Da humanidade dos touros Versão para impressão
Segunda, 04 Outubro 2010
Ao mesmo tempo que corre uma petição contra as touradas, o Dr. Moita Flores eminante criminologista e presidente da Câmara Municipal de Santarém encabeça uma outra em defesa da Festa Brava, escrita em termos adequados à natureza dos animais.
 
Artigo de Mário Tomé

O  populismo e o oportunismo são características de muitos políticos e notoriamente do inteligente Moita Flores que tem que ganhar os votos da malta da «pata e corno» em Santarém. E os cavernícolas ainda têm muita força.
Os defensores cordatos e democráticos da «Festa Brava» acham que não devemos zangar-nos porque «quem quer vai quem não quer não vai.» As touradas são a garantia da preservação da raça «touro bravo», o touro sofre praticamente nada (tem a pele muito dura e o sangue é mesmo assim”!...)A tradição é questão vital para uns e não é para outros, etc.
Mas infelizmente não podemos ficar todos felizes.


A tradição é um suporte da vida das sociedades, um meio “deslisante” por onde a renovação das sociedades se desenrola. Nenhuma transformação social, por mais radical, pôde cortar totalmente com a tradição, pôde passar sem ela. Mas todas as transformações na sociedade vão obrigando as tradições a, paulatinamente, cederem lugar naquilo que comportam de mais ostensivamente contrário às novas práticas, aos novos conceitos, às novas formas de vida e de relacionamento, às novas morais. Especialmente à ética como ciência eminentemente histórica. E, em última instância corta-se com elas.
Muito repeitáveis pessoas de cultura e de ciência, perante o carácter avassalador e destruidor do crescimento capitalista, sentem necessidade de travar a ofensa aos costumes populares, por vezes não distinguindo entre os que são defensáveis e os que não são.


A ciência tem, naturalmente, um papel determinante na transformação das sociedades, pelo que integra de consciência da base material em que se movem e apoiam as  classes interessadas  na mudança.
Por isso a evolução que estimula é alvo da ira e da desconfiança dos que não quere

m mudar. Seja o Papa, sejam os toureiros, sejam os presidentes da câmaras municipais de Barrancos ou Santarém
É a humanidade que se encontra com a necessidade de, em seu próprio interesse, reconhecer direitos aos outros seres vivos, e até inanimados que, paradoxalmente, passam a ser detentores autónomos daquilo que só o ser humano lhes pode conferir. O aprofundamento do conhecimento e respeito de si próprio aprofunda o conhecimento do outro, e vice-versa.
É por isso que, se as tradições mudam forçosamente quanto àquilo que vai sendo considerado contrário aos interesses vitais, culturais e sociais do ser humano, também mudam no que diz respeito os interesses dos não humanos.


Os direitos dos animais têm assumido modernamente um papel preponderante na relação das pessoas com eles mas também consigo próprias.


Há coisas que degradam toda a humanidade. Como a tortura, a pena de morte, a guerra e a violência contra os animais.
Os direitos dos animais são parte integrante dos direitos humanos e a sua violação um crime que afecta a própria humanidade.. A evolução das sociedades até já permite compreender que a guerra é um crime em si mesma e a pena de morte (excepto no Irão e nos EUA, entre outros) e a tortura (escepto no Irão e nos EUA entre outros) são intoleráveis crimes contra a humanidade.


Os animais têm sido, em função da evolução da ética, «objecto de sujeito», passe o trocadilho,e estão cada vez mais próximos dos seres humanos ou seja têm direito aos seus próprios direitos. A violação desses direitos constituem um crime e inscrevem-se na violação da essência dos próprios direitos humanos.

Complicado? Acabem com as touradas e já percebem.

Ou seja:
Nada disto tem a ver (fundamentalmente) com os gostos.Tem a ver com a história que o ser humano vai fazendo ( nelas incluindo moral, tradição, gostos e modas)


A relação profunda com o amor e a morte que a mística dos touros reflecte, que o Almodôvar tão bem coloca,ou o Hemingway, ou o Goya, ou o Picasso, ou o Lorca, etc. tantos e tantos grandes nomes do que de melhor a humanidade se orgulha, também estão presentes, por exemplo na guerra. E também em torno da guerra, na sua exaltação e na sua condenação, ou simplesmente na sua vivência se produziram obras maiores do pensamento e da estética, das artes. Nada como a guerra para nos revelar o que de mais alto e mais nobre ou mais baixo e mais reles existe no ser humano. Há até quem mate por amor, quem  morra por altruísmo, quem justifique o massacre pela defesa da pátria, o genocídio pela fraternidade entre iguais contra o que é diferente e inimigo, etc. E no entanto...


A questão é outra. Não é pelo facto de na guerra  poderem ser revelados os sentimentos mais nobres que se aceita a guerra. É que com xenofontes, goyas, almodôvares, tolstoys, cholokovs, remarques e jüngers, a humanidade foi construindo sucessivas modernidades, logo ultrapassando sucessivamente muitas tradições, «reconvertendo outras», conservando ainda outras.


A questão é, pois, «filosófica», fundamentalmente histórica eminentementepolítica.Essencialmente ética.
Ainda hoje há quem ache que isso dos direitos dos animais é folclore ou quem ache que o sofrimento dos animais não é nada de especial já que se trata de bestas. Mas os animais, mesmo na mitologia, tinham um tratamento bem diferente. O boi,  o touro - conheci, nomeadamente, uma velhota  que de vez em quando sonhava que ia ser «derrubada» por um boi - o Minotauro, o boi Ápis, (mas também o gato e o cão, todos os bichos da cobra ao crocodilo, passando pelo falcão, nos egípcios, nos timorenses, nas culturas que marcaram a história da humanidade e que foram ultrapassadas) tem inspirado obras maiores da literatura, da pintura, do cinema. 

Os direitos dos animais existem e o seu reconhecimento sucessivo deu-se  bastante colado às reivindicações e à luta pelos direitos das pessoas.

 O argumento de que os touros sofrem mais com a tourada à portuguesa do que com a morte na arena, sendo verdadeiro não serve de nada - acabem com as touradas! O tempo chegou.


O argumento da preservação da casta sendo justo também não serve de nada: os touros são belos na campina, criem-nos só por isso. O mercado tem outras exigências? Mas nós não nos guiamos especialmente pelas exigências do mercado e até achamos que o Estado tem um papel mais que suplectivo...


Hoje  os direitos dos animais estão inscritos nos códigos e nos regimes legais de todos os países «civilizados», nomeadamente no nosso e na UE. Sendo coisa relativamente nova é natural que haja resistências, incompreensões, particularismos, reacções. Mas se os direitos dos animais não se sobrepõem, obviamente, aos direitos das pessoas são-lhes justapostos. E vão-se equivalendo especialmente quando se tarta do sofrimento gratuito; e já é tempo de reagir seriamente contra o que se passa nos bunchenwalds de matança de animais para consumo da carne.


Finalmente a ordem jurídica: a defesa do respeito pela lei e de não legislar o particular ou a excepção insere-se na defesa do regime democrático e do Estado de Direito que são conquistas fundamentais da sociedade humana mas...reversíveis.
O nosso gosto tem de entender-se com a nossa inteligência, a nossa cultura, com o que nos impõe a ética, nos diz a ciência. A tradição ou a ligação mais ou menos profunda a uma tradição tem de subordinar-se ao que a sociedade em transformação vai colocando como inadmissível.  


Walter Benjamim dizia que a condição humana exige que determinadas coisas sejam inadmissíveis, intoleráveis.


 

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