Um país ocupado pela Troika e com um governo submisso e apostado no empobrecimento só pode mesmo preferir comemorar a Quarta-feira de Cinzas a assumir o Carnaval, o Dia da República e a Restauração da Independência. A recomposição do capitalismo, desde a crise iniciada em 2007, está a usar a velha receita da violência da guerra como forma de destruir as forças produtivas para que renasça das cinzas um punhado potências e uma burguesia revigorada pela acumulação. A guerra contra os povos é feita não só por meios tradicionais contra os povos dos estados que colocam obstáculos ao sistema, mas também por uma guerra aos povos das próprias potências do imperialismo global. Em Portugal, o desemprego real estima-se em 1 milhão e 200 mil pessoas. Os números oficiais, que não contabilizam tudo, reconhecem 14% de desemprego e 35,4% de desemprego jovem (e nem uma palavra para a bricadeira de carnaval do Relvas sobre fazer uma campanha contra o desemprego jovem). Acresce que só um quarto das desempregadas e dos desempregados recebem subsídio de desemprego. Acontece ainda que mesmo essa quarta parte das desempregadas e desempregados não é de modo algum respeitada pelo Governo. Exemplo disso é o atraso deste mês (coisa que não é inédita) no pagamento dos subsídios de desemprego. Sem qualquer aviso prévio, o governo decidiu que os pagamentos, que devem ser efetuados entre dia 10 e dia 14, seriam apenas feitos no dia 22 de fevereiro, quarta-feira de cinzas. Parece que o governo levou mesmo a sério a ideia de não (deixar os outros) comemorar o Carnaval. Para isso fez o que pôde: nem entrega o dinheiro que deve aos desempregados antes do fim do Entrudo, nem dá tolerâncias de ponto aos trabalhadores do Estado (e muitos patrões já sonham em apagar isso e muito mais de futuras revisões de contratação). O corte no entrudo e nos feriados é sempre por demagogia conservadora e nada é pelo produtivismo, isso é apenas aparente. Atiram esta areia para os olhos do povo como quem diz "estão a ver? é para aumentar a produtividade". Quando, na verdade, apenas o que aumenta é a exploração, com o aumento das horas e dias de trabalho. Porque produtividade nenhuma está a aumentar. Aumenta a exploração de quem trabalha e contra quem trabalha serve de ameaça a presença do crescente exército de reserva composto pelos desempregados. Todos os dias o povo trabalhador é sangrado pela recruta para as fileiras do desemprego. Nesta guerra contra os povos, em que o exército de desempregadas e desempregados é fundamental, há também ocupações e governos de ocupação. Os tecnocratas colocados no poder sem eleições em Itália e na Grécia, o poder da troika CE-BCE-FMI nos países intervencionados e a imposição de um novo tratado europeu com um garrote aos 0,5% de défice são a marcas que anunciam um regime político, social e económico que arrasa as vidas dos trabalhadores e dos povos, que não deixa pedra sobre pedra nos maiores avanços populares do século passado. E é um processo de marca altamente conservadora, escuda-se na moral da pobreza dócil perante um mundo em que o Sol não nasce para todos e muito menos para os pobres, as mulheres, as minorias étnicas, os gays, as lésbicas, bissexuais e transgénero. Amanhã é quarta-feira de cinzas, o governo vai pagar parte do que deve às desempregadas e aos desempregados. Vai pagar parte (o subsídio de desemprego) e apenas a uma parte. O que o Governo de um Estado democrático deve a estes e ao povo todo é muito mais do que isso: é o desenvolvimento e a dignidade. O respeito da dignidade do humana e o desenvolvimento estão nos antípodas da lógica do empobrecimento, das cinzas e das vidas cinzentas.
Bruno Góis
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