A impunidade das petroleiras Versão para impressão
Sexta, 06 Agosto 2010
Reston, na Virgínia, está a quilômetros do Golfo do México e de suas costas cheias de óleo. No entanto, foi lá que tudo começou. Lá estão os escritórios da International Registries, empresa que sugere aos seus clientes que contornem a regulamentação marítima e instalem suas plataformas num país com leis mais amenas.

Na sede da companhia de exploração de petróleo Transocean, no cantão de Zoug, na Suíça, a explosão da plataforma Deepwater Horizon foi celebrada em um hotel de luxo. No dia 14 de maio de 2010, três semanas após o desastre, o proprietário da plataforma – avaliada em US$ 650 milhões antes do acidente – esperava um primeiro depósito de sua seguradora, no valor de US$ 401 milhões, pela perda ocasionada. Logo depois, em uma reunião a portas fechadas, o diretor da empresa, Steven Newman, decidiu conceder a seus acionistas US$ 1 bilhão em dividendos – bastante otimista e sensato, diga-se de passagem.
As plataformas petrolíferas, segundo o Direito marítimo internacional, são consideradas embarcações, de modo que os advogados da Transocean podem reivindicar a redução da responsabilidade financeira da empresa no acidente até ao valor da plataforma pós-desastre: meros US$ 27 milhões. Essa operação jurídica é fundamentada por uma lei do século XIX, o Decreto de Limitação de Responsabilidade (Limitation of Liability Act), publicado em 1851; o mesmo que, em 1912, permitiu aos proprietários do Titanic pagar apenas US$ 95 mil às vítimas do naufrágio – correspondentes ao valor dos equipamentos de segurança e dos botes salva-vidas.
Enquanto autoridades e empresários buscam soluções para deter o vazamento e limpar a costa do estado da Luisiana, as famílias dos 11 operários mortos em 20 de abril e milhares de vítimas da maré negra – como trabalhadores do litoral e representantes de movimentos sociais de proteção ao meio ambiente – já entraram no braço de ferro jurídico. A Transocean, contudo, espera se desresponsabilizar com a brecha fornecida pela norma internacional e passar a responsabilidade para a frente. Nesse empurra-empurra, a British Petroleum (BP), operadora da plataforma, tem sido o foco das críticas. Outras grandes petrolíferas retiraram a solidariedade em relação à multinacional britânica, com a justificativa de que o acidente poderia ter sido “evitado” e que, da parte delas, “não teriam perfurado esse poço”1.
Já a Casa Branca prepara um acordo segundo o qual os dividendos da BP deveriam ser suspensos durante este ano e depositados na conta corrente de um terceiro, enquanto a avaliação financeira dos estragos estiver em curso. A moratória de seis meses para as plataformas flutuantes, decretada pelo presidente norte-americano, Barack Obama, inquieta os petroleiros, que esperam retornar ao regime habitual o mais rápido possível – embora esse mesmo regime tenha forjado as bases da catástrofe.
Reston, no estado da Virgínia, periferia de Washington DC, está a milhares de quilômetros do Golfo do México, de suas costas cheias de óleo e do desastre ecológico. No entanto, foi lá que tudo começou, onde estão os escritórios da corporação International Registries (IRI).
São escritórios pequenos, já que a atividade da IRI não requer mão de obra abundante. A empresa propõe a seus clientes contornar a regulamentação marítima e instalar suas plataformas em um país com leis mais amenas: a República das Ilhas Marshall, um arquipélago de 62 mil habitantes situado no meio do Oceano Pacífico. Na sua área de atuação, a IRI se autodenomina a empresa “mais experiente” do mundo; ocupa-se da exploração e transporte do petróleo. Entre seus clientes, está a Transocean, e claro, a BP.

Paraíso fiscal
Em 2009, o número de registros marítimos das Ilhas Marshall foi o maior do mundo, com 221 plataformas de petróleo – quatro vezes mais que os registros concedidos nos Estados Unidos, país com as maiores empresas petroleiras. Assim como o Panamá e a Libéria, as Ilhas Marshall propõem uma “jurisdição do sigilo”. Reduto de condescendência, as Ilhas servem também de paraíso fiscal e centro financeiro não continental. Nem sequer é necessário estar de corpo presente para adquirir uma “porção de permissividade” no arquipélago para criar “uma firma, uma sociedade limitada, uma empresa de responsabilidade limitada ou uma entidade marítima estrangeira”. Alguma troca de correspondência, fax ou e-mail é suficiente, como pudemos verificar.
Alegando atuar em nome de um cliente que desejava “escapar dos entraves regulamentários de seu país de origem”, entramos em contato com os serviços da IRI alguns dias após a explosão da Deepwater Horizon. Uma primeira mensagem eletrônica nos informou que a criação de uma empresa registrada nas Ilhas não tardaria mais que um dia, por um custo total de US$ 650 mil. “Mais US$ 450 de renovação anual”, precisou ainda o interlocutor.
Informaram-nos que o status de nossa empresa não seria publicado, a menos que “o cliente demandasse expressamente”, de forma que poderíamos desfrutar o máximo da jurisdição local: ausência completa de impostos e níveis de confidencialidade comercial inigualáveis.
Nosso cliente deseja instalar uma plataforma de petróleo nas Ilhas Marshall, do tamanho da plataforma da BP, por exemplo. Na mensagem de resposta, a IRI nos propõe um “parcelamento” em cotas de US$ 15 mil, aos quais convém adicionar um pequeno montante – 15 centavos por barril2 – de honorários anuais. Com bastante traquejo comercial, ele ainda nos oferece voluntariamente “uma redução de 50%” para “registrar uma frota de 10 (ou mais) plataformas com menos de 15 anos”. A oferta é sedutora: permite escapar do pagamento de taxas e royalties, direitos trabalhistas3 e de qualquer regulamentação ambiental.
A Transocean, maior empresa do mundo na terceirização de exploração de petróleo, aproveitou bem a mesma oferta: 29 das 83 plataformas indicadas no site da firma estão instaladas nas Ilhas Marshall, enquanto o restante está quase todo nos mares da Libéria e do Panamá.
Nosso personagem negociante se inquieta, e pergunta: “Que aconteceria, por exemplo, em caso de acidente, se as autoridades questionassem a identidade dos donos da empresa?”. Logo em seguida, nosso interlocutor nos acalma: “Se as autoridades vierem fiscalizar os registros, ou nossa jurisdição, para solicitar a divulgação de informações complementares sobre os acionistas, diretores da empresa etc., notem que não temos essas informações, já que toda organização do negócio e sua condução são efetuadas diretamente por seus advogados e diretores. A menos que os nomes de diretores e acionistas estejam registrados nas Ilhas Marshall – o que não é obrigatório4 –, não somos obrigados a revelar essas informações”. E assim nos sentimos seguros...
Empresas como a IRI são herdeiras diretas da política internacional dos Estados Unidos, cuja tradição remonta ao cenário pós-Segunda Guerra Mundial. Naquele momento, percebeu-se que, com a demanda que ultrapassava a oferta, o ouro negro se tornaria a riqueza natural mais cobiçada do mundo. Com o apoio da Standard Oil5 e de um antigo secretário de Estado do presidente Roosevelt, Edward R. Stettinius, a Libéria criou em 1948 o primeiro “registro marítimo aberto”, gerenciado desde Nova York pela empresa Stettinius Associates–Liberia Inc. De acordo com a historiadora Rodney Carlisle, naquele momento o código marítimo da Libéria foi “lido, referendado e aprovado pela Standard Oil”6.

De olho na Libéria
Até o início dos anos 1990, era a IRI – sucessora de Stettinius Inc. depois de uma história de fusões e compras de Bancos e empresas – que fazia da Libéria um porto pacífico para as petroleiras. No entanto, durante a guerra civil que dilacerava o país, o presidente Charles Taylor se mostrou muito voraz em relação à empresa, o que desencadeou a ruptura de uma relação que, no auge da guerra, resultava em 70% da receita de seu governo. A IRI se voltou então às Ilhas Marshall – antiga colônia japonesa que ficou sob tutela americana de 1947 a 19867 –, onde desenvolveria um novo programa de registros permissivos. A IRI transfere para as Ilhas o conjunto de seus clientes e, em quinze anos, impeliu a República ao topo do ranking dos refúgios fiscais e regulamentários do mundo.
Atualmente, uma porcentagem significativa das plataformas de petróleo do planeta continua registrada na Libéria. Essa área não é mais gerenciada pela Stettinius, e sim pelo Serviço de Registro Internacional Liberiano de Embarcações e Empresas (LISCR), cujos escritórios estão localizados na periferia de Washington, em Vienna, cidade situada a apenas 13 km de Reston. “Mais de 3,1 mil plataformas de mais de 96 milhões de barris brutos, ou seja, 10% de toda a frota mundial” estão registrados na Libéria, festeja a empresa em seu site na internet.8
“Muitas pessoas podem ficar surpresas com o fato de os registros marítimos da Libéria e das Ilhas Marshall estarem a alguns quilômetros de Washington”, observa John Christensen, antigo alto funcionário da Ilha de Jersey (paraíso fiscal britânico) que, desde então, fundou a associação internacional Tax Justice Network (TJN). Contudo, ele não vê nenhum paradoxo: “Na realidade, esses dois espaços ultramarinos foram criados em função de interesses americanos para contornar as regulamentações que protegem os cidadãos dos Estados Unidos, entre outros aspectos, dos custos que nesse preciso momento estão sendo produzidos no Golfo do México”.
Voltemos à nossa negociação com a IRI. O representante da empresa, de repente, introduz um elemento que parece ser uma atenuante ao seu discurso entusiasta: “Para uma plataforma móvel de exploração de petróleo operar nas águas de outro país, o proprietário deve aderir ao conjunto de solicitações formuladas por esse país antes de obter a autorização de funcionamento”. Mas o registro das plataformas nas Ilhas Marshall não faria com que os operadores ficassem fora do alcance da legislação americana? Esse detalhe não parece produzir em nosso interlocutor a inquietação que imaginávamos, quando mencionou o que parecia uma condição.
Durante a investigação pública sobre a explosão da Deepwater Horizon, os americanos ficaram chocados ao se inteirar de que “não existe nenhum tipo de vigilância” às plataformas de petróleo. E isso não era o pior: também descobriram, a partir das audiências realizadas pelo serviço de gestão mineral (Mineral Management Service, MMS)9, que os operadores e proprietários “se autocertificam e estabelecem eles mesmos os critérios que lhes parecem adequados10”. O capitão da marinha costeira, Hung Nguyen, tentou resumir da seguinte forma: as regras são “concebidas segundo os critérios da indústria, fabricadas pela indústria, aplicadas pela mesma indústria sem supervisão do governo durante a construção ou manutenção. Não é assim?”. O diretor regional do MMS, Mike Saucier, não tinha outra escolha a não ser concordar.
Alguns anos antes, outra investigação concluiu que o MMS havia isentado a BP de respeitar as regulamentações petroleiras de segurança. Na ocasião, Earl Devaney, ex-inspetor geral do Ministério do Interior, havia qualificado o serviço de gestão mineral de “eticamente irresponsável”. Esse órgão não teria, talvez, aceitado regularmente “presentes” provenientes de empresas do setor de energia?11
Se, hipoteticamente, a regulamentação da indústria no que se refere à segurança fosse aplicada, isso acarretaria algum verdadeiro problema às grandes empresas? Não necessariamente: a definição dos critérios de vigilância, sobretudo os que regem os sistemas antiexplosão – instrumentos-chave nesse âmbito –, são confiados às próprias empresas ou a organismos profissionais, como o Instituto Americano do Petróleo (AIP), que representa 400 empresas do setor petroleiro e de gás.
Primeiro beneficiário dos fundos da BP destinados aos candidatos presidenciais, Barack Obama herdou um sistema colocado em andamento sob a administração de seu predecessor, George W. Bush – que estava, por sua vez, sob a pressão do (muito discreto) grupo de trabalho para o desenvolvimento de uma política nacional de energia, encabeçado pelo vice-presidente Richard Cheney (ver box sobre Halliburton).
Formado após uma semana da posse de Bush, em janeiro de 2001, esse grupo de trabalho forjou, em oito semanas, o decreto executivo n° 13211, sobre energia. Os trabalhos foram tão rápidos, a ponto do Conselho Nacional pela Defesa dos Recursos Naturais (NRDC) identificar que o texto retomava a “estrutura” e as “conclusões” de um documento da API. Uma das seções mais importantes era, inclusive, “quase idêntica” ao material identificado como base.12 Além disso, as sessões de trabalho se resumiram a encontros reservados com grandes patrões do setor petroleiro, dentre os quais estava John Browne13, da BP.

Lei do silêncio
Ao obter uma cópia das 13,5 mil páginas dos documentos preparados pelo GT, o NRDC concluiu que “as grandes empresas de energia comandavam o grupo de trabalho da Casa Branca, enquanto os oficiais decidiam sobre um plano de bilhões de dólares de subvenções às empresas e eliminavam das regulamentações medidas preventivas cruciais em termos de saúde e do meio ambiente”.
Com esse cenário favorável dos últimos anos, a BP, encabeçando 294 filiais registradas em países que garantem “sigilo”, decidiu aumentar sua produção – reduzindo sua exposição aos riscos – por meio da prestação de serviços a empresas petroleiras. Foi nesse contexto que a Transocean alugou sua plataforma Deepwater Horizon à BP pelo valor de US$ 1 milhão por dia, até 2013. A partir de operações como essa – e sob a direção de Tony Hayward, ex-diretor do departamento de exploração e produção –, a BP estendeu suas atividades nos campos marítimos de petróleo de modo voluntarista.
No último 20 de abril, os trabalhos de instalação da plataforma Deepwater Horizon estavam quase concluídos, à exceção de um poço que ainda necessitava ser perfurado. Diante do custo diário da plataforma, os gerentes da BP decidiram ignorar os procedimentos de segurança da Transocean. Embora estivessem conscientes dos problemas que o sistema antiexplosão apresentava, perseguiram um único objetivo: perfurar a qualquer custo – “drill, baby, drill”, se retomarmos o slogan da campanha da infeliz Sarah Palin, ex-candidata republicana à vice-presidência dos Estados Unidos.
O ecossistema de Nova Orleans pode levar centenas de anos para se restabelecer. O diretor de comunicação da Transocean, alegando um problema de “emergência dentária”, não respondeu às nossas questões. Quanto ao diretor da BP, Tony Hayward, não será sem certa dificuldade que tentará se esquivar de suas declarações no dia 18 de maio: “O impacto ambiental desse desastre será, provavelmente, bastante modesto”.

*Khadija Sherife é jornalista, coautora de "Aid to Africa Redeemer or coloniser?", Editora Pambazuka, Cidade do Cabo, 2009.
Publicado na revista ambientalista envolverde

 

 

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