O trabalho, o capital e o macaco |
Segunda, 30 Agosto 2010 | |||
No processo de recomposição da esquerda, visando a construção de alternativas ao modelo neoliberal que a globalização consagrou como o capitalismo real, não é despiciendo saber se o trabalho continua a ser o eixo que estrutura a sociedade. Uma alternativa de esquerda tem de contemplar múltiplas áreas da democracia política, económica, cultural e ambiental que dão corpo a uma cidadania plena e emancipada, sem lugar para discriminações de género, de origem étnica ou orientação sexual. Mas, neste feixe complexo de agendas e contradições que o capitalismo de casino veio agudizar e globalizar, é preciso situar o lugar e o papel do trabalho. A presente abordagem sustenta a tese da centralidade do trabalho. E fá-lo tomando por base o artigo interessantíssimo, escrito por Engels em 1876 - Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem - que, embora incompleto, deveria integrar a obra “Dialéctica da Natureza”. Eis algumas ideias-chave, para estimular a sua leitura: A mão não é apenas o órgão do trabalho; é também o produto dele. A comparação com os animais mostra-nos que a explicação da origem da linguagem a partir do trabalho e pelo trabalho é a única acertada. O desenvolvimento do cérebro e dos sentidos ao seu serviço, a crescente clareza de consciência, a capacidade de abstracção e de discernimento cada vez maiores, reagiram por sua vez sobre o trabalho e a palavra, estimulando mais e mais o seu desenvolvimento. E que voltamos a encontrar como sinal distintivo entre a manada de macacos e a sociedade humana? Outra vez, o trabalho. Escrito há mais de um século, este artigo não perfilha uma visão economicista do trabalho nem encerra a luta de classes nos muros da fábrica; antes rasga uma perspectiva aberta a todos os aspectos da vida social, antecipa a crise ambiental movida pela sede do lucro e traça as bases duma perspectiva ecológica socialista. Esta visão integradora da natureza e da sociedade traduz uma lei fundamental da dialéctica: todos os fenómenos estão relacionados entre si. Mas não esbate, antes pelo contrário, este “sinal distintivo” da sociedade humana: o trabalho, no qual se cruzam os dois pólos da contradição - proletariado e burguesia - em unidade e luta de contrários que atravessa toda a sociedade capitalista, até à sua superação por um novo modelo socialista.
Proletariado do século XXI Longe de desaparecer ou perder papel na voragem da globalização, o proletariado cresceu em número e internacionalizou-se, em dois movimentos aparentemente opostos mas que se completam dialecticamente: as deslocalizações, com as quais o capital visa aumentar a taxa de lucro, recorrendo a mão-de-obra barata e sem direitos nas novas “fábricas do mundo”; e as migrações em massa, que sujeitam continentes inteiros a um êxodo sem paralelo na História moderna. Num mundo caótico, onde só existe liberdade de circulação para a especulação financeira, o investimento produtivo e gerador de emprego não se desloca para as zonas mais carenciadas. Pelo contrário, a globalização obriga legiões de famintos a saltarem muros e atravessarem oceanos para venderem a força de trabalho. Pelo caminho morrem milhões, num processo canibalesco que está para o capitalismo como as guerras, as doenças ou as drogas.
Novos perfis do trabalho assalariado Este situação de classe em si não se transforma automaticamente em consciência de classe para si ou em maior combatividade, que depende das conjunturas e da relação de forças ainda muito favorável ao capital e ao neoliberalismo. Mas, a prazo, reforçará o combate de classe aos mecanismos da exploração ampliada a que está sujeita. Apesar de serem uma parte minoritária dos trabalhadores, estas camadas - simbolizadas em Portugal na Autoeuropa - representam o sector mais avançado dos trabalhadores e apontam a tendência de futuro. No outro extremo, uma massa de trabalhadores não qualificados efectuam tarefas manuais, duras e penosas (agricultura, construção, limpezas, hotelaria e diversos serviços), com taxas de lucro menos elevadas mas indispensáveis ao funcionamento da sociedade. Nas metrópoles capitalistas, grande parte destes assalariados são imigrantes. Entre estes dois pólos subsistem sectores de mão-de-obra intensiva, como o têxtil e o calçado, em processo de falência sob o impacto das deslocalizações, que representam ainda uma parte significativa do aparelho produtivo em Portugal. E há novas concentrações proletárias, por exemplo nos callcenters e nos hipermercados, onde se processa informação e se transforma matéria-prima em condições de enorme precariedade e exploração. O mundo do trabalho alargou-se, tornou-se mais complexo e incorporou categorias como o teletrabalho, o trabalho à distância, no domicílio, etc. Por vezes assume formas bizarras, como os falsos recibos verdes e os pseudo empresários em nome individual a que Marx chamaria, simplesmente, proletários.
Fronteiras de classe Há hoje quem chame a estes gestores lumpen-burguesia, em oposição aos respeitadores da velha ética protestante que terá marcado os primórdios do capitalismo. Daria matéria para outro artigo, mas o tempo não volta para trás. Este é o capitalismo real que temos: na economia de casino, a especulação financeira é o principal instrumento para suster a queda tendencial da taxa de lucro. Não há forma de travar esta fuga para a frente (que só pode produzir novas e mais profundas crises) sem pôr em causa o próprio capitalismo. Em jeito de caricatura, invertendo o raciocínio de Engels: se o trabalho impulsionou a transformação do macaco em homem, o parasitismo do capital financeiro, ao entravar o desenvolvimento das forças produtivas e desarticular o mundo do trabalho, ameaça a humanidade com o retrocesso aos tempos da macacada. Basta olhar com atenção para alguns espécimes que hoje governam os destinos do mundo, muitos dos quais nunca foram eleitos. Dito de outra forma: socialismo ou barbárie. Artigo de Alberto Matos 1) “Não fazem parte da classe trabalhadora ou proletariado moderno os gestores do capital, que são parte constitutiva da classe dominante, pelo papel central que têm no controle, gestão e sistema de comando do capital; estão excluídos também os pequenos empresários, a pequena burguesia urbana e rural que é detentora - ainda que em pequena escala - dos meios de produção. E estão excluídos também aqueles que vivem de juros e da especulação". Ricardo Antunes, professor de Sociologia do Trabalho na Unicamp / São Paulo, Brasil. Autor de “Os sentidos do Trabalho” e “Adeus ao Trabalho” e coordenador da colecção “Mundo do Trabalho”.
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A Comuna 33 e 34
A Comuna 34 (II semestre 2015) "Luta social e crise política no Brasil" | Editorial | ISSUU | PDF
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