As novas medidas para a regulação financeira na UE e a Eurocrise |
Sexta, 10 Dezembro 2010 | |||
Na Europa, a crise financeira encontrou uma configuração institucional peculiar que a converteu numa crise específica da zona euro. Uma série de medidas visando a regulação do sistema financeiro têm sido discutidas contudo, elas denotam um diagnóstico míope da crise, atribuindo-a à ganância e falta de transparência, e não tocando na estrutura institucional que criou e está a agravar esta eurocrise. Uma União Monetária desigual e a crise
O desenho da integração europeia traduz dois princípios caros à ortodoxia neoliberal: um mercado único, sem barreiras institucionais à mobilidade de capitais e mercadorias, e uma moeda única forte e estável, mantida por uma política monetária não discricionária, orientada para a manutenção dessa estabilidade. Esta configuração produziu e agravou assimetrias profundas, ao mesmo tempo que destituiu os governos nacionais dos instrumentos de política económica que permitissem conciliar ajustes de competitividade necessários ao mercado único com objectivos macroeconómicos especificamente domésticos. Esta é uma combinação que uma compreensão desta crise não pode ignorar. Relativamente às assimetrias, a abertura dos mercados em condições de partida desiguais veio servir as estratégias de crescimento assente nas exportações dos países do centro (França e Alemanha, sobretudo), enquanto os países periféricos (Espanha, Portugal e Grécia) acumularam défices comerciais, financiados por fluxos de capitais do exterior. Os défices comerciais correspondem a défices financeiros do sector público e privado. Contudo, o Pacto de Estabilidade e Crescimento impediu que o sector público verificasse défices excessivos. Tirando o caso da Grécia, a perigosa dívida externa dos países periféricos de que tanto se fala é, na verdade, sobretudo dívida privada. Estas assimetrias são agravadas num quadro institucional em que, por um lado os governos praticamente não dispõem de margem de intervenção nas economias, e em que, por outro, não existe um enquadramento institucional adequado da moeda única (orçamento comunitário e emissão de dívida) que previna a instabilidade financeira decorrente destas assimetrias. As pressões de competitividade que o mercado único coloca sobre as economias, por via das pressões sobre os custos do trabalho, não podem, no quadro da união monetária, ser mitigadas por instrumentos de política monetária e cambial. Ao mesmo tempo, a disciplina fiscal imposta pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento limita à partida a política orçamental, empurrando-a para objectivos compatíveis com o mercado e erodindo a provisão pública. E é neste contexto de dupla depauperização das populações – quer por via das pressões sobre o trabalho, quer por via do recuo da função social do Estado – que aumenta o recurso às instituições financeiras privadas e o endividamento do sector privado. Esta configuração da União Monetária Europeia, favorável à financeirização das economias num esquema de expropriação, por parte instituições financeiras dos países do centro, aos países deficitários da periferia, é confirmada pelos estatutos do Banco Central Europeu. Único responsável pela política monetária europeia, o BCE apresenta dois traços estatutários que vão no sentido da concepção financeirizada da UME: o primeiro é a proibição de financiamento directo dos Estados e, portanto, de compra de títulos de dívida soberana; o segundo é a independência relativamente ao poder político e ao escrutínio popular democrático. O financiamento das economias da UME está assim totalmente na dependência de mercados financeiros privatizados, liberalizados e desregulados, guiados por motivações rentistas relativamente aos fluxos de financiamento associados a estas assimetrias. Enquanto isto, a decisão política não tem capacidade institucional para intervir junto das causas estruturais da crise, por estar espartilhada entre essa lógica especulativa e rentista que guia os mercados financeiros, a disciplina fiscal que agrava a recessão sem corrigir assimetrias, e uma política monetária indiferente a objectivos de crescimento e emprego.
Medidas de regulação do sistema financeiro da EU – Que mudanças? As medidas propostas pela Comissão Europeia para regular o sistema financeiro partem de um diagnóstico da crise que ignora este contexto assimétrico decorrente da configuração da UME e que é, portanto, enviesado à partida. Se, por um lado, a própria Comissão Europeia admite que a crise financeira que vivemos teve origem na “falha colectiva por parte das instituições financeiras para cumprir a sua missão básica de servir a economia real (…)”, por outro atribui as causas desta falha à falta de regulamentação e ao comportamento dos investidores que, em busca de lucros rápidos, aumentaram a instabilidade de todo o sistema. As falhas de regulação que a Comissão Europeia pretende apresentar unicamente enquanto “buracos negros” no quadro legislativo comunitário são, na verdade, a consequência das politicas prosseguidas pela União Europeia nas ultimas décadas, com vista à promoção e reforço dos mercados financeiros no espaço Europeu. As verdadeiras causas desta crise estão, não na ausência de regulações específicas dos mercados, mas processo de configuração europeia orientado para os interesses financeiros – uma União financeirizada. O plano apresentado pela Comissão Europeia para regular os mercados financeiros inclui novas exigências ao nível dos rácios de capital da banca (à semelhança do estabelecido no Basileia III), a introdução de um conjunto de critérios a serem cumpridos pelos fundos de investimento e agencias de rating a operar na Europa, nomeadamente ao nível de divulgação de informação sobre o risco assumido e análises efectuadas, e a criação de uma “câmara de compensação” no sentido de regular mercados de derivados fora do balanço (transaccionados directamente entre investidores e não nos mercados). Simultaneamente, está em curso uma reforma do sistema de supervisão europeu, com a criação de uma autoridade de supervisão macroprudencial (avalia o risco sistémico) que irá cooperar com Agencias de Supervisão Europeias que se dividem em três áreas: Autoridade para a Banca, Seguros e Fundos de Pensões e Mercados Financeiros. Propõe-se ainda a criação de duas taxas, uma sobre as transacções financeiras e uma outra sobre actividades financeiras. Em primeiro lugar, e enquanto ponto prévio, torna-se necessário dizer que, excepto no caso das Agências de Rating e do Sistema de Supervisão Europeia, as propostas apresentadas pela Comissão não passam disso mesmo, e a sua implementação está cada vez mais longe de se tornar uma realidade, à medida que perdem lugar para o conjunto de reformas que estão, de facto, a ser implementadas no sentido de controlar os orçamentos e reforçar a austeridade dos países membros. A reforma proposta pela Comissão Europeia visa, em última instância, garantir a estabilidade do sistema financeiro, tal como o conhecemos hoje, através de três principais objectivos - 1) Resiliência do sistema a riscos sistémicos e aumento da liquidez; 2) Transparência q.b. enquanto condição necessária para restaurar os níveis de confiança do mercado; e 3) Supervisão, no sentido de impor uma “espécie” de disciplina de mercado e critérios de comportamentais – ignorando o impacto dos desequilíbrios causados pelos mercados financeiros na economia, e sem pôr em causa de forma estrutural a configuração institucional destes, por diversas razões. Em primeiro lugar porque o conjunto de medidas apresentadas não coloca em causa a lógica de independência e neutralidade das autoridades monetárias e de regulação, que continuam a ser encaradas enquanto instituições neutras do ponto de vista político, que organizam o funcionamento dos mercados de capitais liberalizados, independentemente de qualquer objectivo socioeconómico, como o emprego. Em segundo lugar porque, ao cumprirem os objectivos que estão na origem da sua criação, estas medidas irão contribuir para reforçar os mecanismos de auto-regulação dos mercados, os seus níveis de confiança e liquidez, ou seja, as condições para o funcionamento dos mercados atingidos pela crise. Por último, e mais importante, porque em nenhuma destas propostas encontramos uma contribuição para orientar e sujeitar a actividade financeira a prioridades sociais e económicas, politicamente determinadas, ou seja, para assegurar que o sistema financeiro cumpre a sua missão básica, servir a economia real. No limite, imposições como o aumento dos requisitos de capital, se não forem acompanhadas por medidas que promovam um controlo político sobre as decisões de investimento da banca, poderão ter um efeito perverso, na medida em que os bancos transferem para os seus clientes os custos de maior regulação. Em suma, o plano de reforma do sistema financeiro apresentado servirá unicamente o projecto de aperfeiçoamento do funcionamento autónomo dos mercados financeiros, afastando-o do controlo democrático e de prioridades económicas por ele definidas. O “paradoxo da abordagem regulatória” reflecte-se aqui na medida em que mais regulação, per si, não se constitui enquanto garante dos níveis de democratização e justiça do sistema financeiro, não tendo sequer que implicar qualquer tipo de restrição à acção e funcionamento dos mercados liberalizados. Desta forma, este programa de reformas financeiras, em conjunto com as medidas de controlo dos défices europeus (que visam, entre outra coisas, estabelecer o pagamento automático de uma multa por países que excedam os limites de endividamento previstos no PEC) contribuem de forma determinante para a manutenção do processo de integração assimétrica dentro da União Monetária. A ausência de medidas que alterem estruturalmente os sistemas financeiros, impedindo a especulação sobre as dividas públicas, garantindo a canalização de recursos para a economia (de acordo com prioridades politicas), em combinação com o reforço da disciplina fiscal imposta pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento, conduzem a um aumento insustentável da pressão exercida por aquilo a que Rodrik chama o colete-de-forças dourado do capitalismo sobre os países membros, em especial sobre as periferias, na medida em que: 1) mantém os governos dependentes dos mercados financeiros globalizados para se financiarem; 2) remete todo o peso do ajustamento para o sector do trabalho, serviços públicos, estados sociais e standards ambientais. Ao invés da reforma apresentada, devemos defender que qualquer intervenção nos mercados financeiros seja realizada de forma a garantir dois objectivos essenciais: a “eutanásia do rentista”, na medida em que recoloca o funcionamento do sistema financeiro e económico ao serviço de prioridades democraticamente determinadas, e não da manutenção de uma classe de rentistas; e, em segundo lugar, o fim do colete-de-forças neoliberal, de forma a garantir que as escolhas politicas e os bens públicos não ficam reféns dos interesses de uma ordem financeira. Para que estes objectivos sejam cumpridos é urgente exigir, entre outras medidas, uma reconfiguração do Banco Central Europeu, o fim de produtos financeiros especulativos, o controlo público e democrático do sistema de crédito, bem como das transacções de capitais e financeiras, em prol de uma economia saudável, justa e democrática. Mariana Mortágua e Mariana Santos
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A Comuna 33 e 34
A Comuna 34 (II semestre 2015) "Luta social e crise política no Brasil" | Editorial | ISSUU | PDF
A Comuna 33 (I semestre 2015) "Feminismo em Ação" | ISSUU | PDF | Revistas anteriores
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