O sujeito humanista burguês* |
Quinta, 11 Agosto 2011 | |||
A contradição do modernismo nesse aspecto [sujeito humanista burguês] é que, a fim de valiosamente desconstruir o sujeito unificado do humanismo burguês, ele se nutre de aspectos cruciais negativos da experiência real de tais sujeitos na sociedade burguesa tardia, que com bastante freqüência não corresponde, de forma alguma, à versão ideológica oficial. Assim, ele lança aquela que, cada vez mais, é vista como a realidade fenomenológica do capitalismo contra suas ideologias formais, e, ao fazê-lo, descobre que não pode compartilhar completamente nenhuma delas. A realidade fenomenológica do sujeito coloca em questão a ideologia humanista formal, enquanto a persistência dessa ideologia é precisamente o que habilita a realidade fenomenológica a ser caracterizada como negativa. O modernismo, portanto, dramatiza em suas próprias estruturas internas uma contradição-chave na ideologia do sujeito, cuja força podemos apreciar se nos perguntamos em que sentido a concepção humanista burguesa do sujeito como livre, ativo, autônomo e idêntico a si mesmo é uma ideologia viável ou apropriada para a sociedade capitalista tardia. A resposta seria que, num certo sentido, essa ideologia é altamente apropriada a tais condições sociais, enquanto num outro sentido ela dificilmente o é. Essa ambigüidade é desconsiderada por aqueles teóricos pós-estruturalistas que parecem arriscar tudo no pressuposto de que o "sujeito unificado" é, efetivamente, uma parte integral da ideologia burguesa contemporânea, estando, por isso, maduro para urgente desconstrução. Contra essa visão, é certamente possível argumentar que o capitalismo tardio desconstruiu tal sujeito de maneira muito mais eficiente que as meditações sobre a écriture. Como atesta a cultura pós-moderna, o sujeito contemporâneo talvez seja menos o vigoroso agente monádico de uma fase anterior da ideologia capitalista, que uma dispersa e descentrada rede de conexões libidinais, esvaziada de substância ética e interioridade psíquica, a função efêmera deste ou daquele ato de consumo, experiência de media, relacionamento sexual, tendência ou moda. O "sujeito unificado" avulta cada vez mais a essa luz como uma frase vazia ou um moinho ilusório, um remanescente de uma antiga época liberal do capitalismo, antes de a tecnologia espalhar nossos corpos aos quatro ventos, em tantas bugigangas reificadas de técnica e apetite, operação mecânica ou reflexo de desejo. Sem dúvida, se isso fosse totalmente verdadeiro, a cultura pós-moderna sairia triunfalmente inocentada: o impensável ou o utópico, dependendo da perspectiva, já teria acontecido. Mas o sujeito humanista burguês não é, na verdade, simplesmente parte de uma história esgotada que podemos, prazerosa ou relutantemente, deixar para trás: se ele constitui um modelo crescentemente inapropriado a certos níveis de subjetividade, permanece potencialmente relevante em outros. Considere-se, por exemplo, a condição de ser pai e consumidor simultaneamente. O primeiro papel é governado por imperativos ideológicos de agência, dever, autonomia, autoridade, responsabilidade; o último, embora não totalmente livre dessas estruturas, questiona-as significativamente. Os dois papéis não são, com certeza, meramente distintos; mas embora as relações entre eles sejam negociáveis, do ponto de vista prático, o atual consumidor ideal no capitalismo é estritamente incompatível com seu atual pai ideal. O sujeito do capitalismo tardio, em outras palavras, não é apenas o agente sintético auto-regulador postulado pela ideologia humanista clássica, nem simplesmente uma descentrada rede de desejos, mas um contraditório amálgama de ambos. A construção de um tal sujeito nos planos ético, jurídico e político não é completamente contínua a sua constituição como unidade consumidora ou de "cultura de massa". "O ecletismo", escreve Lyotard, "é o grau zero da cultura geral contemporânea: as pessoas escutam reggae, assistem a um western, almoçam McDonald's e jantam cozinha local, usam perfume de Paris em Tóquio e roupas retro em Hong Kong; o conhecimento é um assunto de jogos de TV"(**). Não se trata apenas de que haja milhões de outros sujeitos humanos, menos exóticos que a alta-sociedade de Lyotard, que educam seus filhos, votam como cidadãos responsáveis, saem do trabalho e marcam o cartão de ponto; trata-se também de que muitos sujeitos vivem cada vez mais nos pontos de contraditória intersecção entre essas duas definições. Em certo sentido, este era também o lugar ocupado pelo modernismo, confiante como ainda era em uma experiência de interioridade que, no entanto, podia cada vez menos ser articulada em termos ideológicos tradicionais. Ele podia expor os limites desses termos com estilos de experiência subjetiva que estes não podiam abarcar; mas também lembrava suficientemente dessa linguagem para submeter a condição definitivamente "moderna" a tratamento implicitamente crítico. Sejam quais forem as lisonjas do pós-modernismo, este, em minha visão, constitui o lugar da contradição que ainda habitamos; e as formas mais valiosas de pós-estruturalismo são, portanto, aquelas que, tal como na maior parte dos escritos de Jacques Derrida, se recusam a dar crédito ao absurdo de que alguma vez pudéssemos simplesmente ter nos livrado do "metafísico" como de um casaco descartado. O novo sujeito pósmetafísico proposto por Bertolt Brecht e Walter Benjamin, o Unmensch esvaziado de toda interioridade burguesa, para se tomar o funcionário anônimo e versátil da luta revolucionária, é, a um só tempo, uma metáfora valiosa para nos pensarmos além de Proust e algo desconfortável e demasiadamente próximo dos funcionários anônimos do capitalismo tardio para ser acriticamente endossado. De maneira similar, a estética da vanguarda revolucionária rompe com a mônada contemplativa da cultura burguesa com seu claríssimo chamado à “produção”, apenas para reencontrar em alguns aspectos o sujeito laborioso e industrioso do utilitarismo burguês. Talvez ainda estejamos equilibrados tão precariamente, como o flâneur baudelairiano de Benjamin, entre o rápido desvanecimento da aura do antigo sujeito humanista e as formas ambivalentes de energia e repulsa de uma paisagem urbana. O pós-modernismo empresta algo do modernismo e da vanguarda e, em certo sentido, coloca um contra a outra. Do modernismo propriamente dito, o pós-modernismo herda o eu fragmentário e esquizóide, mas extirpa toda a distância crítica dele, contrapondo a isso uma impassível apresentação de experiências "bizarras" que se assemelha a certos gestos de vanguarda. Da vanguarda, o pós-modernismo toma a dissolução da arte na vida social, a repulsa à tradição, uma oposição à "alta" cultura enquanto tal, mas mistura isso com os impulsos apolíticos do modernismo. De tal modo, ele involuntariamente expõe o formalismo residual de qualquer forma artística radical, que identifica a desinstitucionalização da arte e sua reintegração com outras práticas sociais como um movimento intrinsecamente revolucionário. Pois a questão é, antes, saber sob quais condições e com quais efeitos plausíveis tal reintegração pode ser tentada. Uma arte autenticamente política em nosso próprio tempo poderia, de modo similar, nutrir-se tanto do modernismo como da vanguarda, mas numa combinação diferente daquela do pós-modernismo. As contradições da obra moderna são, como procurei mostrar, implicitamente políticas em seu caráter; mas uma vez que o "político" parecia a esse modernismo pertencer precisamente à racionalidade tradicional da qual tentava escapar, tal fato permaneceu na maior parte submerso sob o mitológico e o metafísico. Além disso, a típica auto-reflexividade da cultura moderna era, a um só tempo, uma forma na qual ela podia explorar algumas das questões ideológicas cruciais por mim delineadas e, na mesma chave, tomava esses produtos opacos e inacessíveis a um público amplo. Uma arte de hoje que, tendo aprendido com o caráter abertamente comprometido da cultura de vanguarda, pudesse refletir as contradições do modernismo sob uma luz mais explicitamente política, fosse capaz de fazê-lo efetivamente apenas se tivesse aprendido sua lição também do modernismo - aprendido, vale dizer, que o próprio "político" é uma questão da emergência de uma racionalidade transformada, e se não é apresentado como tal, ainda assim parecerá parte da própria tradição da qual luta para se libertar o aventurosamente moderno. Terry Eagleton
Notas: * Parte integrante do artigo Capitalismo, modernismo e pós-modernismo (Crítica Marxista, n. 2, 1995), versão portuguesa cedida 'A Comuna pela revista Crítica Marxista, tradução de João Roberto Martins Filho e revisão técnica de Tânia Pellegrini. A primeira versão do referido artigo foi publicada em New Left Review, n2 152, July-August 1985. Na ligação (supra) acede ao artigo com uma introdução feita por Iná Camargo Costa e Maria Elisa Cevasco. ** Jean-François Lyotard, The posmodern condiction: A report on knowlegde, Manchester University Press, 1984. p.76.
|
A Comuna 33 e 34
A Comuna 34 (II semestre 2015) "Luta social e crise política no Brasil" | Editorial | ISSUU | PDF
A Comuna 33 (I semestre 2015) "Feminismo em Ação" | ISSUU | PDF | Revistas anteriores
Karl Marx