Sujeito político feminista - o desafio do presente |
Nas últimas décadas ocorreram grandes transformações no que diz respeito ao estatuto e ao papel das mulheres. No nosso país o marco histórico para o início destas transformações é o 25 de Abril de 1974. As mulheres viviam uma situação de grande subalternidade, com discriminações consagradas na Lei, afastadas do ensino e da vida pública, marcadas por estigmas muito interiorizados na sociedade portuguesa de então. Estas transformações, que se desenvolveram ao longo de anos, não se limitaram à consagração de direitos, foram também transformações que atingiram as próprias organizações, partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais e as próprias organizações de mulheres. O reflexo das concepções retrógradas e conservadoras sobre o papel das mulheres atingia mesmo as organizações de trabalhadores e os partidos políticos que impulsionavam as transformações políticas e sociais. Só assim se compreende o afastamento das mulheres dos processos de decisão e a dificuldade em proceder a alterações de fundo, como é o caso paradigmático da despenalização do aborto, só conquistada 33 anos após o 25 de Abril, em 2007, e após debates que atravessaram o país e a realização de dois Referendos nacionais. Do ponto de vista cronológico, a despenalização do aborto vem depois da violência doméstica contra as mulheres ser considerada um crime público e da aprovação da Lei da Paridade para os órgãos de representação política. Penso, convictamente, que este aspecto dá bem a dimensão da gigantesca luta que foi e ainda é necessário travar para que a igualdade entre mulheres e homens seja assumida como um factor básico e elementar do progresso social, mas também do avanço político da esquerda e das organizações sociais e políticas. Hoje, neste século, e perante os desafios globais, a igualdade não pode ser um conjunto de referências, tem que ser uma praxis política. Até porque, nos últimos anos temos vivido várias situações em que é bem evidente a fragilidade da igualdade formal expressa na Lei e como é ainda necessário aprofundar o debate sobre as suas consequência nas diferentes áreas da política. O recente debate sobre as alterações ao regime jurídico do divórcio evidenciou as diferenças de pensamento sobre a forma como a Lei deve encarar os limites da sua intervenção nas relações entre as pessoas, trazendo à luz dia divergências entre as próprias organizações que reclamam a defesa dos direitos das mulheres Cruzaram-se visões e concepções completamente opostas sobre o divórcio, mas também, ou sobretudo, sobre o casamento e o papel da família. É difícil aceitar um estatuto de igualdade e não de subalternidade para a mulher. Passar do conjunto de referências, politicamente correcto, para a praxis política é, de facto, o desafio da actualidade. Do meu ponto de vista chegámos a um ponto em que a igualdade enquanto referência não basta - precisamos que a agenda política não a ignore. Daí a necessária emergência de uma força na sociedade, que se assuma como sujeito político interveniente, feminista, para impulsionar as mudanças. Esta questão é transversal aos partidos, está para além dos partidos, mas não deve negar que pretende influenciá-los, pretende aliás confrontá-los com a agenda feminista. Este sujeito político não tem vocação partidária, mas obviamente tem vocação política. E isto porque não basta enumerar reivindicações. É preciso ir mais longe, passar para o campo da cidadania, do seu exercício pleno e em igualdade. E isso faz-se, permanentemente, com pressão e acção diária - influenciando partidos, instituições, associações, agentes culturais e os média. Os feminismos ultrapassaram o ridículo a que foram votados durante um determinado período, um período longo demais, sem dúvida, e hoje podem confrontar as instituições e os partidos políticos, pondo-os em causa enquanto detentores exclusivos da representação das mulheres. Podemos acreditar no evolucionismo, mais tarde ou mais cedo as coisas mudarão. Podemos acreditar no individualismo - cada uma por si, com esforço, mostrará o seu valor. Ou podemos optar pela recusa da entrega da agenda da igualdade aos espaços tradicionais de representação. Esta será uma resposta colectiva, mas plural, que levará, certamente, a percorrer caminho no sentido de provocar roturas políticas - nos direitos, pela democracia paritária, pela visibilidade da contribuição das mulheres. A evolução pura e simples, cultural e social, já ficou demonstrado não se realiza em linha recta e em sentido ascendente. Neste caminho, há várias convergências e cruzamentos. Aceitar a existência de um sujeito político feminista, é reconhecer que existe uma contradição na sociedade, neste caso de género, entre mulheres e homens e que é tão importante como outras contradições e que não deve ser subalternizada em favor de outras consideradas mais importantes ou determinantes. Aliás, ela está presente em todos os conflitos sociais e a sua resolução ajuda ao desenvolvimento desses conflitos a favor dos trabalhadores. Ela está presente, com particular evidência nos conflitos entre o trabalho e o capital. O facto de não ser exclusivamente uma contradição entre classes não a diminui, projecta a sua importância, porque liberta e consciencializa as mulheres para a sua participação plena. Não se pode aceitar limitar a participação das mulheres, deixando para mais tarde a resolução das discriminações que as afectam particularmente, em nome do combate às discriminações que afectam todos num determinado momento. Esta é a nova visão marxista, ampla e não sujeita a filosofias fundamentalistas que transformaram durante décadas a contradição principal na contradição única. É por isso natural, e desejável, que se organizem movimentos, plataformas cujo objectivo são os direitos das mulheres. Não é facilmente apreensível que exista um ou o Partido feminista, mas é facilmente apreensível que exista um movimento feminista, plural com certeza, que possa contrastar com a ordem política dominante. Durante muitos anos na democracia portuguesa, alguns partidos, nem todos, tenderam a incluir nos seus programas reivindicações das mulheres, como incluem as dos jovens ou de outros sectores. Tal só aconteceu, dessa forma, devido ao défice do movimento feminista autónomo. Tomemos como exemplo, o que se passa na actualidade, com a questão ambiental. Ninguém, hoje, se atreve a colocar o ambiente como um sector, é uma questão estrutural. Se é cumprido ou não é outro debate. Mas hoje é prática corrente nas análises políticas. O fortalecimento do movimento feminista vai obrigar, pelo menos alguns partidos, a considerar os direitos das mulheres como um factor estruturante. E ainda estamos longe disso. A discriminação é uma realidade: - no rendimento / salário - na carga horária - directa e indirecta - nos grupos considerados mais vulneráveis, atingidos pela pobreza e pelo desemprego - onde abundam as mulheres. - nas situações de violência que, pesem embora os avanços verificados no conhecimento e condenação públicos e nos serviços de apoio, tem registado sinais de grande preocupação, sobretudo no que diz respeito ao aumento do homicídio conjugal - na participação das mulheres nos escalões de topo de instituições e empresas, passando pelos órgãos de representação e decisão política. Analisemos, então, mais em concreto, a questão da representação política. As mais recentes alterações suscitaram sempre polémicos e acessos debates com os sectores mais conservadores da sociedade, incluindo aqui a Igreja Católica. Exemplo disso é a constituição do Governo e mesmo a recente eleição de uma mulher para líder de um partido, que entusiasmou algumas mulheres e alguns sectores da sociedade. Pessoas com inspiração marxista e ideal socialista não podem contentar-se com a paridade política. A junção entre a alternativa socialista e a política feminista aponta para a paridade social. A igualdade de género é um combate neste regime sócio-económico mas também é objectivo de outros regimes mais avançados de justiça social. Helena Pinto |
A Comuna 33 e 34
A Comuna 34 (II semestre 2015) "Luta social e crise política no Brasil" | Editorial | ISSUU | PDF
A Comuna 33 (I semestre 2015) "Feminismo em Ação" | ISSUU | PDF | Revistas anteriores
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