O
destino de qualquer pensamento hegemônico é atrair a mediocridade,
que adora o senso comum.
É um engano pensar que
o neoliberalismo esteja morrendo. As ideologias não têm porta de
saída. São infinitamente capazes de reinterpretar os fatos e
assimilá-los.
O que mudará é o lugar desse pensamento na
sociedade. Ele havia se tornado arrogante, reivindicando em economia
a condição, epistemologicamente absurda, de pensamento único.
A
idéia de que possa existir um pensamento único pressupõe que a
realidade seja evidente. É uma contradição em termos: se a
realidade fosse evidente, o próprio pensamento seria desnecessário;
viveríamos em um mundo de meras constatações. A humanidade
compreendeu há milênios que objetos, situações e relações não
se deixam conhecer imediatamente. Precisam ser interpretados. Por
lidar com interpretações, o pensamento está condenado à
pluralidade. Nenhuma interpretação esgota o real.
Não existe,
pois, pensamento único. Existe pensamento hegemônico, aquele que se
torna senso comum.
Mas, como diziam alguns clássicos, a razão é
astuta, quer progredir: o destino de qualquer pensamento hegemônico
é atrair a mediocridade, que adora o senso comum. O esforço
intelectual mais vigoroso tende a migrar para o pólo
contra-hegemônico.
Quando uma corrente ousa reivindicar a
condição de pensamento único, é sinal de que sua hegemonia está
chegando ao fim, pois está entregue a ignorantes.
No imaginário
neoliberal, o mercado é o espaço de interação de agentes que não
controlam os processos de troca a ponto de impor os seus fins aos
demais. Ao governo, nessa visão, cabe cuidar apenas de preservar
certas condições que permitam ao mercado operar. Não deve haver
futuro pensado, desejado, concertado. Fora do âmbito das empresas,
não deve haver metas, pois, se a sociedade define metas, torna-se
necessário intervir conscientemente nos processos econômicos. A
alocação dos recursos será ótima se for produzida pelo mercado,
simplesmente porque o mercado produz uma alocação qualquer,
desconhecida, imprevisível, considerada ótima por critérios
internos à própria teoria que o glorifica. Não importa saber se
essa alocação ótima produzirá bem-estar. Esse não é um problema
de economia.
Na vida real, o neoliberalismo só conseguiu
produzir menores taxas de crescimento, maior desigualdade social e
crises recorrentes, que culminaram na grande crise atual. Mesmo
assim, repetia que era preciso dobrar a aposta, pois "o modelo
ainda não foi completamente implantado". Quantas vezes ouvimos
falar em reformas de primeira geração, de segunda geração, de
terceira geração? Compreende-se: sendo o livre mercado apenas um
tipo ideal, incapaz de organizar toda a vida social, então, por
definição, a implantação do modelo neoliberal está sempre
incompleta. Tal discurso se legitima em qualquer circunstância. Os
fracassos também o fortalecem, pois ele conta com uma fuga para a
frente: "Isso e aquilo estão atrapalhando o mercado". Esse
argumento pode ser repetido até o infinito, pois sempre haverá
instituições e práticas que "atrapalham" o mercado. Como
a vida das pessoas não pode ser reduzida a operações de compra e
venda, qualquer sociedade organizada transcende o mercado, qualquer
uma contém e recria importantes instâncias não-mercantis,
apontadas como culpadas. Mesmo hoje as evidentes inconsistências do
projeto neoliberal levam os seus defensores a concluir que é preciso
preservá-lo, fazendo algumas correções. A incapacidade de
realizar-se é, simultaneamente, uma fraqueza do modelo, no plano da
realidade, e uma fonte de seu vigor, no plano do discurso. Mantém-se
em ação um moto-perpétuo. Deixamo-nos conduzir por ele durante
alguns anos. Deu no que deu. Só se sai de uma ideologia por ruptura.
César Benjamin
Publicado na Folha
de São Paulo
|