Erradicar a mutilação genital feminina (II) Versão para impressão
Terça, 08 Fevereiro 2011
justicaSempre que falamos de mutilação genital feminina uma questão complexa impõe-se e divide opiniões: relativismo cultural, universalismo ou direito humano?

 

Artigo de Ana Margarida Ferreira

 

A prática da mutilação genital feminina é, antes de mais, uma violação de direitos humanos. Do direito à saúde (à vida e prazer sexuais), do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, do direito à integridade física e mental, do direito à não discriminação, do direito à vida e do direito a não ser sujeito a tortura ou qualquer outro tratamento degradante. Considerando a tenra idade em que é praticado, este resquício cultural é também uma violação dos diversos direitos das crianças, cuja Convenção Internacional foi assinada e ratificada pela vasta maioria dos países onde esta prática ainda ocorre.

Tratar-se-á esta condenação internacional de uma imposição ocidental em desconsideração da cultura alheia? Não creio. Efectivamente, o respeito pela cultura de cada povo é, ele mesmo, um direito humano, reconhecido pela própria Declaração Universal sobre Diversidade Cultural. Não se tratando este de um documento com força vinculativa, é ainda assim base de um padrão de direitos humanos. Os direitos humanos são, com efeito, universais, pertencem a cada homem e mulher pelo mero facto de existir, sendo a sua leitura feita de acordo com a cultura envolvente. Assim, o que é necessário para assegurar um mesmo direito humano diverge consoante a cultura a que uma determinada pessoa pertence, devendo os ditames culturais aceites ser respeitados. Isto não implica, contudo, que a premissa de respeito cultural possa atropelar o direito humano, inviolável e absoluto. É por isso que se discute o que são práticas culturais nefastas. Como bem afirma Rahmann, determinar o que é prática cultural a respeitar e o que constitui uma violação inaceitável de direitos humanos não é algo linear e facilmente determinável. Não obstante, relativamente à mutilação genital feminina não restam grandes dúvidas. Trata-se de uma prática de subjugação que altera profunda e irremediavelmente a saúde e a vida da mulher, a qual não tem uma voz activa em todo o processo, e mesmo que pudesse escolher não teria como a recusar porque isso determinaria a sua exclusão social.

É necessário informar estas populações, empoderar estas mulheres, oferecer alternativas como as já praticadas em países como o Senegal ou o Uganda, criando “fanados modelos”, rituais com todos os procedimentos tradicionais, mas em que se substitui o corte por outras práticas não violadoras. É preciso criminalizar esta prática, sim, mas não basta criar uma lei que posteriormente não terá condições de aplicabilidade, que não nasce de uma consciência da comunidade para o seu cariz ultrajante, mas sim de uma mera imposição. É necessário criar estruturas, oferecer cuidados médicos, formar profissionais de saúde, autonomizar estas mulheres. É necessário quebrar o ciclo, dizer basta mas sem pisar culturas numa imposição de valores. É preciso que o fim da mutilação genital feminina se torne um objectivo de todos, mesmo de homens e mulheres que se integram numa comunidade praticante.

Na Guiné-Bissau, três tribos praticantes mantêm as mutilações de tipo 1 e 2 entre as suas mulheres. As mesmas mulheres guineenses ao emigrarem para Portugal continuam estas mesmas práticas em bairros lisboetas. Ninguém sabe exactamente quantas mulheres foram sujeitas no nosso país a esta violência, mas suspeita-se que em 2008 fossem já cerca de 4000, entre as que foram mutiladas em solo português e as que voltaram durante as férias escolares com as suas mães à terra natal para procederem ao fanado. Em Portugal criou-se um primeiro plano nacional de combate à mutilação genital feminina, e terça-feira passada foi apresentado o segundo plano. Resultados? Aguardam-se.

Entretanto aquilo que era já um crime no nosso país (por força da criminalização da ofensa à integridade física grave prevista no art.º 144.º do nosso Código Penal, e pelas normas comunitárias que permitem ainda criminalizar a prática desta aberração quando praticada fora do continente europeu por imigrantes – tal como também o prevê o art.º6.º al. b), d) e e)) será brevemente levado a discussão no Parlamento da Guiné-Bissau, através de um diploma criminalizador específico. Esperamos que não se restrinja a punir, mas que o Governo guineense se esforce para criar estruturas de implementação de medidas sociais de combate a esta tragédia humana que assombra as mentes de tantos homens e mulheres, que é um problema de todos nós, comunidades praticantes ou não praticantes, porque acima de tudo é um problema Humano.

 

Nota: ver Erradicar a Mutilação Genital Feminina (I)