Reston, na Virgínia, está a quilômetros do Golfo do México e
de suas costas cheias de óleo. No entanto, foi lá que tudo começou.
Lá estão os escritórios da International Registries, empresa que
sugere aos seus clientes que contornem a regulamentação marítima e
instalem suas plataformas num país com leis mais amenas.
Na sede
da companhia de exploração de petróleo Transocean, no cantão de
Zoug, na Suíça, a explosão da plataforma Deepwater Horizon foi
celebrada em um hotel de luxo. No dia 14 de maio de 2010, três
semanas após o desastre, o proprietário da plataforma – avaliada
em US$ 650 milhões antes do acidente – esperava um primeiro
depósito de sua seguradora, no valor de US$ 401 milhões, pela perda
ocasionada. Logo depois, em uma reunião a portas fechadas, o diretor
da empresa, Steven Newman, decidiu conceder a seus acionistas US$ 1
bilhão em dividendos – bastante otimista e sensato, diga-se de
passagem.
As plataformas petrolíferas, segundo o Direito marítimo
internacional, são consideradas embarcações, de modo que os
advogados da Transocean podem reivindicar a redução da
responsabilidade financeira da empresa no acidente até ao valor da
plataforma pós-desastre: meros US$ 27 milhões. Essa operação
jurídica é fundamentada por uma lei do século XIX, o Decreto de
Limitação de Responsabilidade (Limitation of Liability Act),
publicado em 1851; o mesmo que, em 1912, permitiu aos proprietários
do Titanic pagar apenas US$ 95 mil às vítimas do naufrágio –
correspondentes ao valor dos equipamentos de segurança e dos botes
salva-vidas.
Enquanto autoridades e empresários buscam soluções
para deter o vazamento e limpar a costa do estado da Luisiana, as
famílias dos 11 operários mortos em 20 de abril e milhares de
vítimas da maré negra – como trabalhadores do litoral e
representantes de movimentos sociais de proteção ao meio ambiente –
já entraram no braço de ferro jurídico. A Transocean, contudo,
espera se desresponsabilizar com a brecha fornecida pela norma
internacional e passar a responsabilidade para a frente. Nesse
empurra-empurra, a British Petroleum (BP), operadora da plataforma,
tem sido o foco das críticas. Outras grandes petrolíferas retiraram
a solidariedade em relação à multinacional britânica, com a
justificativa de que o acidente poderia ter sido “evitado” e que,
da parte delas, “não teriam perfurado esse poço”1.
Já a
Casa Branca prepara um acordo segundo o qual os dividendos da BP
deveriam ser suspensos durante este ano e depositados na conta
corrente de um terceiro, enquanto a avaliação financeira dos
estragos estiver em curso. A moratória de seis meses para as
plataformas flutuantes, decretada pelo presidente norte-americano,
Barack Obama, inquieta os petroleiros, que esperam retornar ao regime
habitual o mais rápido possível – embora esse mesmo regime tenha
forjado as bases da catástrofe.
Reston, no estado da Virgínia,
periferia de Washington DC, está a milhares de quilômetros do Golfo
do México, de suas costas cheias de óleo e do desastre ecológico.
No entanto, foi lá que tudo começou, onde estão os escritórios da
corporação International Registries (IRI).
São escritórios
pequenos, já que a atividade da IRI não requer mão de obra
abundante. A empresa propõe a seus clientes contornar a
regulamentação marítima e instalar suas plataformas em um país
com leis mais amenas: a República das Ilhas Marshall, um arquipélago
de 62 mil habitantes situado no meio do Oceano Pacífico. Na sua área
de atuação, a IRI se autodenomina a empresa “mais experiente”
do mundo; ocupa-se da exploração e transporte do petróleo. Entre
seus clientes, está a Transocean, e claro, a BP.
Paraíso
fiscal
Em 2009, o número de registros marítimos das
Ilhas Marshall foi o maior do mundo, com 221 plataformas de petróleo
– quatro vezes mais que os registros concedidos nos Estados Unidos,
país com as maiores empresas petroleiras. Assim como o Panamá e a
Libéria, as Ilhas Marshall propõem uma “jurisdição do sigilo”.
Reduto de condescendência, as Ilhas servem também de paraíso
fiscal e centro financeiro não continental. Nem sequer é necessário
estar de corpo presente para adquirir uma “porção de
permissividade” no arquipélago para criar “uma firma, uma
sociedade limitada, uma empresa de responsabilidade limitada ou uma
entidade marítima estrangeira”. Alguma troca de correspondência,
fax ou e-mail é suficiente, como pudemos verificar.
Alegando
atuar em nome de um cliente que desejava “escapar dos entraves
regulamentários de seu país de origem”, entramos em contato com
os serviços da IRI alguns dias após a explosão da Deepwater
Horizon. Uma primeira mensagem eletrônica nos informou que a criação
de uma empresa registrada nas Ilhas não tardaria mais que um dia,
por um custo total de US$ 650 mil. “Mais US$ 450 de renovação
anual”, precisou ainda o interlocutor.
Informaram-nos que o
status de nossa empresa não seria publicado, a menos que “o
cliente demandasse expressamente”, de forma que poderíamos
desfrutar o máximo da jurisdição local: ausência completa de
impostos e níveis de confidencialidade comercial inigualáveis.
Nosso
cliente deseja instalar uma plataforma de petróleo nas Ilhas
Marshall, do tamanho da plataforma da BP, por exemplo. Na mensagem de
resposta, a IRI nos propõe um “parcelamento” em cotas de US$ 15
mil, aos quais convém adicionar um pequeno montante – 15 centavos
por barril2 – de honorários anuais. Com bastante traquejo
comercial, ele ainda nos oferece voluntariamente “uma redução de
50%” para “registrar uma frota de 10 (ou mais) plataformas com
menos de 15 anos”. A oferta é sedutora: permite escapar do
pagamento de taxas e royalties, direitos trabalhistas3 e de qualquer
regulamentação ambiental.
A Transocean, maior empresa do mundo
na terceirização de exploração de petróleo, aproveitou bem a
mesma oferta: 29 das 83 plataformas indicadas no site da firma estão
instaladas nas Ilhas Marshall, enquanto o restante está quase todo
nos mares da Libéria e do Panamá.
Nosso personagem negociante se
inquieta, e pergunta: “Que aconteceria, por exemplo, em caso de
acidente, se as autoridades questionassem a identidade dos donos da
empresa?”. Logo em seguida, nosso interlocutor nos acalma: “Se as
autoridades vierem fiscalizar os registros, ou nossa jurisdição,
para solicitar a divulgação de informações complementares sobre
os acionistas, diretores da empresa etc., notem que não temos essas
informações, já que toda organização do negócio e sua condução
são efetuadas diretamente por seus advogados e diretores. A menos
que os nomes de diretores e acionistas estejam registrados nas Ilhas
Marshall – o que não é obrigatório4 –, não somos obrigados a
revelar essas informações”. E assim nos sentimos
seguros...
Empresas como a IRI são herdeiras diretas da política
internacional dos Estados Unidos, cuja tradição remonta ao cenário
pós-Segunda Guerra Mundial. Naquele momento, percebeu-se que, com a
demanda que ultrapassava a oferta, o ouro negro se tornaria a riqueza
natural mais cobiçada do mundo. Com o apoio da Standard Oil5 e de um
antigo secretário de Estado do presidente Roosevelt, Edward R.
Stettinius, a Libéria criou em 1948 o primeiro “registro marítimo
aberto”, gerenciado desde Nova York pela empresa Stettinius
Associates–Liberia Inc. De acordo com a historiadora Rodney
Carlisle, naquele momento o código marítimo da Libéria foi “lido,
referendado e aprovado pela Standard Oil”6.
De olho
na Libéria
Até o início dos anos 1990, era a IRI –
sucessora de Stettinius Inc. depois de uma história de fusões e
compras de Bancos e empresas – que fazia da Libéria um porto
pacífico para as petroleiras. No entanto, durante a guerra civil que
dilacerava o país, o presidente Charles Taylor se mostrou muito
voraz em relação à empresa, o que desencadeou a ruptura de uma
relação que, no auge da guerra, resultava em 70% da receita de seu
governo. A IRI se voltou então às Ilhas Marshall – antiga colônia
japonesa que ficou sob tutela americana de 1947 a 19867 –, onde
desenvolveria um novo programa de registros permissivos. A IRI
transfere para as Ilhas o conjunto de seus clientes e, em quinze
anos, impeliu a República ao topo do ranking dos refúgios fiscais e
regulamentários do mundo.
Atualmente, uma porcentagem
significativa das plataformas de petróleo do planeta continua
registrada na Libéria. Essa área não é mais gerenciada pela
Stettinius, e sim pelo Serviço de Registro Internacional Liberiano
de Embarcações e Empresas (LISCR), cujos escritórios estão
localizados na periferia de Washington, em Vienna, cidade situada a
apenas 13 km de Reston. “Mais de 3,1 mil plataformas de mais de 96
milhões de barris brutos, ou seja, 10% de toda a frota mundial”
estão registrados na Libéria, festeja a empresa em seu site na
internet.8
“Muitas pessoas podem ficar surpresas com o fato de
os registros marítimos da Libéria e das Ilhas Marshall estarem a
alguns quilômetros de Washington”, observa John Christensen,
antigo alto funcionário da Ilha de Jersey (paraíso fiscal
britânico) que, desde então, fundou a associação internacional
Tax Justice Network (TJN). Contudo, ele não vê nenhum paradoxo: “Na
realidade, esses dois espaços ultramarinos foram criados em função
de interesses americanos para contornar as regulamentações que
protegem os cidadãos dos Estados Unidos, entre outros aspectos, dos
custos que nesse preciso momento estão sendo produzidos no Golfo do
México”.
Voltemos à nossa negociação com a IRI. O
representante da empresa, de repente, introduz um elemento que parece
ser uma atenuante ao seu discurso entusiasta: “Para uma plataforma
móvel de exploração de petróleo operar nas águas de outro país,
o proprietário deve aderir ao conjunto de solicitações formuladas
por esse país antes de obter a autorização de funcionamento”.
Mas o registro das plataformas nas Ilhas Marshall não faria com que
os operadores ficassem fora do alcance da legislação americana?
Esse detalhe não parece produzir em nosso interlocutor a inquietação
que imaginávamos, quando mencionou o que parecia uma
condição.
Durante a investigação pública sobre a explosão da
Deepwater Horizon, os americanos ficaram chocados ao se inteirar de
que “não existe nenhum tipo de vigilância” às plataformas de
petróleo. E isso não era o pior: também descobriram, a partir das
audiências realizadas pelo serviço de gestão mineral (Mineral
Management Service, MMS)9, que os operadores e proprietários “se
autocertificam e estabelecem eles mesmos os critérios que lhes
parecem adequados10”. O capitão da marinha costeira, Hung Nguyen,
tentou resumir da seguinte forma: as regras são “concebidas
segundo os critérios da indústria, fabricadas pela indústria,
aplicadas pela mesma indústria sem supervisão do governo durante a
construção ou manutenção. Não é assim?”. O diretor regional
do MMS, Mike Saucier, não tinha outra escolha a não ser
concordar.
Alguns anos antes, outra investigação concluiu que o
MMS havia isentado a BP de respeitar as regulamentações petroleiras
de segurança. Na ocasião, Earl Devaney, ex-inspetor geral do
Ministério do Interior, havia qualificado o serviço de gestão
mineral de “eticamente irresponsável”. Esse órgão não teria,
talvez, aceitado regularmente “presentes” provenientes de
empresas do setor de energia?11
Se, hipoteticamente, a
regulamentação da indústria no que se refere à segurança fosse
aplicada, isso acarretaria algum verdadeiro problema às grandes
empresas? Não necessariamente: a definição dos critérios de
vigilância, sobretudo os que regem os sistemas antiexplosão –
instrumentos-chave nesse âmbito –, são confiados às próprias
empresas ou a organismos profissionais, como o Instituto Americano do
Petróleo (AIP), que representa 400 empresas do setor petroleiro e de
gás.
Primeiro beneficiário dos fundos da BP destinados aos
candidatos presidenciais, Barack Obama herdou um sistema colocado em
andamento sob a administração de seu predecessor, George W. Bush –
que estava, por sua vez, sob a pressão do (muito discreto) grupo de
trabalho para o desenvolvimento de uma política nacional de energia,
encabeçado pelo vice-presidente Richard Cheney (ver box sobre
Halliburton).
Formado após uma semana da posse de Bush, em
janeiro de 2001, esse grupo de trabalho forjou, em oito semanas, o
decreto executivo n° 13211, sobre energia. Os trabalhos foram tão
rápidos, a ponto do Conselho Nacional pela Defesa dos Recursos
Naturais (NRDC) identificar que o texto retomava a “estrutura” e
as “conclusões” de um documento da API. Uma das seções mais
importantes era, inclusive, “quase idêntica” ao material
identificado como base.12 Além disso, as sessões de trabalho se
resumiram a encontros reservados com grandes patrões do setor
petroleiro, dentre os quais estava John Browne13, da BP.
Lei
do silêncio
Ao obter uma cópia das 13,5 mil páginas
dos documentos preparados pelo GT, o NRDC concluiu que “as grandes
empresas de energia comandavam o grupo de trabalho da Casa Branca,
enquanto os oficiais decidiam sobre um plano de bilhões de dólares
de subvenções às empresas e eliminavam das regulamentações
medidas preventivas cruciais em termos de saúde e do meio
ambiente”.
Com esse cenário favorável dos últimos anos, a BP,
encabeçando 294 filiais registradas em países que garantem
“sigilo”, decidiu aumentar sua produção – reduzindo sua
exposição aos riscos – por meio da prestação de serviços a
empresas petroleiras. Foi nesse contexto que a Transocean alugou sua
plataforma Deepwater Horizon à BP pelo valor de US$ 1 milhão por
dia, até 2013. A partir de operações como essa – e sob a direção
de Tony Hayward, ex-diretor do departamento de exploração e
produção –, a BP estendeu suas atividades nos campos marítimos
de petróleo de modo voluntarista.
No último 20 de abril, os
trabalhos de instalação da plataforma Deepwater Horizon estavam
quase concluídos, à exceção de um poço que ainda necessitava ser
perfurado. Diante do custo diário da plataforma, os gerentes da BP
decidiram ignorar os procedimentos de segurança da Transocean.
Embora estivessem conscientes dos problemas que o sistema
antiexplosão apresentava, perseguiram um único objetivo: perfurar a
qualquer custo – “drill, baby, drill”, se retomarmos o slogan
da campanha da infeliz Sarah Palin, ex-candidata republicana à
vice-presidência dos Estados Unidos.
O ecossistema de Nova
Orleans pode levar centenas de anos para se restabelecer. O diretor
de comunicação da Transocean, alegando um problema de “emergência
dentária”, não respondeu às nossas questões. Quanto ao diretor
da BP, Tony Hayward, não será sem certa dificuldade que tentará se
esquivar de suas declarações no dia 18 de maio: “O impacto
ambiental desse desastre será, provavelmente, bastante
modesto”.
*Khadija Sherife é jornalista, coautora de "Aid to Africa Redeemer or coloniser?", Editora Pambazuka, Cidade do
Cabo, 2009.
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