Anarco qualquer coisa |
Sexta, 16 Setembro 2011 | |||
Não falta quem tenha a opinião de que há um ressurgimento do anarquismo, pelo menos na Europa. Não há fumo sem fogo, dir-se-ia. Contudo, é importante precisar algumas distinções nessa análise. 1. Historicamente, o anarquismo corresponde à infância do movimento operário contra a opressão burguesa e a exploração capitalista. Tratou-se de uma fase natural, de revolta contra a máquina jurídico-económica que condenava milhões de trabalhadores a uma existência mais que miserável e perto da escravidão. Marx e os socialistas criticaram no anarquismo a sua inconsequência, a sua incapacidade de alternativa política: não tinham outra sociedade a propor que não fosse uma vaga auto-organização dos produtores, não tinham subjectividade política porque recusavam a mesma ideia de um operário participar na política. Não se exceda, porém, o campo das críticas socialistas. É um facto, que nesse tempo, Marx, e muito também Engels, foram adversários dos anarquistas, de Proudhon a Bakunine, e outros. Os “marxistas” foram ácidos e impiedosos no desmascaramento da cisão que os anarquistas protagonizaram na Internacional Comunista. No entanto, nunca negaram ao anarquismo, sobretudo no sul europeu, ligado ao sindicalismo, a maturação de uma nova consciência de classe, elemento indispensável para a construção de uma consciência da luta de classes. Os fundadores do socialismo moderno acharam ingénua a ideia de “abolição do Estado”, ou da “abolição da autoridade”, acharam simplista a ideia de uma “greve geral” derrubar o capitalismo. Contudo, ressalvaram os objectivos em comum com o anarquismo. O desaparecimento do Estado, como máquina de opressão classista, só é possível com o advento de uma sociedade sem classes, asseveravam. As lutas do proletariado eram compreendidas como percurso até à revolução e à tomada do poder, o poder dos explorados para deixar despontar uma sociedade sem classes. Os militantes marxistas, no passado, no afã de recuperarem para o seu lado prosélitos do anarquismo, diziam-lhes, nessa vizinhança da doutrina proletária, que a Anarquia seria possível depois do comunismo. Era uma questão de inteligilibilidade do processo histórico previsível. Previsível à luz do materialismo histórico, claro. 2. Neste contexto geral, há uma dívida histórica ao anarquismo, pese a sua inconsequência, como um dos fautores da modernidade anti-capitalista, a par de todos os outros que fizeram a negação progressiva, a superação, dos objectivos da revolução francesa. O anarquismo do século XIX e parte do século XX privilegiava organizações de massa, sindicatos e outras, e dotou-se de uma imprensa reconhecida, tinha uma lógica de choque de classe que hoje se chamaria multidinária. Mas isolou-se, pela inconsequência filosófica e pela proliferação do terrorismo que lhe foi associado em vários países. Em Portugal, o anarquismo só se apagou no movimento operário após o levantamento anti-fascista de 18 de Janeiro de 1934. Como é conhecido, a corrente comunista impôs-se sobre a desagregação geral dos seguidores anarco-sindicalistas, agravado pelo destroço desta influente corrente na guerra civil espanhola. Este apontamento, a traço grosso, não aflora a tradição libertária posterior. Foca-se, antes, naquilo que possam ser os movimentos anarquistas da actualidade. 3. Na primeira década de dois mil, deram na vista os “Black Bloc”, tirando vantagem das formidáveis manifestações anti-globalização imperialista para aí vandalizar “os símbolos” do capital, provocar confrontos com a polícia, envergando roupas negras e capuzes. As experiências prévias a estas acções provieram da Alemanha e generalizaram-se. Os Black Bloc não se consideram um movimento, uma rede, afirmam-se uma “táctica”. O seu sujeito é ser uma “táctica” de combate, a que podem aderir todos os “anti-autoritários”. É-lhes comumente atribuída a designação de anarquistas, que não rejeitam. A actividade é puramente provocatória, tem tido altos e baixos consoante a infiltração policial. A suposta “táctica” não faz avançar um milímetro a luta de classes, ao contrário tem dado pretexto para a repressão policial, e rouba os “headlines” das acções populares para os desacatos de um mini-grupo. A conveniência para a burguesia não pode ser mais gritante. A coisa tem um nome: Black Bloc. Mas não existe o sujeito, o sujeito é “uma táctica”, a coisa não interessa, só interessa “um” movimento, até só único artigo do imaginário estatuto: ter um passa-montanha preto. A crítica a estas “organizações dissimuladas” é aqui feita a partir da ideia marxista de que a violência é a parteira da história, mas a violência das massas, as revoluções que os povos empreenderam nas fracturas da história. Como a burguesia nestes dias rejubila com a violência de massas contra alguns dos ditadores da zona árabe! Pensar que as acções de micro-grupos “excitam” a rebelião não tem prova histórica. Há trinta anos discutia-se o aventureirismo da “guerrilha urbana”, hoje a acção directa mistura-se com uma vaga “desobediência civil”, uma indefinida insurgência, e por vezes até de uma simpática inocência. 4. Não será possível abordar a “táctica” black sem perceber a origem do processo. Nos anos sessenta do século passado foram nascendo os chamados “autonomistas” em vários países da Europa ocidental. Esses sim, tinham programa e política. Ensaiaram uma simbiose entre anarquismo e marxismo. Do anarquismo retiravam a aversão ao Estado, ao “governo compulsório”, à hierarquia e burocracia dos partidos de esquerda, especialmente dos partidos centralistas de tradição comunista. Do marxismo recuperaram a teoria económica, os princípios gerais da luta de classes: “horizontalizar” a luta de classes é uma consigna que pode hoje parecer estranha mas motivou muitos radicais, em particular grupos estudantis e intelectuais. Para essa luta de classes não havia outro programa senão o anticapitalismo radical, não havia fases, nem alianças. A estratégia, sem táctica, era a acção directa e a agitação vermelha. Essa foi a tese antiga de Toni Negri, de várias organizações italianas, francesas, alemãs, holandesas, entre outras de menor expressão. Quem desse caldo, onde se misturavam outros grupos ditos de extrema-esquerda, emergiu para os protótipos de “brigadas vermelhas”, levou o raciocínio até ao fim. As memórias de alguns desses “brigadistas” são pungentes: não se sabe o que lamentam mais, se a ilusão brutal ou o cárcere. Contudo, o “autonomismo” persistiu, apesar de criticado por muitos libertários que sempre excluíram aproximações ao marxismo, e que inclusivamente procuraram fazer valer a “pureza” do seu socialismo libertário perante a implosão da União Soviética. 5. Autonomistas e anarquistas partilham slogans que hoje vemos aparecer tais como “o povo unido não precisa de partido”, “o povo organizado não precisa de estado”, etc. Desde logo, percebe-se que fazem coro com a direita populista “contra os partidos”, o voto branco subitamente é uma atracção, exactamente porque é o anti-voto. Pergunte-se: é uma crítica por junto aos partidos existentes? Seria compreensível, e matéria de discussão à esquerda, onde nem à direita nem à esquerda os partidos são todos similares. Todos e cada um estão sujeitos à crítica da cidadania. No entanto, não é isso que se passa. De facto, acham estes activistas é que os trabalhadores não devem ter partidos. Decretam a impossibilidade de um partido de classe para o socialismo. Não pretendem revolucionarizar sequer os partidos de esquerda existentes. Não pretendem fundar nenhum outro. São auto-proclamados contra-poder, como tal contra-cultura. E a contra-cultura é antipartido. A opressão cairá por levantamento, o tempo pouco importa, o povo auto-organiza-se. É matéria de fé. Assim percebemos que estamos num projecto de anarco-qualquer-coisa. A crítica que aqui se produz parte até de um ponto de vista que não é parlamentarista, nem eleitoralista, embora ninguém posa dispensar o voto popular a não ser as ditaduras. A crítica que aqui se perfila sabe e condena desvios autoritários de partidos de base popular, e repudia o controleirismo sobre organizações sindicais, movimentos sociais, cooperativas, etc. Mas nada disso habilita quaisquer activistas a achar que o proletariado não precisa de partido político. Nesse aspecto, este debate já não é dirigido a uma manifestação infantil do movimento operário, mas apareceu como uma caricatura do passado. Esse “autonomismo” teve inclusivamente à ideia peregrina de que os movimentos sociais “autênticos” são apartidários e contra-partidários. Há uma classe que agradece, mas não são os trabalhadores. 6. Recentemente, houve quem procurasse aparentar o movimento dos “indignados” ao autonomismo. É, tudo o indica, uma simplificação e um erro. Ressalvando que o movimentos dos “indignados” em Espanha é bem diferente de França, ou doutros lados. O protesto português do Rossio não é de extracção ideológica, o que não quer dizer que não se cruzem vários pensamentos. A plataforma que conseguiu a revolta de jovens, contra o austeritarismo é uma justa direcção de luta, quem não o dirá. Mas dificilmente alguém vê ali um programa anti-capitalista. As reivindicações democráticas são por um poder diferente mas não se pode concluir que são “contra-poder”. Determinadas concepções basistas, o assembleísmo extremado podem ser o desejo de uma “política outra”, consideravelmente distante no entanto da abolição da autoridade. As referências reportam-se a escrito e slogans, sem prejuízo que individualmente pudessem compartilhar essa “tomada de espaço” outras causas de um vago libertarismo. A pergunta do Rossio é outra: qual o eco da espontaneidade? Luís Fazenda
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A Comuna 33 e 34
A Comuna 34 (II semestre 2015) "Luta social e crise política no Brasil" | Editorial | ISSUU | PDF
A Comuna 33 (I semestre 2015) "Feminismo em Ação" | ISSUU | PDF | Revistas anteriores
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