Ao
mesmo tempo que corre uma petição contra as touradas, o Dr. Moita
Flores eminante criminologista e presidente da Câmara Municipal de
Santarém encabeça uma outra em defesa da Festa Brava, escrita em termos
adequados à natureza dos animais.
Artigo de Mário Tomé
O
populismo e o oportunismo são características de muitos políticos e
notoriamente do inteligente Moita Flores que tem que ganhar os votos da
malta da «pata e corno» em Santarém. E os cavernícolas ainda têm muita
força.
Os defensores cordatos e
democráticos da «Festa Brava» acham que não devemos zangar-nos porque
«quem quer vai quem não quer não vai.» As touradas são a garantia da
preservação da raça «touro bravo», o touro sofre praticamente nada (tem
a pele muito dura e o sangue é mesmo assim”!...)A tradição é questão
vital para uns e não é para outros, etc.
Mas infelizmente não podemos ficar todos felizes.
A
tradição é um suporte da vida das sociedades, um meio “deslisante” por
onde a renovação das sociedades se desenrola. Nenhuma transformação
social, por mais radical, pôde cortar totalmente com a tradição, pôde
passar sem ela. Mas todas as transformações na sociedade vão obrigando
as tradições a, paulatinamente, cederem lugar naquilo que comportam de
mais ostensivamente contrário às novas práticas, aos novos conceitos,
às novas formas de vida e de relacionamento, às novas morais.
Especialmente à ética como ciência eminentemente histórica. E, em
última instância corta-se com elas.
Muito
repeitáveis pessoas de cultura e de ciência, perante o carácter
avassalador e destruidor do crescimento capitalista, sentem necessidade
de travar a ofensa aos costumes populares, por vezes não distinguindo
entre os que são defensáveis e os que não são.
A
ciência tem, naturalmente, um papel determinante na transformação das
sociedades, pelo que integra de consciência da base material em que se
movem e apoiam as classes interessadas na mudança.
Por
isso a evolução que estimula é alvo da ira e da desconfiança dos que
não quere
m mudar. Seja o Papa, sejam os toureiros, sejam os presidentes
da câmaras municipais de Barrancos ou Santarém
É
a humanidade que se encontra com a necessidade de, em seu próprio
interesse, reconhecer direitos aos outros seres vivos, e até inanimados
que, paradoxalmente, passam a ser detentores autónomos daquilo que só o
ser humano lhes pode conferir. O aprofundamento do conhecimento e
respeito de si próprio aprofunda o conhecimento do outro, e vice-versa.
É
por isso que, se as tradições mudam forçosamente quanto àquilo que vai
sendo considerado contrário aos interesses vitais, culturais e sociais
do ser humano, também mudam no que diz respeito os interesses dos não
humanos.
Os
direitos dos animais têm assumido modernamente um papel preponderante
na relação das pessoas com eles mas também consigo próprias.
Há coisas que degradam toda a humanidade. Como a tortura, a pena de morte, a guerra e a violência contra os animais.
Os
direitos dos animais são parte integrante dos direitos humanos e a sua
violação um crime que afecta a própria humanidade.. A evolução das
sociedades até já permite compreender que a guerra é um crime em si
mesma e a pena de morte (excepto no Irão e nos EUA, entre outros) e a
tortura (escepto no Irão e nos EUA entre outros) são intoleráveis
crimes contra a humanidade.
Os
animais têm sido, em função da evolução da ética, «objecto de sujeito»,
passe o trocadilho,e estão cada vez mais próximos dos seres humanos ou
seja têm direito aos seus próprios direitos. A violação desses direitos
constituem um crime e inscrevem-se na violação da essência dos próprios
direitos humanos.
Complicado? Acabem com as touradas e já percebem.
Ou seja:
Nada
disto tem a ver (fundamentalmente) com os gostos.Tem a ver com a
história que o ser humano vai fazendo ( nelas incluindo moral,
tradição, gostos e modas)
A
relação profunda com o amor e a morte que a mística dos touros
reflecte, que o Almodôvar tão bem coloca,ou o Hemingway, ou o Goya, ou
o Picasso, ou o Lorca, etc. tantos e tantos grandes nomes do que de
melhor a humanidade se orgulha, também estão presentes, por exemplo na
guerra. E também em torno da guerra, na sua exaltação e na sua
condenação, ou simplesmente na sua vivência se produziram obras maiores
do pensamento e da estética, das artes. Nada como a guerra para nos
revelar o que de mais alto e mais nobre ou mais baixo e mais reles
existe no ser humano. Há até quem mate por amor, quem morra por
altruísmo, quem justifique o massacre pela defesa da pátria, o
genocídio pela fraternidade entre iguais contra o que é diferente e
inimigo, etc. E no entanto...
A
questão é outra. Não é pelo facto de na guerra poderem ser revelados
os sentimentos mais nobres que se aceita a guerra. É que com
xenofontes, goyas, almodôvares, tolstoys, cholokovs, remarques e
jüngers, a humanidade foi construindo sucessivas modernidades, logo
ultrapassando sucessivamente muitas tradições, «reconvertendo outras»,
conservando ainda outras.
A questão é, pois, «filosófica», fundamentalmente histórica eminentementepolítica.Essencialmente ética.
Ainda
hoje há quem ache que isso dos direitos dos animais é folclore ou quem
ache que o sofrimento dos animais não é nada de especial já que se
trata de bestas. Mas os animais, mesmo na mitologia, tinham um
tratamento bem diferente. O boi, o touro - conheci, nomeadamente, uma
velhota que de vez em quando sonhava que ia ser «derrubada» por um boi
- o Minotauro, o boi Ápis, (mas também o gato e o cão, todos os bichos
da cobra ao crocodilo, passando pelo falcão, nos egípcios, nos
timorenses, nas culturas que marcaram a história da humanidade e que
foram ultrapassadas) tem inspirado obras maiores da literatura, da
pintura, do cinema.
Os
direitos dos animais existem e o seu reconhecimento sucessivo deu-se
bastante colado às reivindicações e à luta pelos direitos das pessoas.
O
argumento de que os touros sofrem mais com a tourada à portuguesa do
que com a morte na arena, sendo verdadeiro não serve de nada - acabem
com as touradas! O tempo chegou.
O
argumento da preservação da casta sendo justo também não serve de nada:
os touros são belos na campina, criem-nos só por isso. O mercado tem
outras exigências? Mas nós não nos guiamos especialmente pelas
exigências do mercado e até achamos que o Estado tem um papel mais que
suplectivo...
Hoje
os direitos dos animais estão inscritos nos códigos e nos regimes
legais de todos os países «civilizados», nomeadamente no nosso e na
UE. Sendo coisa relativamente nova é natural que haja resistências,
incompreensões, particularismos, reacções. Mas se os direitos dos
animais não se sobrepõem, obviamente, aos direitos das pessoas são-lhes
justapostos. E vão-se equivalendo especialmente quando se tarta do
sofrimento gratuito; e já é tempo de reagir seriamente contra o que se
passa nos bunchenwalds de matança de animais para consumo da carne.
Finalmente
a ordem jurídica: a defesa do respeito pela lei e de não legislar o
particular ou a excepção insere-se na defesa do regime democrático e do
Estado de Direito que são conquistas fundamentais da sociedade humana
mas...reversíveis.
O
nosso gosto tem de entender-se com a nossa inteligência, a nossa
cultura, com o que nos impõe a ética, nos diz a ciência. A tradição ou
a ligação mais ou menos profunda a uma tradição tem de subordinar-se ao
que a sociedade em transformação vai colocando como inadmissível.
Walter Benjamim dizia que a condição humana exige que determinadas coisas sejam inadmissíveis, intoleráveis.
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