Guerra Colonial: Cadinho do 25 de Abril Versão para impressão
Quarta, 23 Abril 2014

Guerra-ColonialO esforço de guerra colonial, traduziu-se, só no que a Portugal diz respeito, na mobilização de 800 mil iovens, em 8 mil mortos, 112.205 feridos, 4 mil deficientes, 40% do OE era destinado à defesa. Feitas as contas equivale a nove vezes mais do que.e esforço de guerra dos americanos no Vietnam. E isto para defender os interesses económicos de uma pequena minoria. Foi umaguerra privada paga pelo nosso povo e pelos povos das colónias.

 

Artigo de Mário Tomé, Coronel na reforma e Militar de Abril

 

Amílcar Cabral disse um dia: "o fim do fascismo pode não significar o fim do colonialismo; mas o fim do colonialismo significará forçosamente o fim do fascismo". O processo que conduziu ao 25 de Abril, as manobras, em desespero de causa de Marcelo Caetano para tentar negociar a independência da Guiné, o papel de Spínola e de outros que se bateram contra o regime e defendiam propostas coloniais mesmo que mitigadas, são uma demonstração cabal da correcção desta asserção de Cabral.

Quando eclodiu a guerra colonial, ou melhor, quando o regime fascista impôs a guerra aos povos das colónias que se organizavam para acederem à independência, os territórios ultramarinos portugueses, as colónias, ainda só existiam há 76 anos (!).

As colónias nasceram efectivamente a partir da Conferêacia de Berlim (1884-85) onde as potências europeias dividiram entre si o que lhes não pertencia: os imensos territórios da África a sul do Saará com todas as potencialidades que detinham.

"A Sociedade Multirracial..."

No princípio do século XX, a presença de Portugal em África era exígua e apenas determinada pelas exigências da actividade comercial junto à costa. Estima-se em cerca de 12 mil europeus os que viviam nessa altura nos territórios de África sob administração portuguesa.

A primeira República, que entrou no brutal massacre imperialista da I Guerra Mundial para assegurar a posse das colónias, lançou as bases de uma efectiva exploração colonial.

O golpe militar do 28 de Maio de 1926, que abriu as portas ao fascismo, pôs a exploração colonial ao serviço dos latifundiários aliados com a grande burguesia industrial e financeira.

As colónias passaram a ser a base de fácil e rápida acumulação do capital.

Os naturais eram objecto da mais brutal exploração e da mais aviltante extorsão dos direitos elementares. A sociedade colonial assentava na exploração total e integral do negro, ultrapassando as próprias condições da escravatura pois nem sequer tinham que alimentar os escravos.

O "indígena" recebia para poder pagar o "imposto de cabeça" devido pelo simples facto de existir, e para deixar o resto na cantina da fazenda onde era obrigado a comprar e a trabalhar, sendo para tal deportados aos milhares. Não tinham nem liberdade de existir, nem liberdade de vender a sua força de trabalho, nem liberdade de escolher como e onde gastar a miséria que recebiam.

Aos africanos era vedada qualquer organização politica e sindical, a sua língua ou dialecto não eram tidos em conta na escola, foram expulsos das terras férteis e não usufruíam de quaisquer direitos. Viram ser destroçadas, em muitos casos, as suas estruturas sociais, económicas e culturais.

Exceptuavam-se, usufruindo de alguns direitos, cerca de 2,5% os 'assimilados'.

Uma sociedade destas era uma sociedade racista. Segundo Marcelo Caetano, "os indígenas são súbditos portugueses mas sem fazerem parte da nação...", os "cruzamentos ocasionais ou familiares são fonte de perturbações graves na vida social dos europeus e indígenas", "os pretos têm de ser dirigidos e enquadrados por europeus ... e olhados como elemento produtivo enquadrado ou a enquadrar numa economia dirigida por brancos". E isto para já não falar de Kaúlza de Arriaga que, à excepção do seu criado, considera os pretos sempre mais estúpidos do que os brancos, o que traduzido em tese, como o fez, dá que existe uma crescente incapacidade da humanidade à medida que se caminha para sul.

Este era o Portugal pluricontinental e multirracial que as tropas foram defender em 1961, 44 anos depois de a Revolução de Outubro ter proclamado o direito das nações e dos povos à autodeterminação, 16 anos depois de o fim da 2ª Guerra Mundial ter lançado o processo irreversível da descolonização a nível mundial, poucos meses depois de o golpe militar do General Botelho Moniz tentar criar as condições para uma solução negociada, a tomada do "Santa Maria" pelo capitão Henrique Galvão e, meio ano antes, o assalto ao quartel de Beja terem mostrado que as forças opositoras ao regime se organizavam e actuavam com mais audácia. Porque o mundo evolua aceleradamente sob a influência da derrota do nazismo e da vitória incontestável das ideias de liberdade e de progresso para os homens e para os povos.

A eclosão da guerra em cada uma das colónias foi precedida por massacres brutais na repressão a movimentações grevistas ou sociais. Pidjiguiti na Guiné, Baixa do Cassange e outros em Angola, Mueda e outros em Moçambique.

"PARA ANGOLA E EM FORÇA..."

Em 1961, debaixo da propaganda em torno dos massacres da UPA as tropas de Caçadores Especiais, avançaram para Angola em apoteose e com claro apoio popular. Da mesma forma foram recebidas apoteoticamente em Luanda.

Cedo porém a apoteose se transformou em resistência passiva à ida para a guerra. Passiva mas também activa, como o provou a avalanche de desertores e refractários que cedo começou. As capacidades de enquadramento por parte dos oficiais do quadro esgotaram-se por volta de 1964 e o recurso aos oficiais milicianos e sargentos milicianos passou a ser o recurso natural e sistemático para prosseguir o esforço de guerra. E decisivo para acabar com ela. "Malhas que o império tece..."

A atitude dos oficiais do quadro foi de início de entusiasmo militante, não tanto em defesa do mito colonialista de Portugal uno e indivisível do Minho a Timor, embora esse pano de fundo servisse de elemento integrador e de referência na relação dos militares com o governo fascista, mas motivados por um outro mito, o mito do serviço em nome do qual tudo é legitimável, o mito da honra militar para além das porcarias da política e das vicissitudes da história que só vale quando é feita pelos militares, numa relação místico-obscena com a "Pátria" que apenas podia ser aquela que de uma vez por todas lhes enfiaram na cabeça.

Por ironia, só quando se meteram na política em golpes, revoltas contra o regime (que muitos as fizeram) e, finalmente, com o 25 de Abril, é que os militares se identificaram com a pátria e com o povo.

"A CONQUISTA DOS CORAÇÕES..."

A guerra traduziu-se no controle do território com as tropas em quadrícula, no controle de populações para isolar a guerrilha, na intervenção em força sobre posições do inimigo com tropas apeadas, com blindados, aviação de bombardeamento (Napalm!) e de apoio às operações no solo, e com meios navais nos grandes rios, lagos ou no mar,junto à costa.

O desenvolvimento hoje reivindicado pelos saudosos do colonialismo existiu realmente: era preciso abrir estradas para os movimentos militares, era preciso abrir escolas para estrumar a portugalidade dos jovens, era preciso reduzir o descontentamento para tirar campo à ideologia libertadora, era preciso levantar o moral dos militares criando condições para as famílias ou, em alternativa, bares e cabarets para as prostitutas. Com dezenas de milhar de militares sedentos de divertimento, boa comida e boa bebida o comércio das cidades e povoações prosperava. Afinal, também a Indonésia [até ao fim da ocupação em 20 de maio de 2002] está a levar o desenvolvimento, a saúde e a educação a Timor, no intervalo dos massacres.

A evolução da situação foi impondo às Forças Armadas uma actuação cada vez mais defensiva: defesa dos aquartelamentos, defesa das colunas de transporte e reabastecimentos. A retaliação sobre as populações não controladas foi uma constante embora muitos não a fizessem. E os massacres, não são só o de Wiriamu, mas centenas (milhares?) deles, maiores ou menores, ou muito simplesmente a chacina de populações ou porque se "confundiam" com os guerrilheiros (os terroristas) ou porque estavam "junto deles" ou porque, na dificuldade de se abater elementos armados para encher os relatórios, as baixas inimigas eram contabilizadas com baixas na população que fazia as vezes e como tal era classificada.

A destruição das culturas era um dos principais meios de ataque. A deportação de populações para os famosos e bem alinhados aldeamentos era a forma de tentar retirar aos guerrilheiros o apoio da populações. Os aldeamentos, com toda a propaganda que os rodeava de criação de condições melhores para as populações, foram talvez uma das formas mais brutais e cruéis que se abateram sobre os povos das colónias.

Muitos militares não se apercebiam do que tal significava e até tinham, desde o soldado ao comandante um orgulho genuíno, quase ingénuo, na qualidade das habitações, no alinhamento dos arruamentos, no controle eficaz dos aldeados, aliás "cidadãos portugueses"! Mas revelavam por isso mesmo uma atitude intrinsecamente racista. Basta pensar nos agricultores da várzea de Loures a serem forçados a deslocar-se dos seus campos, casas e aldeias para pré-fabricados a vários quilómetros de distância, muitas dezenas por vezes, e ai terem de refazer as suas vidas, sob controle. Algum dos militares sentiria o mesmo à vontade em falar da sua responsabilidade nessa hipotética deportação?

A PIDE, por seu lado, actuava em articulação e complemento com as Forças Armadas.

Muitas vezes eram responsáveis directos pelo êxito de operações militares, com a sua prática nas redes de informadores, e de tortura e assassínio que nas colónias - tratava-se de pretos - assumia requintes e brutalidade sem paralelo. As Forças Armadas eram coniventes porque sabiam o que se passava, porque beneficiavam disso, porque forneciam o material humano, capturado em operações, para a PIDE investigar e fornecer depois informações cabais para novas operações. Mas tinham a justificação da guerra, guerra sem lei nem quartel, guerra bruta, feita com o coração transbordante do amor pelas populações!...

MFA VERSUS FA'S

Os militares, tão depressa se esvaiam em lágrimas a tentar salvar um guerrilheiro ferido que depois sabiam ir ser torturado até à morte pelos verdugos da PIDE, ou o torturavam eles mesmos ou deixavam que fossem os Manueis e Zés soldados a fazê-lo, para obterem a indicação da localização de uma base ou depósito de armamento, como arriscavam a vida para não molestarem populares desarmados. De tudo nos deu esta guerra.

Com o desenrolar da guerra; com a repetição das comissões dos oficiais e sargentos do quadro; com o desgaste moral que sofriam; com a pressão e o trabalho de sapa político e ideológico dos milicianos e a resistência dos soldados que, no entanto, eram capazes de actos de combate cheios de coragem física e moral; com o aumento do número de mortos e de feridos graves, dos deficientes físicos e mentais, com a resistência sistemática e cada ano mais determinada da base social de recrutamento - o povo português; com a guerrilha a impor-se passo a passo, nesta amálgama plena de contradições violentas, foi-se cozendo a derrota do regime (totalmente isolado face à comunidade internacional e ao próprio Vaticano) e a derrota do aparelho militar que não podia ganhar onde foram derrotados franceses e americanos.

Derrota por dentro e por fora em fatal conjunção. O único bastião que podia manter o regime, as Forças Armadas, entravam em acelerada desagregação e Caetano e Tomaz apenas podiam contar com a brigado do reumático. Eram poucos mas deviam ser bons porque os únicos que estavam a ganhar a guerra!...

A acumulação das condições de derrota política e militar levou ao surgimento, doze anos depois do início da guerra, do Movimento dos Capitães. Ele foi o instrumento, produzido pela luta do povo português, na acção imediata para se libertar do jugo do fascismo e do jugo do colonialismo (povo que oprime outros povos também não é livre) - o 25 de Abril.

Ele foi também um filho da luta dos povos das colónias pela liberdade. A liberdade não tem fronteiras e ela une o que a opressão separou!...

Assim se resolveu a equação proposta por Amílcar Cabral. Foi o fim do fascismo e o fim do colonialismo.

DESCOLONIZAÇÃO OU CONQUISTA DA INDEPENDÊNCIA?

O exército colonial estava derrotado e acabado.

O Movimento dos Capitães, de braço dado com os vencedores, também ele vencedor, foi obrigado, ainda que com bastantes resistências, pela pressão das tropas no terreno e do povo português, a apressar os passos para a transferência de poderes.

A hierarquia militar derrotada e os saudosos do colonialismo, não tinham força militar nem quaisquer condições para imporem condições.

Mas tentaram, absurdamente, fazê-lo. O clima criado era de alegria, euforia, confraternização entre as tropas que antes se combatiam e uma grande esperança no futuro dos países emergentes. A boa fé e a boa vontade eram mútuos, pois fora por isso que povo português e povo das colónias, movimentos de libertação e movimentos dos capitães, tinham lutado.

As acções violentas e brutais manipuladas pelo imperialismo americano, soviético e pela África do Sul, levadas a cabo por movimentos fantoches ou por grupos de colonos irredutíveis, libertaram ódios e rancores e impediram a paz.

Mas a história é implacável e a independência, a democracia e a paz ficaram, então, nas únicas mãos a que pertenciam: as dos povos. Se hoje assim não é totalmente, há que lutar, lutar sempre, continuar a lutar contra os mesmos inimigos: o imperialismo, o colonialismo, a opressão individual e nacional.

Mário Tomé, Coronel na reforma e Militar de Abril

publicado originalmente no número comemorativo "Abril 20 anos" da revista

Pespectiva. 5 (abril 1994) 4-7.

 

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