Cinema, multiculturalismo e dominação econômica Versão para impressão
Segunda, 04 Janeiro 2010

De minha parte, prefiro pensar que o extraordinário investimento em filmes “politicamente corretos”, e muito particularmente no ideário multiculturalista, representa uma metamorfose teleológica na estratégia de dominação econômica e política adotada pelo “mainstream” cinematográfico hollywoodiano em relação à década de 1980. Com base nessa premissa, e considerando o interesse que isso possa suscitar no âmbito do debate que tem como objeto a economia política da cultura, os comentários a seguir buscam esclarecer os aspectos que me parecem centrais no processo de construção e reconstrução do telos estético do “mainstream” cinematográfico hollywoodiano. De modo a não deixar os comentários sem uma base empírica, procurarei concluí-los analisando o filme “Terra de ninguém”,Danis Tanovic. 

Indústria cinematográfica e dominação econômica

O fato de um filme, por mais singela que seja a sua produção, exigir uma divisão de tarefas que, sob muitos aspectos, se assemelha aos procedimentos adotados na fabricação de um artefato industrial qualquer, além de um montante de recursos elevado, não o qualifica, nem de forma necessária e nem suficiente, como um produto industrial. Se considerarmos rigorosamente a atividade cinematográfica no contexto de uma cadeia produtiva mais ampla, portanto não restrita apenas à realização/exibição do filme, chegaremos a um sistema de produção extremamente complexo. Ao trabalho dos argumentistas, roteiristas, atores, diretores, cinegrafistas, iluminadores, cenografistas etc., próprio da atividade cinematográfica, diversos e inúmeros setores industriais compõem a cadeia produtiva do cinema. Dentre outros, os fabricantes de películas e reagentes químicos, os fabricantes de lentes e equipamentos óticos e de tecnologia digital, e os fabricantes de máquinas e equipamentos mecânicos (gruas, trilhos etc.). Além disso, a cadeia produtiva conta ainda com dezenas de atividades manufatureiras (marcenaria, serralharia etc.), semimanufatureiras (alfaiataria, vidraçaria etc.) e artesanais (pintores, escultores, ceramistas etc.). A tudo isso se somam atividades específicas do cinema, como produção, pós-produção, edição etc., além do trabalho de publicitários, distribuidores e exibidores do filme.

No entanto, não raramente, ouvimos referência à atividade cinematográfica como sendo uma atividade industrial. Trata-se, evidentemente, de uma generalização conceitualmente equivocada, cujas difusão e permanência ociosa no senso comum exigem uma breve análise.

Não resta dúvida de que os EUA, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, são o único país do mundo detentor de uma indústria cinematográfica merecedora dessa denominação.Tal reconhecimento leva em conta não apenas a concentração da quase totalidade mundial de estúdios cinematográficos em solo norteamericano, mas, sobretudo, o fato de as corporações desse país dominarem a cadeia produtiva nos moldes descritos acima.

Detendo o monopólio dos meios de produção e da propriedade do produto do trabalho, caracterizada pelo domínio da distribuição, da circulação e da exibição comercial do produto mundialmente, incluindo vídeos, DVDs, CDROMs e meios digitais on-line, as corporações cinematográficas norte-americanas há décadas exercem uma intensa pressão sobre os realizadores de outros países, como forma de impedir o crescimento do público e, por conseguinte, o lucro e o progresso dos cinemas nacionais (1). Nesse sentido, a atividade cinematográfica restringe-se à realização do filme e, na medida dos acordos firmados com os cartéis norte-americanos, a uma pequena participação no lucro da distribuição e da exibição.

Dadas as circunstâncias historicamente adversas enfrentadas pelos realizadores que impedem a expansão capitalista do cinema nacional, prevalece nos países com atividade cinematográfica razoavelmente desenvolvida um crescente antagonismo aos interesses dos cartéis norte-americanos. De caráter fundamentalmente econômico, esse antagonismo move-se, entretanto, na superestrutura, emitindo sinais contraditórios em seus discursos de enfrentamento ao capital internacional.

Numa direção, os realizadores nacionais sinalizam de forma recorrente à demanda ideológica nacionalista, com apelos freqüentes à preservação de suas respectivas identidades culturais e à defesa de uma tradição cinematográfica própria.

Subsidiariamente, alegando falta de recursos financeiros para enfrentar as pressões externas, exigem reserva de mercado e renúncia fiscal dos seus respectivos governos e parlamentos nacionais. Noutra direção, com o pretexto de se manterem competitivos num mercado fortemente marcado pela concorrência internacional, os realizadores nacionais modelam o produto final segundo o figurino ditado pelo telos estético-político hollywoodiano.

De modo a sustentar esse argumento, procurarei sintetizar a noção geral de telos desenvolvida por Rodrigues (2), buscando associá-la com a problemática da ideologia no mundo burguês.

 

Telos e metamorfose teleológica

Para Rodrigues, o telos “é uma imagem construída pelo discurso hegemónico com o fito de se tornar uma meta a ser perseguida incansavelmente pelo conjunto da sociedade, conduzida pela classe que o elaborou” (3). Dada a impossibilidade de manter-se estável num quadro de permanente antagonismo entre os interesses de classe em jogo, impõe-se ao telos a necessidade da sua reconstrução permanente. Rodrigues denominará esse movimento de “metamorfose teleológica”. Cabe ressaltar, complementarmente, que o caráter programático e estrutural do telos permite que ele seja ajustável às novas configurações políticas surgidas na conjuntura, ao mesmo tempo em que empresta “a todos os outros conceitos e propostas a ele subordinados também um caráter fundamentalmente econômico” (4). É esse aspecto ajustável do telos que irei associar à problemática da ideologia no mundo burguês.

Ao analisar as condições gerais do desenvolvimento da vida humana, Marx ressalta o fato de o homem ser obrigado a produzir os meios da sua existência e indiretamente produzir sua própria vida material. Do estágio da simples reprodução dos meios naturais disponíveis até o estágio produtivo mais avançado, cientificamente planejado e tecnologicamente sofisticado, somos o que produzimos da maneira como produzimos (5).

Em linhas gerais, Marx diz que o grau de desenvolvimento das forças produtivas está em relação direta com a divisão do trabalho, representando esta divisão do trabalho formas diferentes de propriedade. Assim, cada movimento das forças produtivas corresponde a um novo aperfeiçoamento da divisão do trabalho, representando formas diferentes de relações entre indivíduos proprietários dos meios de produção (animais, ferramentas, máquinas, conhecimento etc.) e dos produtos do trabalho. De modo inverso, porém análogo, à medida que a divisão do trabalho se aperfeiçoa, exigindo mais especialização e qualificação do trabalhador e, por conseguinte, mais divisão do trabalho, ocorre um movimento das forças produtivas. Nesse movimento dialético, os interesses latentes nas relações sociais de produção entram em conflito, representando, no limite, reais possibilidades de mudança na forma geral da propriedade dos meios de produção e dos produtos do trabalho. A fim de manter sob seu controle o desenvolvimento das forças produtivas, os indivíduos proprietários (a classe dominante) necessitam, nesse processo, controlar permanentemente o determinante tempo-espaço do trabalho. Manter essa determinante sob controle significa exercer o domínio científico, racional, sobre o ciclo produtivo e, portanto, significa manter a forma geral da propriedade nos termos aqui examinados. Importa dizer com isso que a manutenção do controle sobre o tempo-espaço do trabalho requer uma forma de consciência específica de dominação: a ideologia.

Gorender assinala na teoria marxista a essência da ideologia: forjar a ilusão histórica de que cada época da vida social resulta de idéias abstratas (6). Conquanto a ideologia tenha se revestido historicamente de diferentes formas e manifestações discursivas, o sentido fundamental apreendido em Marx e Engels não se modificou.

Isto é, a ideologia é uma “consciência falsa da realidade”. Em todas as épocas, a ideologia não pode prescindir de um corpo discursivo para dar forma às idéias do pensamento dominante. É no interior desse corpo discursivo que se constituem as demandas ideológicas da classe dominante, impondo a necessidade da construção de um telos capaz de ajustá-las às novas configurações políticas surgidas na conjuntura.

Conforme vimos antes, a necessidade do ajuste político das demandas ideológicas da classe dominante se deve à instabilidade provocada pelo acirramento dos antagonismos de classe no modo de produção capitalista pleno. Uma questão óbvia está colocada desde sempre: como conciliar ‘liberdade’ e ‘igualdade’, escopo da ideologia burguesa, com o regime de propriedade privada?

Dada a impossibilidade de resolver essa equação, à classe dominante se impõe construir e reconstruir o telos a ser perseguido por toda a sociedade, sendo tal processo de ajuste o que caracteriza a metamorfose teleológica.

 

Multiculturalismo como telos hollywoodiano

Há cerca de três décadas a hegemonia do telos estético hollywoodiano se faz presente no mercado mundial de filmes. Orientando-se econômica e politicamente de acordo com os rumos do processo de globalização, os executivos dos cartéis dos estúdios norte-americanos traçam suas estratégias mercadológicas tendo em vista dois objetivos complementares. Num sentido, buscando manter o controle da produção e da circulação da totalidade dos gêneros de filme (drama, comédia, ação, aventura, guerra, policial etc.) realizados dentro e fora dos EUA. E noutro sentido, buscando massificar o ideário neoliberal, cujo repertório anticlassista e antimarxista é evidente. Não por acaso, além do controle do mainstream” cinematográfico, as estratégias hollywoodianas há muito constituem uma das mais eficazes ferramentas de convencimento dos benefícios trazidos pelo imperativo das mudanças estruturais e pela globalização desenvolvidos pela retórica neoliberal.

É no contexto desse esforço de manutenção, controle e expansão monopolista que os ajustes no telos estético hollywoodiano têm sido realizados. A partir da segunda metade da década de 1940, com a definição dos rumos da Segunda Guerra Mundial, os estúdios alemães, franceses e italianos, destruídos economicamente, cederam espaço no mercado mundial de filmes para o predomínio norte-americano no ocidente capitalista. No entanto, somente a partir da segunda metade da década de 1970, com a crise estrutural que iria provocar a reconfiguração do padrão de acumulação nos países centrais da economia capitalista, os cartéis dos estúdios hollywoodianos consolidariam a sua hegemonia mundial.

Data desse período o início de um processo que levaria os executivos de Hollywood a adotar a estratégia de construção de um telos estético comum à totalidade do “mainstream” cinematográfico. Desde então, dois telos estéticos ocuparam sucessivamente a cena cinematográfica mundial: o consumismo e o multiculturalismo.

Embalados pelo ciclo de riqueza financeira promovido pelas reformas da administração Reagan, o tipo “yuppie” tornou-se o principal referente da imagem do consumismo hollywoodiano. Filmes como “9 ½ semanas de amor”, de Adrian Line (1986, “Nine ½ weeks”. EUA. Metro Goldwin Meyer), “Wall Street – Poder e Cobiça”, de Oliver Stone (1987. “Wall Street”. EUA. 20th Century Fox), “Uma secretária de futuro”, de Mike Nichols (1988. “Working girl”. EUA: 20th Century Fox), dentre muitos outros, traziam uma galeria de personagens excêntricos a partir de tipos urbanos encontrados entre jovens executivos do mercado de ações.

Desenhada a partir da imagem consumista do telos em voga, a estética “yuppie”, disfarçadamente minimalista e francamente nostálgica, tinha por função amalgamar numa tipologia glamourosa as principais características do “novo” homem burguês. A saber, consumista, ególatra, andrógino, compulsivamente voltado para o trabalho (“workaholic”) e aético. O sucesso de público alcançado pelos filmes citados não deixa dúvida de que o magnetismo dos “yuppies” cinematográficos, encarnados por atores como Mickey Rourke, Kim Bassinger, Michael Douglas, Charlie Sheen, Sigourney Weaver, Melanie Griffith, Harrison Ford e outros mais, deu resultado.

Em fins da década de 1980, o gargalo econômico provocado pelo excesso de liquidez do mercado de ações das bolsas de valores mundiais e o natural esgotamento da era Tatcher-Reagan-Kohl, após quase duas décadas em que esses três governantes pontificaram sobre quase tudo o que ocorreu no mundo, delimitam o ciclo virtuoso da política econômica neoliberal. Os excessos cometidos pela cultura consumista dos “yuppies”, com seu egoísmo, desregramento e ausência de qualquer padrão moral e ético são colocados na berlinda.

Dois aspectos complementares devem ser considerados nesse processo que resultaria, já no início da década de 1990, na reconstrução do telos estético hollywoodiano. De um lado, grande parte da pequena burguesia norte-americana, frustrada em sua expectativa de emancipação financeira, começava a dar mostras de cansaço e temor diante de um tipo de vida que, cotidianamente, não correspondia ao seu ethos predominantemente conservador e moralista. Cansaço da invasão da privacidade da vida doméstica pela compulsão ao trabalho. Temor da proximidade da morte pela Aids de parentes, amigos, colegas de trabalho ou simplesmente um vizinho do quarteirão. De outro lado, a emergência de protestos de setores da sociedade norte-americana historicamente marginais (os negros) ou excluídos (os emigrantes latino-americanos) da riqueza produzida, reivindicando emprego e mais direitos civis, sinalizava a necessidade urgente de mudanças políticas na esfera social.

“A firma”, de Sidney Pollack (“The firm”. EUA. Paramount Pictures), e “Filadélfia”, de Jonathan Demme (“Philadelphia”. EUA: TriStar Pictures/Columbia Pictures), ambos lançados comercialmente em 1993, marcam o início da virada na estratégia dos executivos de Hollywood, que resultou na adoção do multiculturalismo como telos estético do “mainstream” cinematográfico. Forçosamente, coube a dois experimentados diretores, com reconhecido prestígio político nos setores mais “à esquerda” da sociedade norte-americana, uma dupla tarefa: destruir o consumismo como imagem do telos hollywoodiano e desenhar a imagem do novo telos a ser construído – o multiculturalismo.

Em “A firma”, o veterano diretor Sidney Pollack representa a imagem do telos a ser destruído como uma entidade híbrida e diabólica. A “Firma”, criadora de “yuppies workaholics”, consumistas e desregrados, é apresentada como uma colagem de três tipos institucionais recorrentes na galeria dos grandes “vilões” do imaginário social norte-americano e de Hollywood: as Corporações (de advogados mal-intencionados), a Máfia (fora-da-lei) e o FBI (o governo intrometido). O que essa entidade mefistofélica busca é comprar o sangue e a alma ingênua de jovens advogados candidatos a “yuppies”, com o intuito de transformá-los em ambiciosos agentes reprodutores (“workaholics”) de um sistema velho e corrompido. Contrapondo a essa ameaça, Pollack lança mão de um personagem igualmente conhecido da tipologia hollywoodiana e querido do público: uma aparentemente frágil professora de escola pública. Reunindo beleza física e firmeza de caráter, esse personagem (interpretado por JeanneTriplehorn) é a força moral que sustenta e move discretamente o “herói” (Tom Cruise) – de quem é esposa –, para derrotar a “Firma”.

Sem fugir muito desse roteiro esquemático, “Filadélfia”, filme do consagrado diretor Jonathan Demme, levou multidões aos cinemas de todo mundo e recebeu dois prêmios Oscar da Academia. Em “Filadélfia”, Demme procura desconstruir o mefistofélico sistema valendo-se de um dos gêneros mais populares e banais de Hollywood: o “filme de tribunal”. Nele, julga-se o direito de um “yuppie workaholic” ser indenizado pela firma que o demitiu por ser homossexual. Contudo, em “Filadélfia”, o diretor vai além da simples desconstrução da imagem do consumismo e dá início ao esboço da imagem multiculturalista, afirmativa e politicamente correta do atual telos estético hollywoodiano. Deixando de lado qualquer sofisticação, Demme constrói uma imagem maniqueísta, em que a Aids, o homossexualismo e as relações étnicas são abordadas no âmbito de um conflito de interesses entre o Mal, representado por um conjunto de personagens anglo-saxões e viris, e o Bem, representado por três personagens centrais: um advogado anglosaxão homossexual (Tom Hanks), um professor latino-americano homossexual (Antonio Banderas) e um advogado negro e heterossexual (Denzel Washington).

A partir desses filmes, Hollywood daria por encerrado o ciclo de existência do telos consumismo. A metamorfose teleológica estava feita: o multiculturalismo já estava em cena.

 

Terra de ninguém e o homem de Marlboro

A fim de concluir este comentário, penso que seria interessante demonstrar de que forma o multiculturalismo, como atual telos estético hollywoodiano, se expressa em “Terra de ninguém”, um dos filmes da safra “politicamente correta” mais recente, e um dos mais incensados pela grande imprensa mundial.

“Terra de ninguém” (“No man’s land”) recebeu, em 2002, o Oscar de melhor filme estrangeiro da Academia de Ciência e Arte de Hollywood. Antes dessa conquista, em 2001, ano da sua realização, o filme recebera o grande prêmio do júri do festival de Cannes, um dos mais cobiçados pelos cineastas do mundo inteiro.

Dirigido por Danis Tanovic, “Terra de ninguém” foi co-produzido com recursos públicos e privados oriundos de investimentos da Bélgica, França, Itália, Inglaterra e da Eslovênia, e distribuído comercialmente no mundo inteiro por duas das maiores empresas norte-americanas (20th Century Fox e United Artist). Não por acaso, todos esses países estiveram envolvidos direta ou indiretamente no conflito na região dos Bálcãs, no sudeste europeu, ocorrido entre 1992 e 1995 (7). O filme foi lançado no circuito comercial europeu e norte-americano em 2001, e na América Latina e na Ásia em fins de 2002. Uma prévia e intensa divulgação publicitária, incluindo comentários encomendados, sinopses, cartazes, chamadas na TV etc., o apresentava como um libelo político do tipo multiculturalista contra a guerra. Na apresentação publicitária destacava-se a situação tragicômica vivida por dois oponentes que o destino havia arrastado para uma trincheira entre os dois lados em guerra. Por toda a parte, tal publicidade despertou curiosidade e levou “Terra de ninguém” a angariar de imediato a simpatia do público e dos articulistas dos cadernos culturais da grande imprensa mundial. E a despeito do consenso observado entre os formadores de opinião de que o filme estava longe de ser uma obra-prima do cinema, os jornais repercutiram e amplificaram a idéia do libelo político de “esquerda”, atribuindo ao enredo satírico desenvolvido por Tanovic o principal mérito artístico do filme.

Longe de pretender revelar um segredo de polichinelo, a verdade é que “Terra de ninguém” procura esconder por detrás de um tema “politicamente correto” um propósito econômico imediato: manter atualizado o gênero “filme de guerra”.

Fonte pioneira e rentavelmente inesgotável do conceito de “cinema-espetáculo” hollywoodiano.

Com efeito, para a indústria cinematográfica norte-americana, a guerra é um manancial temático inesgotável a ser explorado. Seria demasiado pretensioso, senão ocioso de minha parte, tentar listar a quantidade de “filmes de guerra” produzidos ao longo de pouco mais de um século de cinema. Vale, no entanto, ressaltar que, desde o remoto “O nascimento de uma nação” (EUA, 1915), de D. W. Griffith, o gênero “filme de guerra”, seja associado ao drama, à aventura, à comédia, ao terror, ao documento etc., sempre esteve entre os mais rentáveis do cinema mundial. Também é importante notar que é nesse gênero de filme que a indústria cinematográfica norte-americana tem concentrado grande parte do seu esforço estratégico para desenvolver o conceito de “cinema-espetáculo”, fundamental para a sua rentabilidade comercial. As grandes safras de filmes do género referenciadas na guerra da secessão americana, nas duas grandes guerras mundiais, na guerra do Vietnã, na guerra do Afeganistão e nas inúmeras disputas territoriais regionais atestam isso.

Do ponto de vista político, o propósito de “Terra de ninguém” é mediato. Isto é, de um lado, o tema “politicamente correto” do filme busca, no horizonte particular da disputa fratricida nos Bálcãs, uma única resposta objetiva para nove mil anos de ódio latejando no sangue de seus irmãos. De outro lado, hiperdimensionado pelo caráter espetacular do cinema, o tema se universaliza.

Seu horizonte é planetário, e sua perspectiva é o futuro do mundo globalizado. É sob esse prisma que o filme de Tanovic se amolda ao telos estético-político hollywoodiano multiculturalista.

A história de “Terra de ninguém” se refere ao dilema vivido por dois homens, um servo-croata e um bósnio-herzegovínio, oponentes numa guerra que os colocou numa mesma trincheira entre os dois lados em conflito. O dilema deles é o que fazer com um terceiro homem, bósnio-herzegovínio, que imaginavam ter morrido, e que se encontra deitado sobre uma mina explosiva altamente letal.

Retirá-lo do lugar em que se encontra importaria na morte de todos. Duas soluções se apresentam: abandoná-lo à própria sorte ou pedir ajuda da força especial de segurança, formada por soldados de diversos países observadores do conflito (os “capacetes azuis” da ONU). Após alguns momentos de relutância marcada por hostilidades de ambas as partes, um sopro de fraternidade cede abrigo à decisão comum pela busca de auxílio.

Partindo dessa situação particular, o filme passa por uma reconfiguração no quadro dos personagens que irão participar diretamente da ação central e, por conseguinte, do desenrolar da história. Um novo grupo, formado centralmente por um oficial dos “capacetes azuis” e uma jornalista de TV, é introduzido no filme com uma dupla função: expandir o tempo-espaço da narrativa e universalizar o seu tema central. Além dessa função, uma outra se fará presente, cuja finalidade explicarei mais adiante. Desse modo, até o seu enlace final, a trama do filme se desenrola repercutindo e universalizando o dilema vivido particularmente desde o início pelos dois homens, bem como a sua relutância e a sua hostilidade.

Apesar do seu aparente ceticismo, “Terra de ninguém” traz uma mensagem francamente otimista, considerando o empenho do seu diretor em buscar convencer o público da necessidade de “olhar para o futuro”. Parafraseando Rodrigues (1998), o que o discurso cinematográfico de Tanovic busca é plasmar o futuro na imagem de um mundo multiculturalista. E nisso a sua fraseologia cinematográfica soa tão patética quanto a de “A vida é bela”, de Roberto Benigni (1997. “La vita è bela”. Itália, Miramax).

O que “Terra de ninguém” se propõe a criticar verdadeiramente é o “passado atrasado” como uma imagem a ser ultrapassada. E o faz recorrendo a uma enunciação sintagmática realizada em dois níveis superpostos. Num nível primário, o passado é inominado. Ele é simplesmente um sentimento vegetativo, cego à presença do outro. Associado ao extermínio sangrento de toda e qualquer diversidade cultural, esse sentimento ganha um significado próprio, embora seja mantido em anonimato. Seu significado é o Atraso. Sob esse aspecto, o enunciado do filme visa oferecer ao espectador um quadro no qual a intolerância cultural aparenta não ser responsabilidade de alguém especificamente ou decorrente de uma determinada situação estrutural. Não por acaso, em todas as sinopses oficiais, é destacada a longa sequência inicial em que os dois personagens centrais discutem sobre quem dera início àquela guerra absurda e, em meio a mútuas reminiscências, acabam descobrindo que, na juventude, amaram uma mesma garota.

Num nível secundário, esse “passado atrasado” ganha uma denominação genérica: o Poder. Antes de comentar esse aspecto, gostaria de retomar algo que deixei sem explicação acima. Isto é, a outra função do grupo de personagens formado pelo oficial dos “capacetes azuis” e a jornalista de TV. Apesar de esses personagens serem meros subalternos em suas respectivas estruturas hierárquicas, ele, francês, subordinado ao comandante norte-americano da força especial, e ela, inglesa, subordinada ao diretor do programa jornalístico de uma rede de TV multinacional, seus papéis representam, também respectivamente, a ONU e a mídia, e, em última análise, o Poder. No entanto, no filme, longe de representar objetivamente a materialidade dos conflitos latentes nas relações sociais de produção, o Poder é tanto um artifício dramático utilizado por Tanovic para dar um desfecho grandioso à trama, como uma máscara estilística para elidir questões mais sérias. Analisemos esse ponto.

Da mesma forma que Benigni em “A vida é bela”, Tanovic estrutura a narrativa fílmica de “Terra de ninguém” a partir de um conjunto de referências cinematográficas banalizadas pelo “mainstream” cinematográfico.Tais referências funcionam ora como elementos de articulação gramatical da linguagem fílmica, ora como citações de imagens-conceitos populares. Um exemplo disso é a camiseta de um dos personagens estampando a famosa marca registrada dos Rolling Stones: uma boca rosada com a língua de fora. Ou o tênis “All star” de um outro. Nesse sentido, “Terra de ninguém” não foge ao padrão do cinema pós-moderno, tal como analisado por Jameson (1993) e também Harvey (1993): trata-se de um pastiche nostálgico.

Em linhas gerais, para Jameson, o pastiche caracteriza-se pelo uso de uma “máscara estilística vazia”, mediante a qual o artista autor da obra busca colar fragmentos de códigos lingüísticos ou “idioletos particulares” numa espécie de fala corrente (8). De sua parte, Harvey, em concordância com Jameson, chama a atenção para o sintoma nostálgico contido no ecletismo lingüístico resultante dessa colagem. Para ele, há latente nesse ecletismo pós-moderno uma rejeição à ideia de progresso, “[...] um abandono de todo o sentido de continuidade e memória histórica, enquanto desenvolve uma incrível capacidade de pilhar a história e absorver tudo o que nela classifica como aspecto do presente” (9).

Dizia mais acima que o Poder no filme de Tanovic é tanto um artifício dramático como uma máscara estilística. Como artifício dramático, Tanovic lança mão, na seqüência final do filme, de um personagem ex machina – um artifício dramático bastante comum no teatro grego clássico para dar um desfecho feliz à trama. Na verdade, Tanovic inverte o sentido original desse personagem (“deus ex machina”). De fato, em “Terra de ninguém”, na seqüência final do filme, na qual o comandante dos “capacetes azuis” desce à cena principal do conflito num helicóptero e deflagra o desfecho trágico de toda a trama, o Poder assume o papel de um “diabo ex machina”. Já como máscara estilística, o Poder associado à imagem de um “diabo ex machina” tem por finalidade jogar na lata de lixo da história o fato de a atual disputa geopolítica nos Bálcãs ter ocorrido a partir da desintegração do chamado bloco soviético.

De fato, no filme, por meio dos diálogos dos personagens principais em conflito, as informações sobre esse processo são apresentadas de forma restrita, limitadas a algumas vagas referências ao general Tito e à Iugoslávia. Para Tanovic, a atual guerra fratricida é uma mera extensão de uma disputa territorial milenar, independente do desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção de cada época. O desfecho trágico dos personagens, com as suas mútuas idiossincrasias, tem por finalidade enterrar de vez o “passado atrasado”.

Embora não alimente a ambição de esgotar o debate sobre o tema do multiculturalismo (penso que seria importante, por exemplo, abordar alguns aspectos que me parecem polêmicos na proposta do educador canadense Peter McLaren sobre as possibilidades de um multiculturalismo crítico), gostaria, entretanto, de analisar brevemente, para concluir, um aspecto da trama de “Terra de ninguém” que aproxima a sua proposta estética e política com a de outro género popular de Hollywood: o “filme de faroeste”.

Pode a princípio parecer curioso e contraditório que um filme de guerra “politicamente correto” tenha qualquer proximidade com um gênero de filme que, por definição, é “politicamente incorreto”. A historiografia de Hollywood é reveladora de um prodigioso acervo de filmes de faroeste tendo por tema a conquista da “terra de ninguém”. Invariavelmente, no caso, “ninguém” é representado pelo índio, ocupante secular do território norte-americano. Não é demasiado insistir, como nos mostram centenas, talvez milhares, de filmes e seriados de faroeste, que no imaginário hollywoodiano (e do público) o índio representa um “passado atrasado” a ocupar “indevidamente” vastas extensões de terras, sem tirar dela qualquer proveito econômico. Seu antípoda, o “futuro”, é o homem de Marlboro, munido de arado e Winchester, único capaz de dar sentido à existência daquela terra. Como em qualquer filme de ação, o desenvolvimento da trama visa preparar o espectador para o clímax do filme, a partir do que ocorrerá o desfecho final.

De um modo geral, nos “filmes de faroeste” cuja trama envolve a disputa territorial, o clímax é construído progressivamente, a partir de derrotas sucessivas dos colonizadores, até o enfrentamento final. Na última e mais sangrenta das batalhas, quando a vitória do índio parece iminente, ocorre o desfecho final. O toque de carga de uma corneta anuncia ao longe o “Sétimo Regimento de Cavalaria” – o “deus ex machina” do velho oeste. E ela irrompe a cena para derrotar o Atraso e conquistar a Terra de Marlboro.

 

1 Reis, Ronaldo Rosas. “Cinema e público: o que a educação tem a ver com isso?”.Movimento. Revista da Faculdade Educação da Universidade Federal Fluminense. Niterói,Intertexto, no 3, 2002, pp. 154-162.

2 José Rodrigues. O moderno príncipe industrial. O pensamento pedagógico da CNI. Campinas:

Autores Associados, 1998.

3 Idem, ibidem, p. 130.

4 Idem, ibidem, p.131.

5 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

6 Jacob Gorender. “O nascimento do materialismo histórico”. In: Karl Marx e Friedrich Engels. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002, Introdução, p. XXXII.

7 Refiro-me ao fato de que, oficialmente, estes países enviaram contingentes de soldados,os “capacetes azuis”, para compor o quadro internacional de “observadores” da ONU.

8 Fredric Jameson. “Pós-modernismo e sociedade de consumo”. In: E. Ann Kaplan. Omal-estar no pós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, pp. 22-29.

9 David Harvey. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1993, p. 58.

 

Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense – ronaldo3@vm.uff.br.

 

 

 

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