Maternidade Voluntária Versão para impressão
Terça, 11 Outubro 2011

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Como afirma Françoise Laurant (2007) (1), o longo caminho para o controlo da fecundidade foi a grande luta do feminismo da segunda metade do século XX. A conquista deste controlo permitiu a autonomia das mulheres face aos homens e face à família. A contracepção foi sem dúvida, a conquista da liberdade sexual e do direito das mulheres disporem do seu próprio corpo. Em França, em 1956, o movimento a favor do planeamento familiar que procurava a legalização da contracepção chamava-se “Maternidade feliz” porque o que estava em causa com a conquista do direito à contracepção era permitir que os casais tivessem uma relação familiar e sexual harmoniosa vivendo em pleno a sua relação e a sua sexualidade sem opressão. No entanto, a verdade é que bem vistas as coisas era do corpo das mulheres que se tratava. Somente em 1975, o direito à Interrupção voluntária da gravidez foi aprovada em França sem que para a concretizar as mulheres tivessem de depender de uma autorização médica ou do parecer do seu cônjuge. Foi na década de 70 que a maioria dos países europeus aprovou a lei da contracepção e da IVG com a excepção grotesca do nosso país que só a veio a aprovar mais de trinta anos depois.

Françoise Laurent (1) salienta que esta conquista se concretizou porque foi exactamente na década de 70 que “fazer de todas as pessoas indivíduos plenos, passou a ser considerado o verdadeiro motor do desenvolvimento”. Sendo este princípio considerado o motor do desenvolvimento surgiram movimentos pelos direitos da pessoa, da saúde, das mulheres, entre outros.

Nesta altura as feministas ganham terreno nas suas lutas e hoje mais de 50% das mulheres casadas nos países em vias de desenvolvimento têm acesso a um método contraceptivo moderno, porém existem ainda 200 milhões de mulheres que não dispõem desses recursos (1).

Mas em 2000, muitos dos países integristas e Estados Unidos aliados à vontade do Vaticano tentaram recuar mostrando reservas no planeamento familiar pela sua ligação inerente ao acesso à IVG, começam a opor-se à noção do direito dos indivíduos e chegam mesmo alguns a contestar o uso do preservativo mesmo quando provada a sua necessidade para combater a propagação do HIV e proclamando que a única forma de combate a uma gravidez indesejada será a abstinência, quanto ao aborto causava calafrios.

Países como a Polónia, a Irlanda e o Chipre, entre outros, ainda não dispõem de IVG e portanto uma longa luta espera as mulheres destes países, luta essa que solidariamente devemos apoiar.

O nosso corpo faz parte de nós mesmas, da nossa identidade, somos nós. O direito ao nosso corpo é o direito mais elementar, o direito mais básico, mais necessário. Privar alguém do seu próprio corpo é algo absurdo e de uma violência sem limites.

Durante séculos as mulheres foram privadas do seu corpo e a relação das mulheres com o seu próprio corpo gerou conflitos internos (pessoais), sociais e políticos. Com que direito um outro poderá impor, julgar, proibir a relação que temos connosco mesmas? Com que direito alguém, um outro, desconhecido, alheio à nossa personalidade, ao nosso modo de vida, à nossa vivência, experiência e história poderá decidir o que podemos ou não fazer connosco mesmas?

A gravidez indesejada é um fantasma para todas as mulheres. A sexualidade é uma necessidade básica mas da vida sexual activa poderá surgir uma gravidez indesejada. Os meios contraceptivos não são eficazes a 100%. Existe uma percentagem de falha que mesmo mínima deve ser considerada. Se a falha ocorre poderá haver uma condenação, um aprisionamento ao próprio corpo decidida por outrém?

O aborto é um direito que nunca, em altura alguma, deveria ter sido negado às mulheres. Trinta anos de lutas, de resistência, de protesto, de reflexão permitiram em 2007 a aprovação de uma lei em Portugal sobre algo que nunca deveria ter sido negado. É uma conquista e uma libertação de uma enorme importância para as mulheres. Ter direito a escolher o que fazer no caso de surgir uma gravidez indesejada, ter o direito de escolher o que fazer com a própria vida e com o próprio corpo. Ter o direito a si. A possibilidade de usar contraceptivos e na falha destes fazer uma IVG é uma escolha aberta permitindo às mulheres a decisão de ter ou não um filho naquela altura da sua vida.

Foi uma conquista histórica mas não está encerrada a questão. Com alguma periodicidade certas facções politicas e sociais conservadoras e de direita tentam trazer uma reconsideração e a reconsideração só pode significar um retrocesso fundamental. Já após a aprovação da lei este governo lançou o mote em campanha e vai abrindo caminho. Há pouco tempo atrás veio falar da possibilidade de não comparticipação das pílulas anti-concepcionais, outro ataque à liberdade feminina porque perante a crise económica e a vulnerabilidade que essa mesma crise provoca nas mulheres em particular e nas população em geral, despender de uma renda mensal para anti-concepção que assume valores muito elevados não é tarefa fácil.

O que estas pessoas conservadoras e de direita não perceberam ainda é que a maternidade deve ser voluntária e só poderá ser voluntária. As mulheres não têm a função de ter filhos, não “foi para isso que foram feitas”, não é o “seu papel”. As mulheres deverão ter filhos, só e somente se o desejarem. Relembramos aqui aquilo que tendencialmente estes senhores e senhoras conservadores e de direita tendem a esquecer: as mulheres são humanas, iguais aos homens em direitos, têm o direito ao seu corpo, à sua escolha, à sua vida, à sua cidadania.

A maternidade exige uma disponibilidade psíquica e uma alteração biológica consideráveis, altera toda a vida das mulheres, transforma-as física e psiquicamente e é uma transformação vitalícia tanto nas rotinas, na vida, nos afectos, como também na economia. Se é voluntária será algo maravilhoso mas se é “forçada” será um pesadelo e em primeira instância esta decisão só cabe às mulheres e a mais ninguém. Forçar a maternidade é escravizar as mulheres tornando-as meramente reprodutoras, mães e guardiãs da família.

A conquista do direito das mulheres ao seu próprio corpo não está portanto terminada. No nosso país a ameaça sobre a retirada da comparticipação da pílula contraceptiva numa altura de severa crise económica vem ameaçar este direito fundamental das mulheres ao seu corpo, ao planeamento familiar e à maternidade voluntária e por este motivo enquanto esta ameaça pairar sobre as mulheres e sobre os homens teremos de estar atent@s e resistir para garantir este direito humano fundamental ao seu corpo e à sexualidade livre.

Nádia Cantanhede

(1) Françoise Laurant (2007). O Direito ao Aborto na Europa in O livro negro da condição das mulheres. Editora: Temas e Debates

 

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