Žižek e o "fazer qualquer coisa" |
Sábado, 21 Maio 2011 | |||
Slavoj Žižek é um pensador a reter, hábil no modo como desconstrói a ideologia dominante através da exposição crua dos seus lugares-comuns culturais, eficaz quando utiliza a razão lógica para pôr em cheque muitos dos absurdos que são tomados por racionais na ordem mediática. Esta nota de interesse conforta, além do mais, a necessidade de questionar aspectos do que Žižek possa vislumbrar como alternativa política, ou simplesmente como via para lá chegar, com suficiente apoio social e destino visíveis. Por aí, o que proclama S. Ž.? "Desenganados do comunismo do século XX, estão prontos a começar do começo e a reinventá-lo a partir de uma nova base. Acusados pelos seus inimigos como utopistas perigosos (...) são eles, e não os nostálgicos do socialismo realmente existente do século XX, a nossa única esperança" (Da Tragédia à Farsa, 2009, edição portuguesa da Relógio de Água, págs. 178). O enunciado é sugestivo: a recuperação do comunismo como negação da negação. Isto é, o comunismo como coisa completamente outra do que foram as caricaturas dos regimes que tiveram o seu nome. E quais seriam os elementos da "nova tese" do movimento comunista? Elementos reflexos da análise do nosso tempo. Žižek expõe-nos acerca dos "antagonismos históricos reais": "Há quatro antagonismos fortes na situação actual: o pairar da ameaça de uma catástrofe ecológica; a inadequação da noção de ropriedade privada no que se refere chamada «propriedade intelectual»; as implicações sociais e éticas dos nossos desenvolvimentos tecnocientíficos (sobretudo na biogenética), e , em último mas não menos importante lugar, a criação de novas formas de apartheid, novos muros e bairros miseráveis". Acrescenta S. Ž.: "Há uma diferença qualitativa entre este último traço - o fosso que separa os excluídos dos incluídos - e os outros três, que designam aspectos diferentes daquilo que Hardt e Negri chamam os «comuns», a substância partilhada da nossa existência social, e cuja privatização implica actos de violência aos quais, quando necessário, teremos de resistir recorrendo a meios violentos" (S. Ž. op. cit. p. 108). Isto é, o esbulho do ambiente, do conhecimento, e do domínio do ser biológico, adicionam-se à tradicional noção de pauperização. S. Ž. é muito claro neste ponto: "É a referência aos "comuns" que justifica a ressurreição da noção de comunismo: permite-nos ver a progressiva «vedação» dos comuns como um processo de proletarização dos que são excluídos desse modo da sua própria substância. Também não devemos decerto abandonar a noção de proletariado, ou de posição proletária: a conjuntura presente obriga-nos antes a radicalizá-la a um nível existencial muito para além da imaginação de Marx - de um sujeito reduzido ao ponto evanescente do cogito cartesiano" (S. Ž. op. cit. p. 109). Por esta percepção, Žižek afirma uma nova perspectiva, face ao comunismo, sobre o sujeito revolucionário: "Por estas razões, uma nova política emancipatória não emanará já de um agente social particular, mas de uma combinação explosiva de diferentes agentes (...) esta tripla ameaça a todo o conjunto da nossa existência torna-nos a todos proletários, reduzidos a uma subjectividade sem substância, como escreve Marx nos Grundisse" (S. Ž. op. cit. p. 110). Em todo o caso, S. Ž. hierarquiza a sua visão das contradições contemporâneas da humanidade: "Na série dos quatro antagonismo, o que tem lugar entre os incluídos e os excluídos é, portanto, o antagonismo decisivo. Sem ele, todos os outros perdem o seu gume subversivo (...)" (S. Ž. op. cit. p. 116) ou, por outras palavras, "existe uma outra diferença fundamental entre os três primeiros antagonismos e o quarto: os três primeiros reportam-se efectivamente a questões de sobrevivência (económica, antropológica e até física) da humanidade, mas o quarto remete em última instância para uma questão de justiça" (S. Ž. op. cit. p. 116). Não serão necessárias mais colheitas na fonte para perceber o pensamento que supostamente começaria o comunismo na sua nova base. Importa aqui, sem culto dogmático, interrogar o porquê do afastamento de Marx. Actualização? Outras características do capitalismo? Negação, e chegada de outros contributos teóricos? De facto, Žižek deixou de lado da análise marxista tudo o que releva da economia: a exploração capitalista da força de trabalho, a anarquia do mercado, o processo de centralização da propriedade de meios de produção e troca, o imperialismo como guarda da posição dominante de mercado. A produção do ambiente, a privatização da propriedade intelectual, a alienação do controlo biológico, alguns dos expoentes do capitalismo dos dias de hoje, e expressão da selva na civitas, não são outra coisa que o desenvolvimento do lucro privado sobre o trabalho social acumulado. Marx poderia imaginar, tanto como Júlio Verne, os progressos da biotecnologia, sublinhando fantasias, mas preferiu descrever o processo de avanço das forças produtivas e o peso qualitativo do "trabalho complexo" no incremento do excedente social, ou seja na produtividade. O 4º antagonismo, a que S. Ž. se refere, o fosso entre incluídos e excluídos, não é, na óptica dos marxistas, uma mera questão de distribuição do rendimento do produto social, ou seja, uma atitude subjectiva do poder organizado na sociedade. Na verdade, na origem do processo de exclusão social encontra-se a subtracção da mais-valia à força de trabalho, isto é, o trabalho não-pago pelo capital. A organização capitalista da produção leva a que ao lado dos assalariados se encontrem crescentes camadas de desempregados, de precários intermitentes na ocupação, de pobres que não chegam a entrar no mercado de trabalho, também de trabalhadores por conta própria, e os pequenos proprietários falidos. Tal facto não despoja o Trabalho da sua centralidade. A transferência do seu valor para o Capital é a base do capitalismo, pois o capitalismo não se alimenta do não-trabalho. Não se trata, então, de uma questão subjectiva mas objectiva, no sentido económico-social. A exploração capitalista é o princípio da "injustiça" distributiva, a que se somam em anéis concêntricos, toda uma série de marginalizações de vários extractos da população do rendimento do produto social. Julgo que a crítica de Marx ao capitalismo se mantém nestes aspectos tão perfeita, e manter-se-á mesmo quando a fibra-óptica já não for a última condutora perfeita da linguagem electrónica. Neste campo, não creio que Žižek reinvente o que quer que seja como fundamento do movimento comunista. Substituir o conhecimento e a compreensão da origem da luta de classes na sociedade por uma moral de unidade dos oprimidos, uma "combinaçã explosiva de diferentes agentes" tomados individualmente, não é uma novidade. Marx e Engels enfrentaram esse tipo de posicionamento, sob outras formas e focado na época, dos socialistas a que chamavam "utópicos". O autor chama a si próprio, na obra que temos vindo a acompanhar, uma filosofia de "voluntarismo puro", tornada imprescindível porque não confia no proletariado como sujeito revolucionário e é preciso "fazer alguma coisa" contra o desenvolvimento histórico do sistema que leva à catástrofe. Žižek caracteriza mesmo esse voluntarismo puro: "a nossa decisão de agirmos contra a necessidade histórica, pode evitar-nos essa calamidade" (S. Ž. op. cit. p. 176). Note-se: contra a necessidade histórica! Esse "voluntarismo puro" transmite-se, depois, ao argumentário político genérico do pensador esloveno. Segundo ele, quando os sindicatos e os trabalhadores resistem, na defesa do "estado-providência", estão a acomodar-se ao sistema, e não a tentar mudá-lo. O combate no âmbito da democracia representativa (que Žižek despreza na fronteira do ódio) é considerado inútil, como mera reprodução dos mecanismos da democracia liberal. A procura de maiorias de legitimação de processos de transformação social não merece a menor atenção, talvez porque a urgência de evitar apocalipses evite o desperdício de tempo gasto a ganhar o proletariado para o nosso lado... Žižek até reconhece como foi funesto para o "socialismo realmente existente" ter ignorado a democracia. Não fixa, porém, sobre isso qualquer necessidade própria, nem indicação teórica, para o papel da democracia no combate ao capitalismo, nem garantias sobre a soberania popular que o socialismo há-de ter. O "voluntarismo puro" leva até à condenação prática, como empecilhos e atrasos, dos movimentos de massas por direitos civis. Mais uma "armadilha" do capitalismo... O que resta então de estruturante para a alternativa política? A violência estratégica, várias vezes invocada neste trabalho "Da Tragédia à Farsa". No entanto, o resumo mais afinado desta tese podemos lê-lo num artigo de Žižek do "Monde Diplomatique", de Novembro último: "Do ponto de vista dos oprimidos, a própria existência do Estado, enquanto aparelho da classe dominante, constitui um acto de violência. O credo segundo o qual a violência nunca é legítima, mas por vezes necessária, parece ser muito insuficiente. Numa perspectiva radical e emancipadora, os termos do postulado deviam inverter-se: a violência dos oprimidos é sempre legítima - visto que o seu próprio estatuto resulta de uma violência - mas nunca necessária: a escolha de recorrer ou não à força contra o inimigo decorre, estritamente, de uma consideração estratégica". Este conceito sobre o papel de violência na história não é tributário da visão marxista, mais uma vez. A consciência de que a violência, em qualquer significado, é a "parteira da história" não é mais do que o reconhecimento do registo dos acontecimentos, nas várias etapas da sociedade de classes, onde as mudanças socio-económicas, ou de regime político, são produto de afrontamento de forças adversárias, que com maior ou menor grau de forças, alteram bruscamente as relações de estado e de propriedade e, mesmo, relações pessoais e de grupo. O grau de violência não é mensurável pelo impacto psicológico do "sangue" ou das "baixas", embora esse seja um facto a contar no choque social. O grau de violência é aferível pela dimensão da mudança na ordem das coisas. Há pactos de uma enorme violência sobre as pessoas, há revoluções sem mortos, há guerras quase sem perdas, e há todo o contrário disto, e até a inaudita violência que se segue às derrotas revolucionárias. Tema largo, portanto, e de inúmeras facetas, de alto melindre, e objecto de uma polémica de um século nos movimentos de esquerda. Na simplicidade deste artigo crítico, valerá dizer que Žižek desliga a violência dos oprimidos (qualquer que seja o sujeito revolucionário que ele considere) do processo de uma revolução social e política. Quando grandes massas se levantam contra o poder estabelecido (como estamos a presenciar no momento no Norte de África e no Oriente Médio) essa violência legitima-se pela vontade revolucionária. É rigorosamente, um poder constituinte, que emerge. A violência, necessariamente de minorias, não cuidamos de saber se são vanguardas ou não, escolhida subjectivamente, dita estratégica, sempre válida, qualquer que seja o momento em que é empregue, é uma doutrina guerrilheira responsável por vários dramas na Europa Central nos anos 70 e 80 do século passado. A apologia do "terrorismo" de pequenos grupos é execrável, e nada tem a ver com a esquerda. A linha que separa Žižek deste facto é ténue e mal explicada. Esta chamada à acção, constante e global, é evidentemente uma necessidade do anti-capitalismo de massas. Mas não nos confundam: fazer qualquer coisa "radical" para promover uma série de "insurreições" é do domínio do mágico ou do desespero. O internacionalismo do socialismo e da democracia é uma alternativa à globalização imperialista. Uma alternativa de fôlego e pluri-continental. Uma longa marcha da luta de classes. Um milagre de alianças sociais, decerto. Achar que tudo isso se supera por uns conflitos de provocação à ordem é uma receita que já vem do anarquismo, outro paradigma do voluntarismo puro, e sempre mostrou a nudez da sua inconsequência completa. A parte mais estranha do doutrinário de Žižek é quando tenta separar o socialismo (que não pretende) do comunismo (que deseja com ardor). O socialismo, como "comunismo vulgar" ou "1ª fase do comunismo", teria sido um erro porque, nas experiências conhecidas, se consumia apenas como propriedade estatal. O comunismo seria, doravante, a directa introdução duma propriedade "social", mais ou menos autogestionária, também articulada com a democracia "directa", a única forma concebível de "ditadura do proletariado". O autor elabora em tudo isto uma sequência de vultos em nevoeiro, e, por isso, o exame que se possa fazer é difuso. Talvez, por isso, Slavoj Žižek conclua o já citado artigo do "Monde Diplomatique" com esta pérola de prosa: "A nossa situação actual situa-se no ponto exactamente oposto ao da que prevalecia no início do século XX, quando a esquerda sabia o que devia fazer, mas tinha de esperar pacientemente o momento propício para passar à acção. Hoje não sabemos o que devemos fazer, mas temos de agir imediatamente, porque a nossa inércia pode ter em breve consequência desastrosas". É, de facto, preciso trazer novas "luzes" ao pensamento revolucionário para actualizar o marxismo, quer com as metamorfoses do capitalismo, quer com a correcção dos erros do socialismo que o deixaram a perder. Muito se tem avançado neste campo nas últimas duas décadas e a teoria do "além-marxismo" é ainda muito underground, mas a dialéctica tem o tempo do relógio social. Não é esse o escopo deste artigo. A impaciência propensa ao radicalismo, sem sujeito, nem projecto, do choque pelo choque, do que quer que seja, é uma paródia e um diletantismo. Não haja receio das palavras. Žižek "não sabe o que devemos fazer", sublinha-se a honestidade do conteúdo. Mas antes de fazer qualquer coisa, caro leitor pense e pense com os sujeitos colectivos da luta de classes. Luís Fazenda Nota: publicado em A Comuna nr. 25, pag.s 39-45
|
A Comuna 33 e 34
A Comuna 34 (II semestre 2015) "Luta social e crise política no Brasil" | Editorial | ISSUU | PDF
A Comuna 33 (I semestre 2015) "Feminismo em Ação" | ISSUU | PDF | Revistas anteriores
Karl Marx