«DEMOCRACY
There is no scape./The big pricks are out./They’ll fuck everything in sight./Watch your back.»
Harold Pinter (Prémio Nobel da Literatura,2005)
Artigo de Mário Tomé
Aqui estamos nós neste campo de concentração democrático. Valha-nos isso. Temos um governo de obedientes manajeiros, maiorais, capatazes, Kapos ou Cipaios, encarregues de fazer cumprir as ordens do FMI.
O nome a dar-lhes, escolher entre os cinco depende da sensibilidade de cada um.
Andróides talvez ficasse melhor, pela sua característica de robots. Mas a ficção científica - «Blade Runner» - fez-nos empatizar ainda mais que simpatizar com essas criaturas à procura da sua vida própria e autónoma.
O que não é decididamente o caso.
Rendidos à realidade, os bons rapazes da nossa aldeia local afirmam sem pudor que afinal estamos todos de acordo e, até, que a esquerda, por uma vez, teve razão antes da direita; o que, em linguagem síncrona, significa que a direita tem razão!
A Moody’s terá conseguido o milagre de reduzir a resistência da parte do espectro político que dividia as forças patrióticas – cada uma com a sua legítima especificidade particular – depois da entrada da Troika.
Afinal, vá lá saber-se como, as agências de rating prosseguem fins pouco claros, actuam no terreno da pura especulação financeira, impõem aos Estados e às empresas os seus critérios de avaliação determinados pelos interesses daqueles que as detêm e as gerem.
De qualquer modo é o mercado a trabalhar. E o mercado financeiro funciona guiando-se pelas avaliações das agências de rating que, por sua vez, disputam o mercado. O mercado avaliado pelo mercado, o mercado manipulado pelos que, no mercado, são pagos para avaliar o mercado de acordo com os seus próprios interesses no mercado. Digamos que estamos perante uma surpreendente, apesar de tudo ser de esperar da ética capitalista, absolutização total do mercado como gerador de democracia.
As agências de rating existem, como os off-shores, para alavancarem os réditos do mercado financeiro desde que se descobriu que o dinheiro funciona por si próprio, é capaz de funcionar apenas enquanto presunção, ou símbolo, ou fetiche; funciona sem a produção económica que lhe assegura o valor; funciona pela milagrosa acção da sua própria inexistência, ou seja a dívida é, nos tempos exaltantes que correm, o grande produtor do dinheiro.
O dinheiro assim gerado, no fundo “reduzido” a “troca” de informação dedicada, corresponde a 90% da circulação financeira, correspondendo os restantes 10% à produção real da economia global.
Em 1980 a soma de todos os activos financeiros equivalia aproximadamente ao PIB mundial mas, actualmente, corresponde a cerca de quatro vezes aquele valor. Por sua vez o valor nocional de todos os contratos derivativos financeiros equivalia em Junho último, a cerca de 14 vezes o PIB mundial**.
O fundamento radical da ética capitalista hoje é a garantia de que as crises decorrentes da sua cada vez maior abstracção do social e do humano, contam com milhares de milhões de humanas criaturas que servem de colchão amortecedor e de alavancagem para maiores e mais vastos lucros. Juro.
Esta a razão pela qual os povos e os trabalhadores em geral ou vivem no limiar da miséria ou vivem muito abaixo do valor social da sua força de trabalho. A principal regra ética do capitalismo desde que nasceu ( «O capital vem ao mundo conspurcado da cabeça aos pés e sangrando por todos os poros». (…) «Tudo o que é realmente humano se torna congelado ou cristalizado numa força material impessoal, enquanto os objectos inanimados ganham uma vida ameaçadora e vigorosa »Karl Marx) é que a economia « serve para sermos felizes comprando prazer com o menor custo em termos de desprazer» (Jeremy Bentham, 1748-1832).
A financeirização da economia permitiu como nunca a realização de tão nobre e ético objectivo para um pequeno número de humanóides, é verdade, e à custa da massa esmagadora da humanidade mas não podemos querer sol na eira e chuva no nabal.
Não nos esqueçamos como os nossos “valerosos capitães” da Indústria, nos alvores do neo-liberalismo, rapidamente se transformaram em banqueiros e seguradores, investidores na saúde e nas universidades, com a real profissão de mafiosos especuladores. Lado a lado com outro tipo de especuladores, os que especulam com o controlo e monopólio da alimentação mundial e seus danos colaterais, os grandes e gigantescos distribuidores, recebe na hora paga a 90 ou 120 dias, ou então vende a crédito beneficiando do valor virtual do capital financeiro. Daí Belmiro de Azevedo ser dos entes com maior crédito na política nacional.
II
Na nossa pátria, pontifica hoje um ser de olhar enviesado mesmo quando olha de frente, que conseguiu ser presidente da República beneficiando do bando de aduladores e de propagandistas do bom aluno de Bruxelas (“não percam a memória”) dos idos de 85/95, dez preciosos anos para a formação da geração dos liquidadores mais avançados da economia nacional e do bando que melhor soube rentabilizar os fundos europeus. Na finança e no governo deixaram marca nos offshores e parte deles foi depois poisar pacificamente nos algarves.
Depois no campo cultural e mais refinadamente intelectual, temos os reitores e professores a retalho para as universidades de vão de escada, e de trabalho, não infantil mas infantilizado; especulando com ensino a metro e cursos a quilo, em que o quilo de algodão pesava menos que o quilo de ferro.
Grande significado no progresso da agricultura, por ter sido o único assinalado, teve Thierry Russel que deixou centenas de trabalhadores no desemprego e milhares de hectares cobertos de plástico das estufas que, segundo Cavaco Silva, iam revolucionar a agricultura que ele se tinha encarregado de transformar em jeeps para uso dos JEEPS (Jovens Empresários de Elevado Potencial, sic).
Gastando um milhão de contos (cinco milhões de euros ) por dia dos fundos da CEE para liquidar a capacidade produtiva na pesca, na indústria pesada e em fundos para a transformação das nacionalizações em propriedade especulativa e financeira a preço de saldo avaliado pelos próprios interessados ou mantidas à custa de indemnizações pagas de acordo com os avaliadores ao serviço dos indemnizados, Cavaco liquidou (o termo não é exagerado) a produção económica nacional.
Foi ele o grande estruturador da dívida brutal que hoje o faz indignar-se com a Moody’s, a mesma que há um ano ilibava de qualquer torcidela nas avaliações. Foi o mesmo Cavaco – que se tivesse vergonha metia a viola no saco – que disse, nos anos de ouro da destruição do país como entidade económica respeitável que não havia desemprego a mais, o que havia era falências a menos.
O terreno, contudo, tinha sido previamente preparado pelo governo do Bloco Central, Mário Soares/Mota Pinto, quando Soares dizia que não devíamos olhar para as nacionalizações como intocáveis e era necessário abrirmo-nos à modernidade do mercado.(“não percam a memória”)
Cavaco sempre esteve fadado para grandes feitos. O maior foi o ter-se tornado, sem um murmúrio que ecoasse a mínima reprovação da grei lusitana, o Couteiro-Mor da Troika, tomando conta do governo às ordens do programa da também chamada Tríade
O seu papel de Couteiro-Mor, ou seja de vigilante e controlador do papel do governo, e de avalizador, face aos basbaques formadores da opinião, da política brutal da Troika e de Passos Coelho, ficou claro em duas recentes intervenções.
Há dias recebeu o Ministro dos Negócios Estrangeiros antes de este se deslocar a Bruxelas. Ora isso não tem qualquer cobertura constitucional – o Presidente trabalha com o Primeiro Ministro e, a não ser no âmbito desse trabalho, não lhe compete pronunciar-se sobre a política dos negócios estrangeiros . A ida de Portas a Belém só pode entender-se como total e rasteira vassalagem do Governo face a Cavaco, que já rompe caminho contra o contra o SNS proclamando a privatização como garante de justiça social. Cavaco a quem compete, antes de qualquer outro, a defesa da Constituição que jurou é o primeiro a confrontá-la para abrir caminho a Passos Coelho e à Troika.
Ao marcar as recentes eleições legislativas ignorou ostensivamente a ocupação ilegítima de Portugal pelo FMI com a imposição de um programa não sufragado que condicionou de forma irreversível o resultado eleitoral.
III
O mercado financeiro, ou seja a democracia de mercado e o mercado como garante da democracia, anunciados por Cavaco desde sempre, onde se movem os cavaleiros da corrupção, desde os do BPN, ao BPP, ao BCP, às agências de notação, às transferências milionárias – não, não me refiro aos futebolistas – da política para a banca e para as empresas e da banca e das empresas para a política mais a legalização da ilegal fuga de biliões aos impostos através dos off shores, a obscuridade em torno do enriquecimento de quem não tem fontes de rendimento lícitas que o justifiquem, representam o fundamental do desvio do investimento produtivo para a especulação financeira que não mais poderá ser olhada senão como criminosa.
Trata-se, através do mecanismo da dívida soberana, em última instância, da garantia da transferência mais brutal de que há memória, dos rendimentos do trabalho para o capital.
No PS levantam-se dois heróis da história aos quadradinhos que é essa espécie de refundação do socialismo através do capitalismo ético. Eis uma boa forma de esquecer todo o papel do PS no reforço das políticas neo-liberais no nosso país. Reivindica-se o papel da Internacional Socialista para forçar a cruzada contra as agências de notação, nesta espécie de ida ao confessionário, dizer as três avé-marias e seis padres-nossos, e continuar as pulantices sugeridas ou impostas pela vida real.
E a vida real é que, como dizia Espinoza, o manipulador mafioso do agregado de toda vida política, religiosa, militar, económica e financeira, em Itália, segundo a série «La Piovra» (O Polvo), ao polícia bom, o nosso amigo Conrado, que combatia ou pensava combater a corrupção: «a corrupção é o lubrificante do capitalismo». Nada melhor que uma série televisiva para validar uma asserção tão radical como esta. Qual Marx, qual quê!...
A democracia é o inimigo do capitalismo de forma cada vez mais óbvia. E, portanto, a luta contra a Moody’s, contra os off-shores, contra a corrupção, hoje, quando o capitalismo para sobreviver já não consegue disfarçar o seu carácter monstruoso, incapaz de permitir qualquer ideia nova e transformadora, passa pela luta sem quartel em defesa e aprofundamento da democracia.
E podemos contar com as putativas virgens assustadas mas sempre veneradoras, como os «refundadores» que descobrem um oportunamente anquilosado PS para poderem transformar, agora sim é que é, no PS das bases. Desde que estas estejam dispostas a correr atrás de quem lhes promete que a base ética do capitalismo será preservada e que a obtenção do lucro máximo será ao mesmo tempo a garantia da base ética dos negócios na bolsa democrática.
Como elas abraçam (com reservas quanto aos excessos) a Troika, o PSD e o CDS!; aos quais se junta seráfico, sensato e ponderado o Cardeal Patriarca que elogiou a justa consideração de Passos Coelho ao não penalizar o subsídio de Natal da grande maioria, ou seja dos mais pobres, apontando à ética capitalista o trilho do Senhor: quando todos forem pobres não mais haverá penalização do subsídio de Natal.
Assim se junta a ética capitalista à ética católica.
A democracia apenas tem a sua defesa na luta sem tréguas a esta lamacenta e pútrida gestão da catástrofe. A democracia exige o combate a todas as manifestações da usura financeira, a todos os lacaios políticos dos espoliadores do trabalho. Cada manobra da finança, cada medida do Estado para assegurar a legitimidade dessa manobra, é uma ameaça directa à participação democrática e à democracia como forma, em constante aproximação, da decisão popular.
Esta luta, na sua essência pelo socialismo, pela ética socialista antes do próprio socialismo, exige capacidade para confrontar cada medida da Troika e do Governo, por aquilo que ela é e por aquilo que ela significa e prepara. É uma luta metro a metro, afastando-nos do abismo, e em cada metro preparando a derrocada futura do capitalismo. É a luta revolucionária que tanto é capaz de usar o voto, de chamar à acção os que apenas pretendem uma saída; como de transformar em energia transformadora todas as hesitações, todos os temores, todas as desconfianças ,e também todas as coragens e ousadias, que finalmente se juntem prontas para todas as batalhas.
*Parafraseando o título do livro («Os inimigos da sociedade aberta») em que Karl Popper tenta sem êxito (a não ser para o Pacheco Pereira e o João Carlos Espada) atacar a obra de Karl Marx
**Vitor Bento, Economia, Moral e Política,FFMS