Sobre o Direito das Nações à Autodeterminação |
Quarta, 30 Novembro 2011 | |||
Declarando «utopia» a independência da Polónia e repetindo isto frequentemente até à náusea, Rosa Luxemburg exclama ironicamente: porque não apresentar então a reivindicação da independência da Irlanda? Pelos vistos a «prática» Rosa Luxemburg desconhece qual foi a atitude de K. Marx para com a questão da independência da Irlanda. Vale a pena determo-nos nisto para mostrar a análise, de um ponto de vista efectivamente marxista e não oportunista, de uma reivindicação concreta de independência nacional. Marx tinha o hábito de «tocar no dente», como ele se expressava, dos socialistas seus conhecidos, verificando a sua consciência e convicção[N330]. Depois de travar conhecimento com Lopátine, Marx escreve a Engels em 5 de Julho de 1870 uma referência extremamente lisonjeira sobre o jovem socialista russo, mas acrescenta: «...Ponto fraco: Polónia. Neste ponto Lopátine fala exactamente da mesma forma que um inglês — digamos um cartista inglês da velha escola — sobre a Irlanda.» Marx interroga um socialista que pertence a uma nação opressora sobre a sua atitude para com uma nação oprimida e logo revela o defeitocomum aos socialistas das nações dominantes (inglesa e russa): a incompreensão dos seus deveres socialistas para com as nações subjugadas, o ruminar de preconceitos, tomados da burguesia de «grande potência». Deve fazer-se a ressalva, antes de passarmos às declarações positivas de Marx sobre a Irlanda, de que em relação à questão nacional em geralMarx e Engels conservaram uma atitude rigorosamente crítica, avaliando o seu significado histórico relativo. Assim, Engels escreveu a Marx em 23 de Maio de 1851 que o estudo da história o leva a conclusões pessimistas em relação à Polónia, que o significado da Polónia é temporário, só até à revolução agrária na Rússia. O papel dos polacos na história consiste em cometer «audaciosas tolices». «Não se pode supor nem por um minuto que a Polónia, mesmo só em comparação com a Rússia, represente com êxito o progresso ou tenha qualquer significado histórico.» Na Rússia há mais elementos de civilização, de instrução, de indústria, de burguesia, do que na «sonolenta Polónia senhorial». «Que significam Varsóvia e Cracóvia em comparação , com Petersburgo, Moscovo, Odessa!» Engels não crê no êxito das insurreições dos nobres polacos. Mas todos estes pensamentos, nos quais há muito de previsão genial, não impediram de modo nenhum Engels e Marx, 12 anos depois, quando a Rússia ainda dormia mas a Polónia fervia, de tomar uma atitude da mais profunda e calorosa simpatia para com o movimento polaco. Em 1864, ao redigir a mensagem da Internacional, Marx escreve a Engels (em 4 de Novembro de 1864) que é preciso lutar contra o nacionalismo de Mazzini. «Quando na mensagem se fala da política internacional, falo de países mas não de nacionalidades, e denuncio a Rússia e não Estados menos importantes», escreve Marx. Não restam dúvidas a Marx de que, em comparação com a «questão operária», a questão nacional tem um significado subordinado. Mas a sua teoria está tão longe de ignorar os movimentos nacionais como o céu da terra. Chega o ano de 1866. Marx escreve a Engels sobre a «clique proudhoniana» em Paris, a qual «declara que as nacionalidades são um absurdo e ataca Bismarck e Garibaldi. Como polémica com o chauvinismo, esta táctica é útil e explicável. Mas quando os que acreditam em Proudhon (entre eles figuram também os meus bons amigos daqui, Lafargue e Longuet) pensam que toda a Europa pode e deve permanecer quieta e tranquilamente sentada sobre o seu traseiro até que os senhores em França acabem com a miséria e a ignorância... eles são grotescos» (carta de 7 de Junho de 1866). «Ontem — escreve Marx em 20 de Junho de 1866 — houve um debate no Conselho da Internacional sobre a guerra actual... O debate concentrou-se, como era de esperar, em volta da questão das 'nacionalidades' e da nossa atitude para com ela ... Os representantes da 'jovem França' (não operários) defenderam o ponto de vista de que qualquer nacionalidade e a própria nação são preconceitos caducos. Stirnerianismo proudhonista... Todo o mundo deve esperar até que os franceses amadureçam para a realização da revolução social... Os ingleses riram muito quando eu comecei o meu discurso dizendo que o nosso amigo Lafargue e outros que aboliram as nacionalidades, se nos dirigem em francês, isto é, numa língua que é incompreensível para 9/10 da assembleia. Depois eu insinuei que Lafargue, sem que ele próprio se dê conta disso, compreende por negação das nacionalidades, parece, a sua absorção pela exemplar nação francesa.» A conclusão de todas estas observações críticas de Marx é clara: a classe operária é menos susceptível que ninguém de fazer um feitiço da questão nacional, pois o desenvolvimento do capitalismo não desperta obrigatoriamente todas as nações para a vida independente. Mas, uma vez surgidos os movimentos nacionais de massas, ignorá-los, recusar-se a apoiar o que neles existe de progressivo significa de facto ceder aos preconceitos nacionalistas, nomeadamente: reconhecer a «sua» nação como «nação exemplar» (ou, acrescentemos por nosso lado, nação que possui o privilégio exclusivo de edificar um Estado)(11*). Mas voltemos à questão da Irlanda. A posição de Marx nesta questão está expressa do modo mais claro nos seguintes trechos das suas cartas: «Procurei provocar por todos os meios uma manifestação dos operários ingleses a favor do fenianismo ... [N331] Antes, considerava impossível a separação da Irlanda da Inglaterra. Agora considero-a inevitável, mesmo que depois da separação se chegue à federação». Assim escrevia Marxnuma carta a Engels, em 2 de Novembro de 1867. Na carta de 30 de Novembro do mesmo ano, ele acrescentou: «Que devemos nós aconselhar aos operários ingleses ? Na minha opinião eles devem tornar um ponto do seu programa o Repeal (ruptura) da união» (da Irlanda com a Inglaterra, isto é, a separação da Irlanda da Inglaterra) -«em poucas palavras, a reivindicação de 1783, só que democratizada e adaptada às condições actuais. Esta é a única forma legal de libertação irlandesa e por isso a única possível para adopção no programa de um partido inglês. Posteriormente a experiência deverá mostrar se poderá existir por muito tempo uma simples união pessoal entre ambos os países... «... Os irlandeses necessitam do seguinte: «1. Autogoverno e independência em relação à Inglaterra. «2. Revolução agrária...» Atribuindo uma enorme importância à questão da Irlanda, Marx dava conferências de hora e meia sobre este tema na união operária alemã (carta de 17 de Dezembro de 1867). Engels assinala numa carta de 20 de Novembro de 1868 o «ódio aos irlandeses entre os operários ingleses», e quase um ano depois (24 de Outubro de 1869), voltando a este tema, escreve: «Da Irlanda à Rússia il n'y a qu'un pas (só vai um passo)... No exemplo da história irlandesa pode-se ver que infelicidade é para um povo ter subjugado outro povo. Todas as infâmias inglesas têm a sua origem na esfera irlandesa. Ainda tenho que estudar a época de Cromwell, mas em todo o caso para mim é indubitável que também na Inglaterra as coisas teriam tomado outro rumo se não tivesse sido necessário dominar militarmente a Irlanda e criar uma nova aristocracia.» Assinalemos de passagem a carta de Marx a Engels de 18 de Agosto de 1869: «Em Poznan os operários polacos fizeram uma greve vitoriosa graças à ajuda dos seus camaradas de Berlim. Esta luta contra o 'senhor Capital' — mesmo na sua forma inferior, a forma de greve — acabará com os preconceitos nacionais de modo mais sério do que as declamações sobre a paz na boca dos senhores burgueses.» A política sobre a questão irlandesa conduzida por Marx na Internacional pode ser vista no seguinte: Em 18 de Novembro de 1869 Marx escreve a Engels que pronunciou um discurso de uma hora e um quarto no Conselho da Internacional sobre a questão da atitude do ministério britânico em relação à amnistia irlandesa e propôs a seguinte resolução: «Delibera-se, «que na sua resposta à reivindicação irlandesa de libertar os patriotas irlandeses o senhor Gladstone ofende propositadamente a nação irlandesa; «que ele liga a amnistia política a condições igualmente humilhantes tanto para as vítimas do mau governo como para o povo por ele representado; «que Gladstone, embora atado pela sua posição oficial, saudou pública e solenemente a revolta dos escravistas americanos, e agora põe-se a pregar ao povo irlandês a doutrina da obediência passiva; «que toda a sua política em relação à amnistia irlandesa é a mais autêntica manifestação da "política de conquistas', com o desmascaramento da qual o senhor Gladstone derrubou o ministério dos seus adversários — os tories; «que o Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores expressa a sua admiração pela audácia, a firmeza e a elevação com que o povo irlandês conduz a sua campanha pela amnistia; «que esta resolução deve ser comunicada a todas secções da Associação Internacional dos Trabalhadores e a todas as organizações operárias da Europa e da América a ela ligadas.» Em 10 de Dezembro de 1869, Marx escreve que o seu relatório sobre a questão irlandesa no Conselho da Internacional será elaborado da seguinte forma: «... De modo plenamente independente de qualquer fraseologia 'internacional' e 'humanitária' sobre a 'justiça para a Irlanda' — porque isto se subentende no Conselho da Internacional — o interesse directo absoluto da classe operária inglesa exige o rompimento dos actuais laços com a Irlanda. Essa é a minha profunda convicção, e baseada em causas que em parte não posso desvendar aos próprios operários ingleses. Pensei durante muito tempo que era possível derrubar o regime irlandês com o ascenso da classe operária inglesa. Sempre defendi esta opinião em A Tribuna de Nova Iorque (jornal americano no qual Marx colaborou muito tempo)[N332]. Um estudo mais profundo da questão convenceu-me do contrário. A classe operária inglesa não poderá fazer nada enquanto não se livrar da Irlanda ... A reacção inglesa na Inglaterra tem as suas raízes na escravização da Irlanda» (sublinhado por Marx). Agora deve estar bem clara para os leitores a política de Marx na questão irlandesa. O «utópico»Marx é tão «não prático» que é pela separação da Irlanda, que, mesmo meio século depois, não foi ainda realizada. O que é que levou a esta política de Marx, e não era ela errada? Inicialmente Marx pensava que não seria o movimento nacional da nação oprimida, mas o movimento operário no seio da nação opressora, que libertaria a Irlanda. Marx não faz de modo nenhum um absoluto dos movimentos nacionais, sabendo que a total libertação de todas as nacionalidades só a poderá dar a vitória da classe operária. Calcular antecipadamente todas as correlações possíveis entre os movimentos libertadores burgueses das nações oprimidas e o movimento libertador proletário na nação opressora (é exactamente este problema que torna tão difícil a questão nacional na Rússia contemporânea) é uma coisa impossível. Mas eis que as circunstâncias fizeram com que a classe operária inglesa caísse por tempo bastante longo sob a influência dos liberais, indo na sua cauda e decapitando-se ela própria com uma política operária liberal. O movimento libertador burguês na Irlanda agudizou-se e adquiriu formas revolucionárias, Marx revê a sua opinião e corrige-a. «É uma infelicidade para um povo ter subjugado outro povo.» A classe operária na Inglaterra não se libertará enquanto a Irlanda não se libertar do jugo inglês. A reacção na Inglaterra é reforçada e alimentada pela escravização da Irlanda (tal como a escravização de uma série de nações alimenta a reacção na Rússia!). E Marx, fazendo aprovar na Internacional uma resolução de simpatia para com a «nação irlandesa», para com o «povo irlandês» (o inteligente L. Vl., possivelmente, demoliria o pobre Marx por se ter esquecido da luta de classes!), defende a separação da Irlanda da Inglaterra, «mesmo que depois da separação se chegue à federação». Quais são as premissas teóricas desta conclusão de Marx? Na Inglaterra em geral há muito que terminou a revolução burguesa. Mas na Irlanda ela não terminou, só agora, meio século depois, a estão a terminar as reformas dos liberais ingleses. Se o capitalismo tivesse sido derrubado na Inglaterra tão rapidamente como esperava Marx de início, então na Irlanda não haveria lugar para o movimento democrático-burguês de toda a nação. Mas uma vez que ele surgiu, Marx aconselha os operários ingleses a apoiá-lo, a dar-lhe um impulso revolucionário, a levá-lo até ao fim no interesse da sua própria liberdade. Os laços económicos da Irlanda com a Inglaterra nos anos 60 do século passado eram, naturalmente, ainda mais estreitos do que os laços da Rússia com a Polónia, a Ucrânia, etc. O carácter «não prático» e «irrealizável» da separação da Irlanda (quanto mais não fosse por força das condições geográficas e por força do imenso poderio colonial da Inglaterra) saltava à vista. Sendo em princípio inimigo do federalismo, Marx admite neste caso também a federação"(12*), com a condição de que a libertação da Irlanda ocorra não por via reformista mas revolucionária, por força do movimento das massas do povo na Irlanda, apoiado pela classe operária da Inglaterra. Não pode haver dúvida alguma de que só tal solução da tarefa histórica teria sido a mais favorável aos interesses do proletariado e a um rápido desenvolvimento social. Mas sucedeu de outro modo. Tanto o povo irlandês como o proletariado inglês se mostraram fracos. Só agora, através de miseráveis arranjos dos liberais ingleses com a burguesia irlandesa, a questão irlandesa se soluciona (o exemplo do Ulster mostra com quanta dificuldade) com uma reforma agrária fcom resgate) e a autonomia (por enquanto ainda não introduzida). Que quer isto dizer? Decorrerá disto que Marx e Engels eram «utópicos», que apresentavam reivindicações nacionais «irrealizáveis», que cediam à influência dos nacionalistas irlandeses, pequenos burgueses (o carácter pequeno-burguês do movimento dos «fenianos» é indubitável), etc? Não. Marx e Engels defendiam também na questão irlandesa uma política consequentemente proletária, que efectivamente educasse as massas no espírito da democracia e do socialismo. Só esta política podia evitar tanto à Irlanda como à Inglaterra a demora de meio século das necessárias transformações e a sua deformação pelos liberais para agradar à reacção. A política de Marx e Engels na questão irlandesa deu um grande exemplo, que conservou até agora um enorme significado prático, de qual deve ser a atitude do proletariado das nações opressoras para com os movimentos nacionais; fez uma advertência contra a «precipitação servil» com que os filisteus de todos os países, cores e línguas se apressam a reconhecer como «utópica» a modificação das fronteiras dos Estados, criadas pelas violências e pelos privilégios dos latifundiários e da burguesia de uma nação. Se o proletariado irlandês e o inglês não tivessem adoptado a política de Marx, não tivessem apresentado como sua a palavra de ordem de separação da Irlanda, isto teria sido o pior dos oportunismos da sua parte, um esquecimento das tarefas de um democrata e de um socialista, uma concessão à reacção e à burguesia inglesas. http://www.marxists.org/portugues/lenin/1914/auto/cap04.htm
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