentro de ti ó cidade". Ato contínuo carreguei nos dois botões para gravar na cassete previamente inserida. Era assim o Limite da Rádio Renascença.

Não fazia ideia que a Grândola que acabava de gravar era uma senha. Vim a sabê-lo um dia depois, já no 26 de abril.

Quando, ainda no dia 25 de abril, já passava das nove, cheguei ao liceu, mais atrasado do que o costume, depois do habitual ralhete da professora e das habituais ameaças de na próxima levar falta, percebi que o meu colega de "carteira" tinha um "transístor" encostado ao ouvido, por debaixo do cabelo comprido que usava, aliás como eu.

Sussurrou:

- Está a acontecer um golpe de Estado.

- Onde? Sussurrei também eu. No Chile? (estava ainda recente a história do Chile de Allende)

-Não, aqui, em Portugal.

- Passa para cá o rádio - e saquei-lhe o transístor, tudo sem a professora de Físico-Químicas se aperceber de nada.

Rádio Clube Português. O locutor da Rádio lia um comunicado. Algo do género, daqui Movimento dos Capitães,... o posto de comando dos capitães revoltosos informa que está em curso uma sublevação militar com o objetivo de destituir o regime o e governo do país... restituir ao povo a liberdade e a dignidade... fim da guerra colonial (fiquei safo da guerra) ... para evitar pôr em risco a segurança dos cidadãos, pedimos à população que recolha a suas casas (o povo acabou por sair para a rua e ainda bem),... e terminava enumerando objetivos estratégicos já ocupados... Aeroporto da Portela... Banco de Portugal... Quartel-General da Região Militar de Lisboa... Rádio Clube Português... Radiotelevisão Portuguesa.

Para mim chegava. Isto queria dizer que estava em curso uma revolta militar a sério, com o objetivo de mudar a sério o regime e que, controlando o que já controlava, só poderia sair vitoriosa.

Não hesitei. Levantei-me e, de transístor na mão, disse:

- Sôdoutora, aqui no rádio estão a dizer que está a acontecer uma revolta militar cá em Portugal e dizem para toda a gente ir para casa. Acho melhor acabarmos com a aula e irmos para casa.

A "Sôdoutora" (ainda não se dizia Stôra) não estava muito pelos ajustes. Que não, que não podia ser, que só com ordem do Reitor. Notei-lhe pouca autoridade na voz, como se estivesse longe dali, como se já soubesse de qualquer coisa, como se se tivesse apercebido da mudança súbita que ocorria e ao mesmo tempo não se acreditasse. Até se tinha esquecido de referir que era proibido levar um transístor para a sala de aula!

Talvez sem perceber muito bem o que dizia, ou talvez percebesse mais do que agora à distância creio, fiz o que considero hoje o mais curto e mais eficaz discurso revolucionário de toda a minha existência:

- Sôdoutora, eu vou-me embora, não me interessa que me marque falta disciplinar. E, voltando-me para os meus colegas, está a acontecer uma revolução lá fora. Eu não vou ficar aqui dentro.

Enquanto me dirigia para a porta de saída (e de entrada) da sala notei que todos os meus colegas se iam levantando e me seguiam. Chegados ao corredor já era substancial o alvoroço. Ainda não havia muitos alunos mas já pelo menos uma vintena tinha abandonado as respetivas salas. Com os da nossa sala o corredor ficou praticamente cheio, o volume do ruído aumentou e, quase simultaneamente, apareceu um emissário do Reitor a dizer que não havia mais aulas, que o Liceu ia encerrar e que se aconselhavam os alunos a dirigirem.se o mais rapidamente possível a suas casas.

Assim começou, para mim, a Revolução.

Dia 25 de Abril – na rua

É claro que não fui para casa. Afinal já era grandinho, ia fazer 17 anos, e só estava previsto chegar a casa lá para a uma e meia, e ainda só passava um pouco das dez. Já na rua, alguns juntamo-nos num pequeno grupo que decidiu dar uma volta pela cidade. Chegados ao Campo 24 de Agosto já se notava um movimento anormal de pessoas, nomeadamente nas paragens dos autocarros, pessoas que se olhavam procurando sinais de novidade, num misto de receio e alegria prestes a explodir.

Dirigimo-nos para a Batalha. Passamos em frente à Polícia. A confiança aumentara, sem razão aparente. Ousávamos olhar de frente, do outro lado do passeio, para os movimentos da PSP da Esquadra ali mesmo ao lado do Governo Civil. Não lhes notei a expressão autoritária de sempre, antes um certo nervosismo e um corrupio fora do normal de polícias que entravam e saíam, aparentemente e estranhamente alheados de quem os observava.

Seguimos até à Sé e descemos até S. Bento onde já havia um considerável ajuntamento de pessoas que se estendia até à Praça da Liberdade. Desconhecidos começaram a falar comigo como se fossemos conhecidos de sempre. As pessoas abraçavam-se e dizia-se "Viva a Liberdade" e reparei que alguns choravam de emoção, de alegria, e eu, contagiado, também chorei. Perdi-me dos meus colegas de turma mas pouco me importei pois percebia que toda aquela gente, que de minuto a minuto crescia até se tornar uma multidão, era como se fossem meus amigos de sempre. Entre essa multidão senti-me mais seguro que nunca.

Não me lembro de ter almoçado ou de ter telefonado para casa. Nem sequer me lembro do tempo ter passado. Sei que andei por ali, que abracei muita gente, que subi os Clérigos até aos Leões, que voltei a descer até à Praça e que o ambiente era cada vez mais festivo. Os vivas multiplicavam-se: vivas à liberdade, aos militares, à democracia (palavra praticamente proibida até então), ao povo,... até que se passou a palavra – todos para a Praça da República, o Quartel-General foi ocupado pelo Movimento dos Capitães. Quando lá cheguei já aquilo era um autêntico mar de gente. Em instantes a Praça da República, naquele fim de tarde do dia 25 de Abril de 1974, ficou literalmente cheia como um ovo. Não cabia mais nada nem ninguém. Veio um oficial à varanda e fez um discurso. ... Movimento dos Capitães ... processo irreversível ... governo demitido ... democracia ... liberdade ... libertação dos presos políticos ... devolver o poder ao povo.

Foi com o eco destas palavras na cabeça, devolver o poder ao povo, democracia, liberdade,... que regressei a casa, já a noite tinha caído.

Do 26 de abril de 1974 ao 25 de novembro de 1975

O resto é conhecido dos manuais. É o processo revolucionário que entra em curso. É a história da luta de classes num contexto social e político favorável à classe trabalhadora. A sociedade portuguesa entrou num processo fervilhante de transformação, com avanços significativos para a classe trabalhadora nas mais variadas áreas, quase sempre em crescendo até ao golpe militar de 25 de Novembro de 1975.

Há manifestações diárias com a Rádio Renascença, ocupada pelos trabalhadores a fazerem a cobertura ao minuto e a mobilizarem todos para onde as lutas ocorriam.

No mundo laboral, são as lutas por aumentos salariais, pela redução do horário de trabalho, pela segurança na relação contratual,... que levam ao surgimento de leis, até então inexistentes, que passam a regulamentar as relações de trabalho, afirmando e salvaguardando os direitos dos trabalhadores. Nas empresas proliferam as comissões de trabalhadores e o movimento sindical atinge um desenvolvimento inimaginável em tão curto espaço de tempo. Criam-se sindicatos e remodelam-se os já existentes, normalmente saneando as respetivas direções que eram coniventes com o regime extinto e, por vezes, até delatoras dos trabalhadores. A CGTP-IN surge como a Central Sindical única. A UGT virá muito depois, já quando o processo revolucionário seguia outro curso que não o originário mas divergindo mesmo dele, no pós 25 de novembro de 1975. Os moradores pobres organizam-se em comissões de moradores que desenvolvem atividade em áreas ligadas não apenas à qualidade da habitação mas também noutras relacionadas com a qualidade de vida dos moradores, nomeadamente na área da educação e da ação social. Os moradores organizados ocupam casas devolutas, requalificam casas degradadas, exigem a construção de redes de saneamento e o acesso a água canalizada, organizam campanhas de alfabetização, promovem trocas diretas de produtos, organizam eventos culturais, promovem o desporto,... Os soldados organizam-se nos SUV (Soldados Unidos Vencerão) e assistimos a um juramento de bandeira no RALIS onde se jura lutar por uma pátria socialista. Nos campos alentejanos assiste-se à ocupação das herdades que os donos utilizavam apenas para caçadas, enquanto o povo passava fome. São constituídas Cooperativas e o desemprego é reduzido praticamente a zero.

É eleita a assembleia constituinte donde, debaixo das lutas do povo, sai a Constituição mais progressista da Europa. Pasme-se: Nessa altura até o CDS se dizia a favor do socialismo!!!

Foi esta pátria promissora que o capital quis destruir com o golpe militar do 25 de novembro de 1975, chamando-lhe continuidade da revolução e com a implicação da CIA, do Mário Sores  e do seu amigo Carlucci.

São as conquistas do 25 de Abril que continuam sob o fogo revanchista dos inimigos do povo. São essas conquistas que nos cabe a nós, povo trabalhador, reformados e pensionistas, desempregados, jovens duplamente explorados e todos os democratas, defender contra o ascenso do conservadorismo autoritário apostado em mergulhar o país de novo na noite escura da opressão. Como então saberemos dizer "não passarão" e mais que dizer, lutaremos para que não passem mesmo.

Joaquim Espírito Santo - A Comuna nr. 31 (Maio 2014) 40-42.

edição Especial 40 Anos do 25 de Abril.

ilustração: Maria João Barbosa/LunaKirscheIllustration para A Comuna 

 

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