Pobres e Honrados: contos e fábulas de entreter Versão para impressão
Quarta, 04 Julho 2012

 

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O sacrifício e o empobrecimento é o discurso mais recorrente nos últimos tempos por parte daqueles que detêm o poder. Querendo passar a falsa ideia de que todos temos que fazer sacrifícios, o que está em curso é uma recomposição do capitalismo, com uma enorme transferência de riqueza, e com a criação de uma nova narrativa: ao mercado de oportunidades, sobrepõe-se agora a austeridade do empobrecimento.

Mesmo os países onde o crescimento económico não se encontra tão comprometido como em Portugal ou Grécia, por exemplo, as evidências apontam para o aumento do desemprego estrutural, o aumento da exclusão social e o esmagamento do valor do trabalho.

Há pouco tempo, uma notícia do US News trazia como título 'When an Unemployment Rate decline is bad News' – em tradução livre, qualquer coisa como 'Quando a redução da taxa de desemprego é uma má notícia'. Quais eram as razões para a afirmação? Afinal a taxa de desemprego nos EUA reduziu, de Março para Abril de 2012, de 8,2% para 8,1%. Más notícias? Parece que sim!

É que analisando melhor os números conclui-se, 1) que existe uma desaceleração no ritmo da criação de emprego nos últimos meses; 2) que a população activa a participar no mercado de trabalho está numa das percentagens mais baixas de sempre; 3) que se incluirmos as pessoas que desistiram de procurar emprego, a taxa de emprego nos EUA situa-se consistentemente, desde Setembro de 2011 até Abril de 2012, entre os 14% e os 16%; 4) que tendo em conta o crescimento do PIB que se tem registado nos EUA, esse crescimento não representa, como se vê, criação de emprego.

Que quererão dizer estes dados? Crescimento sem emprego? Parece que sim. É uma tendência que se tem vindo a verificar. O capitalismo,  na sua recomposição pós 2008, acentua a tendência para a criação de um desemprego estrutural de grande dimensão, assim como para a desvalorização do trabalho. Cria uma relação de forças negativa para os trabalhadores, os quais são forçados a perder mesmo quando a economia está a ganhar.

Neste sentido, vale a pena a observação feita pelo Manifesto Inaugural da Associação Internacional de Trabalhadores, escrito pelas mãos de Marx em 1864: 'É um facto notabilissimo que a miséria das massas trabalhadoras não tenha diminuído desde 1848 até 1864, e no entanto este período oferece um desenvolvimento incomparável da indústria e do comércio'.

A esquerda não se pode deixar enganar, muito menos contribuir para o engano do povo. Marx apontava, em 1844, as seguintes relações: “na situação em retrocesso da sociedade: miséria progressiva do operário; na situação em progresso: miséria complicada; na situação plena: miséria estacionária”. Nunca se enganou em relação a uma coisa: sob um regime capitalista, a miséria é a aspiração única do operário. Na organização social que se faz da posição que ocupamos em relação aos meios de produção, é claro de ver que aqueles que os detêm hão-de tentar sempre compensar e superar as crises à custa daqueles que não detêm meios de produção. Salvar a economia nacional não é caso de colaboracionismo, mas sim de agudização de luta de classes. Quando falam em salvar a economia nacional, na verdade estão a dizer que se deve salvar a propriedade de alguns à custa da vida de muitos!

A economia nacional, sem redistribuição e sem salário justo, nunca pode prometer nada que não seja mais sacrifícios, como se vê pelos números nos EUA. A economia cresce, mas o desemprego mantém-se alto, o que lança a competição entre trabalhadores e a queda de salários. Os sacrifícios foram feitos, milhões perderam o emprego, a casa, a vida; os donos de empresas acumularam, muitos accionistas estão hoje mais contentes e mais ricos, mas onde estão os trabalhadores? Muitos desistiram de procurar emprego; outros estão hoje a trabalhar com um salário mais baixo do que há poucos anos atrás. Deram os sacrificios e continuam a ser sacrificados.

Sejamos claros: os interesses dos patrões, administradores e accionistas são exatamente opostos aos interesses dos trabalhadores. Os primeiros, com apoios dos seus governos – em Portugal, PSD e CDS – tentam fazer o discurso da moralização e do ascetismo heróico contra as desventuras. O que eles querem mesmo é fazer de conta que estão interessados nos superiores interesses da nação, quando na verdade estão interessados no superior interesse do seu bolso. Dizem: é preciso salvar a economia nacional, mas o que querem mesmo é esmagar o salário dos trabalhadores para aumentar a taxa de lucro.

O governo, que não é neutro e é mandado por esses superiores interesses de aforradores de bolsos, diz-nos, paternalisticamente: é preciso empobrecer para crescer, é preciso desemprego para criar emprego. Dizemos nós: e é preciso morrer para viver?


Patrões e trabalhadores: união de salvação nacional?
Sejamos claros: os interesses deles não são os nossos interesses. Vejamos o que acontece quando, por exemplo, uma grande empresa cotada em bolsa anuncia 'restruturações' – espécie de jargão para dizer despedimentos. A excitação dos accionistas contrasta com a depressão dos que perderam o emprego e a certeza de futuro. Não serão interesses opostos?

Ou vejamos a reação dos tão presentes 'mercados' quando, por exemplo, a Syriza declarou romper com a austeridade para, em vez dela, aumentar salários e pensões ao povo grego. Os mercados, senhores exigentes que ordenam sacrifícios e ascetismo, reagiram exatamente na forma oposta àquela que era a do interesse do povo grego e dos seus trabalhadores. Não temos, por isso, os mesmos interesses! Não existe nenhuma união nacional entre trabalhadores e patrões!

Quando Passos Coelho recupera o slogan de má memória – pobres mas honrados – extravasando a ideologia do empobrecimento que a direita tem para nos oferecer, o que ele está a fazer é pedir sacrifício aos de baixo para engordar os de cima. E quando ele diz que temos que empobrecer para enriquecer, o que está  a fazer é a criar as condições para, no presente como no futuro, criar uma sociedade com desemprego estrutural enorme, com menores salários e com a desregulação total do mercado de trabalho. Mas ele não mentiu totalmente, apenas omitiu descaradamente, porque o que queria dizer era: é preciso fazer os trabalhadores empobrecer, para que os patrões e administradores possam enriquecer.


Capitalismo do empobrecimento
Até há poucos anos, o capitalismo vivia ainda do argumentário mais ou menos fantástico do neoliberalismo e das virtudes do mercado. A desregulação era cool porque combatia a burocracia e a estruturação; o mercado era a terra das oportunidades onde todos tinham lugar e, quem não tinha, era porque não merecia. Bem ao estilo da meritocracia calvinista, a responsabilidade era passada para a esfera individual, dizendo-se, em contraponto, que o mercado enquanto esfera social era inclusivo e fornecisa oportunidades. Esse capitalismo comia também do prato das teorias de capital humano, ainda da esteira na meritocracia, e prometia mobilidade ascendente a quem competisse e singrasse.

Para onde foi essa narrativa? Não podia andar mais longe... É certo, o capitalismo quer sempre acumulação. Pode fazê-lo pela concentração, aumento da exploração, privatização, etc. No entanto, a forma como se relaciona com as massas para levar a sua avante, a narrativa de persuasão e engano está estruturalmente modificada.

Agora, o mercado não é para todos, as teorias de capital humano não têm qualquer reflexo na prática, a promessa de mobilidade só se faz de forma descendente. A isto acrescentam como objectivos o empobrecimento das massas, a exclusão massiva do mercado de trabalho e a quebra de salário, seja-se qualificado ou não, competente ou não, tenha-se ou não mérito. É, por isso, uma substituição da chantagem meritocrática pelo ascetismo sacrificial da austeridade.

A narrativa do novo capitalismo na sua relação com as pessoas é feita de violência e chantagem, já não de esperança e oportunidade. A cultura do empobrecimento só é possível porque a chantagem sobre a bancarrota raptou o povo e o seu futuro. Prometem libertar-nos o futuro caso paguemos o resgate e aceitemos o empobrecimento, mas o que se está a ver é que se embarcamos no jogo, serão o presente e o futuro que se encontrarão raptados.

O caso dos EUA é paradigmático. O crescimento está a registar-se, mas não parece estar a refletir-se sobre as pessoas que sofreram o principal impacto do rebentamento da bolha. Em Portugal, os trabalhadores já perderam cerca de 12% do seu salário e estão agora confrontados com uma nova legislação laboral que lhes retira o futuro. O ataque que está a ser feito não é sobre o presente, mas sim sobre o futuro. Com este ataque, a austeridade será permanente mesmo depois de decretado o seu fim. O trabalhador na economia do empobrecimento  não aspira a nada mais que miséria, no presente e no futuro.


O trabalhador na economia justa
A salvação nacional é retórica para a salvação da burguesia; o empobrecimento é ideologia violenta para a transferência e concentração da riqueza nos de cima. Nesta chantagem violenta do novo capitalismo austeritário, o trabalhador perde salário, perde emprego, perde inclusão social, perde direitos, perde o presente e o futuro. A única forma de voltar a construir uma relação de forças que lhe devolva todos os direitos não é pagar o resgate do empobrecimento e da concentração, mas sim exigir a redistribuição e a criação de emprego. Tudo o que for contrário a isto é perder terreno.

O capitalismo, ávido, sabe disto tão bem como nós, e por isso virou mais violento e menos democrático. Quer proceder à concentração de riqueza de forma coerciva e rápida, quer criar rapidamente enormes exércitos de desempregados ao mesmo tempo que retira a estabilidade aos empregados. Porque essas são as medidas que virarão a relação de forças a seu favor.

Recusam a democracia, instauram protetorados, arrogam-se ao direito de não querer aceitar resultados eleitorais – chantagem permanente feita à Grécia – mas, ao mesmo tempo nomeiam governos que não passaram pelo escrutínio popular – Itália – ou governam supra-nacionalmente, pela instauração de protetorados abençoados pela troika.

Esse é o capitalismo de hoje: violento, anti-democrático, de empobrecimento e austero. Só pode ser derrotado pela democracia, pela exigência da redistribuição e pela violência de uma vontade popular enorme que se recusa a ser um povo raptado. Esse capitalismo só pode ser ultrapassado se a esquerda perceber que não existem salvações nacionais, nem uniões de classe. O PS que não percebe – ou não quer perceber tal evidência – é hoje apenas uma peça de decoração para assinalar a inutilidade a que chegou. Austeridade soft só se diferencia da austeridade hard no mesmo sentido em que uma morte lenta se diferencia de uma morte súbita. Elas levarão ao empobrecimento e à concentração de riqueza nos de cima, dificultando a relação de forças e hipotecando o futuro das pessoas. Outros que apostam na charneira entre PS e Bloco também deveriam refletir sobre que papel querem desempenhar: o do carrasco simpático ou o do efetivo libertador do povo raptado...

Moisés Ferreira

(pré-publicação da Comuna nr 28)

 

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