Há algo de errado e perigoso no reino dos tribunais Versão para impressão
Quinta, 24 Novembro 2011

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A definição de violência doméstica como crime é muito recente na nossa legislação, tornou-se um crime autónomo na revisão do Código Penal de 2007, o que constituiu um avanço muito importante e uma conquista para os direitos das mulheres, enquanto principais vítimas. Este facto conjugado com a natureza do crime se ter tornado público no ano 2000, configuram aquilo que de mais importante se fez, em termos legislativos, no combate à violência doméstica, complementado e bem com a Lei 112/2009 – Estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas.

Sabemos da complexidade deste crime, da dificuldade de produzir prova, mas também sabemos que este é um crime que atinge a sociedade naquilo que de mais precioso tem: a liberdade e a igualdade das suas cidadãs e cidadãos.

É um dado adquirido que este crime é cometido em relações onde existe um desequilíbrio de poder o que também significa uma violação do princípio da igualdade entre mulheres e homens, consagrado na Constituição da República. No casamento, na relação conjugal existe, à luz da Lei, igualdade entre as partes.

É certo que o sistema patriarcal em que ainda vivemos dá força e estímulo aos agressores. Não podemos ser complacentes com isso e exige-se das instituições uma posição clara e inequívoca de combate a todas as formas de violência contra as mulheres.

Mas existe uma instituição que resiste a encarar este combate em todas as suas dimensões – os Tribunais. E este facto é tão grave e tão preocupante porque leva a que os agressores se sintam impunes e vejam muitas vezes as suas atitudes “compreendidas”, para não dizer mesmo “premiadas”, o que atrasa a mudança necessária e não contribui para que avanços que se conseguiram noutras áreas se consolidem e tenham os devidos frutos.

A diferença entre as queixas apresentadas e os processos findos é absurda. E aprofunda-se ainda mais no que diz respeito às condenações e ao cumprimento de penas efectivas.

Estamos perante um problema de impunidade. O 2.º crime contra as pessoas mais registado pelas forças de segurança, não tem consequências, não é punido. Isto é quase o mesmo que dizer que pode continuar a ser praticado.

Um caso que dá que pensar é a decisão do Tribunal da Relação de Évora, num caso de recurso de uma decisão de um Tribunal de 1.ª instância em que o arguido foi condenado pelo crime de violência doméstica a uma pena de prisão de um ano e seis meses, suspensa e o acórdão do tribunal de recurso acaba a condená-lo pela prática do crime de ofensa à integridade física simples com uma pena de multa de 800,00 euros.

O acórdão (que pode ser consultado na página da dgsi, processo 331/08.1GCSTB.E1) encerra em si muitos motivos de reflexão, mas também mostra como o tribunal não está disponível para a complexidade deste tipo de crime ao mesmo tempo que traduz uma interpretação restritiva (no mínimo) da actual Lei.

Diz o artigo 152.º do Código Penal na sua definição do crime: “Quem, de modo reiterado ao não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”. O acórdão reconhece que o legislador colocou um fim a uma questão polémica que se prendia com a necessidade do crime ser reiterado, mas introduz outra “condição”: não sendo reiterado, o “acto único” para ser considerado violência doméstica tem que ter determinada “intensidade”. Diz o acórdão: “ ’Quem de modo reiterado ou não’, tendo legislador deste modo posto fim à questão colocada na doutrina e na jurisprudência sobre se o crime de violência doméstica exigia como elemento objectivo do crime a reiteração de condutas ou não.” E continua: “Assim, o crime de violência doméstica exige a prática reiterada de actos ofensivos consubstanciadores de maus tratos, ou, então, um único acto ofensivo de tal intensidade, ao nível do desvalor da acção e do resultado, que seja apto e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral de modo incompatível com a dignidade humana”.

Ou seja, ou é reiterado ao longo do tempo (anos a fio) ou é “único” e tem que ser “muito intenso”. Este conceito também está patente noutro acórdão a propósito de um médico que violou uma paciente grávida, mas o tribunal considerou que “agarrar a cabeça (ou os cabelos) de uma mulher, obrigando-a a fazer sexo oral e empurrá-la contra um sofá para realizar a cópula não constituíram actos susceptíveis de ser enquadrados como violentos”…

Este pensamento consolida o comportamento machista dos agressores, desprotege a vítima e descredibiliza as suas denúncias. Está em contramão com o combate à violência doméstica, cujo objectivo é dizer NÃO, não pode haver agressões, poucas ou muitas, espaçadas ou regulares, mais ou menos intensas.

Como já vimos o conceito de intensidade é muito variável, neste caso, segundo o mesmo acórdão, ficou provado que “o arguido desferiu, com a cadeira, uma pancada, atingindo-a no peito; em consequência sofreu contusão da parede torácica, hematoma na região frontal e na mama, escoriações nos lábios e cotovelo, lesões que demandaram 15 dias de doença, sem incapacidade para o trabalho”. A vítima, com estas lesões, marcada, mas sem incapacidade para trabalhar…

Mas há mais, embora no julgamento de 1.ª instância tenha sido dito e testemunhado que o arguido tinha cometido agressões e injúrias antes desta agressão – “desde essa data não concretamente apurada, mas aproximadamente desde o ano de 2004, o arguido em diversas ocasiões desferia murros e pontapés e apelidava-a de ‘puta’ “, o Tribunal da Relação não considerou estes factos porque estes factos não estavam “concretizados”, mas sim “descritos” o que “colide com o direito ao contraditório”.

Assim sendo o Tribunal da Relação considera que não houve crime de violência doméstica, não se “provou” os actos reiterados e o acto dado como provado não envolveu violência suficiente, por isso o arguido passou a ser apenas condenado por ofensas à integridade física simples e a uma pena de multa.

Conclusão: só quando uma mulher dá entrada num hospital, toda partida e de preferência em coma, se poderá considerar violência suficiente e mais, convém mesmo ter um diário de todas as outras agressões e testemunhas para que estas possam ser validadas.

Este acórdão é revelador de como tudo o que é feito para denunciar este crime, para apoiar as vítimas, para mudar um comportamento socialmente condenável, pode ser posto em causa quando os agressores não sofrem nenhum tipo de punição. Assim não vamos lá. É urgente mudar esta lógica. E se os Juízes não mudam, porque ainda não assumiram a dimensão deste crime e continuam a dar sinais errados à sociedade, então talvez seja tempo de tornar a Lei ainda mais clara e objectiva.

Ou será que só no caixão algumas mulheres conseguem Justiça?

Helena Pinto

 

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