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Quinta, 06 Outubro 2011

Segurana-Capa158 A propósito da passagem de mais um aniversário da implantação da República e num ano especialmente dedicado a este tema devido à comemoração do seu centenário, éimportante dar visibilidade ao papel das mulheres republicanas. Esquecidas e muitas vezes diminuídas elas lutaram pela República, pelos ideais de liberdade, pela educação pública, pela participação política, pela dignidade e contra a exploração no trabalho. 

Artigo de Helena Pinto

Anna de Castro Osorio foi uma dessas mulheres, precursora de lutas ainda hoje actuais, visionária sobre o papel das mulheres. A sua escrita, envolve-nos e questiona-nos, a actualidade de muitos aspectos sobre os quais escreveu é extraordinária comparando com a situação actual do país e mesmo do mundo.
Convido os leitores e as leitoras de A Comuna a lerem este texto:

A propósito de uma greve
(Em Gouveia, no inverno de 1903)

Não obstante a quase geral indiferença da mulher do nosso país pelas questões sociais e de intelectualidade, tenho ainda confiança na alma feminina, tenho ainda esperança de que em breve, envergonhadas de tantos anos gastos em futilidades, voltarão a ser as dignas descendentes dessas mulheres portuguesas, que foram, entre as mais damas das cortes brilhantes da Renascença, das mais cultas e espirituosas, aliando às graças de espíritos educados a nobreza e a energia de verdadeiras patriotas.
Escrevo hoje para denunciar, aos seus corações de mulheres e de mães, uma dor que não roça pela epopeia, mas que na sua humildade é talvez mais aguda, que na rasteira obscuridade em que se gerou e cresce é talvez mais amarga para as almas criadas, como as nossas, para a alegria e para o amor.
É dentro das nossas fronteiras, como quem diz em nossas casas, neste lindo pais que nos viu nascer, debaixo da carícia dulcida deste sol que nos agasalha e alegra, que essa miséria subsiste: - mulheres e crianças que se extenuam trabalhando, e não ganham, com o seu trabalho, o quanto lhe baste para matarem a fome.
Sabemos nós todas, as mulheres: - que não pertencemos à galeria das privilegiadas, que dispensam, por abundância de meios, conhecer e discutir o orçamento das suas casas – quanto se gasta em nossos lares modestos, comendo sem intemperança, vestindo sem luxo.
Pensemos, pois, o que seja trabalhar uma semana inteira e chegado o sábado encontrar entre os dedos, que o trabalho violento deformou, meia dúzia de vinténs, que mal chegam para um dia de fome.
É costume dizer-se para acalmar sensibilidades em sobressalto, que os pobres, habituados a comer mal, não fazem com isso sacrifício.
Certamente que uma mulher rude dos campos, de pequenina acostumada ao seu caldo de couves e ao feijão, com pão grosseiro por conduto, um bocado de porco pelas festas do ano e galinha quando há doença, passará admiravelmente sem fois-gras, ragouts, mayonaise, vol-au-vent e toda a algaravia saborosa e complicada da comida francesa, indispensável a paladares aguçados por estimulantes, a estômagos gastos e que jamais se encheram com verdadeira fome.
Concordo em que uma dessas sólidas camponesas felizes, que do amanho das suas terras tira o pão caseiro que seus rijos braços fabricaram numa nuvem de poeira e por suas mãos foi na pá atirado ao forno aquecido; que do leite das suas cabras tira o queijo saldado, que é um mino para os seus paladares deseducados; que das suas oliveiras tira a azeitona, que sabe curtir para a fartura do ano; concordo em que esta mulher se riria desrespeitosamente se à sua merenda chamassem lanche e em vez destas simples iguarias comidas à mão, lhe apresentassem um prato de porcelana fina com brioches e um bule de perfumoso chá.
Talvez deitasse o líquido fora cuidando que devia comer as folhas, e levasse os bolos para o folar das crianças.
Mas o que é certo é que bem poucos têm essa abundância, e que a maioria, principalmente aquelas que a industria apanhou na sua febril engrenagem e na oscilação das suas altas e baixas de trabalho; não têm esse bocado de pão grosseiro, nem esse saboroso queijo salgado…
Não comer manjares poderá ser justo, mas passar sem comer é intolerável.
Ninguém se habitua à desgraça e à dor; há no organismo humano uma revolta inata ao sofrimento, que nos faz chorar e estrebuchar a cada nova vergastada do destino.
Existem criatura resignadas e passivas, seres embrutecidos pela miséria ou fracos por temperamento e nos quais a revolta não explode; mas condensada em lágrimas ela há-de surgir um dia, quando os famintos, os miseráveis, os desprezados de todos os tempos vierem reclamar o seu quinhão de felicidade e de fartura.
Ninguém se habitua à dor, ninguém!, digo-vo-lo eu, que tenho olhado com mais curiosas piedade para os que em baixo sofrem e maldizem a vida, do que tenho invejado e admirado os que em cima cantam a sua glória e triunfo.
Pois bem, para debelar ou minorar o mal de que sofremos todos, os filhos duma sociedade que vive num perpétuo desequilíbrio de elementos económicos e morais, a missão da mulher, irmanada ao homem, libertada pela inteligência, pelo trabalho e pela educação, é bem clara! O dever impõe-se-lhe de maneira indiscutível e manda-a entrar resolutamente em acção.
Passaram, de todo, os tempos cavalheirescos. Presentemente ninguém se lembraria de nos exigir que arrancássemos das panóplias as espadas dos antepassados para armarmos os nossos filhos e mandá-los vencer qualquer soba indisciplinado e bravio…
O perigo não será menor nas lutas que hoje sustentam os nossos soldados; a porção de coragem necessária para tais campanhas, nos longínquos sertões ultramarinos, será a mesma ou mais talvez; mas a guerra deixou de ter para nós o mesmo sentido moral porque deixou de ter o imprevisto de duelo, em que era factor importante o valor e a força individual, para ser uma carnificina de que são executores certos os que melhores e mais numerosas armas apresentarem, os que dispuserem de mais conhecimentos e de mais dinheiro, tal como no comércio.
Quando as nações se digladiam hoje, escusamos de esperar milagres e prodígios dos homens; os mais fracos serão fatalmente esmagados, embora com eles esteja a simpatia das almas entusiastas, como aconteceu à desgraçada Polónia, à França enfraquecida pelo Império, à Grécia atolada na última decadência, e ao Transvaal apesar do epopeico heroísmo dos seus filhos. Embora como a Espanha espere muito do orgulho e da valentia dos seus soldados; como a China confie na incontável multidão dos seus habitantes, ou como a Rússia se iluda com a força fictícia do seu colossal território, povoado de analfabetos e de revoltados.
Tudo mudou com o tempo – ideias, costumes, maneiras de ver e de proceder. O que aos nossos olhos parece hoje razoável e justo, seria aos olhos de nossos avós o mais absurdo dos atentados ao senso comum, o mais completo desprezo pelas leis e convenções sociais.
E, como tudo mais, a missão da mulher mudou também. Já não é de passividade e resignações como dantes! Da espectadora indiferente passou a ser figurante; entrou definitivamente na luta – no trabalho de preparar a alegria e o sossego do dia de amanhã.
Não admira que assim seja porque, quando os campos de batalha são a própria sociedade em que vivemos e as armas são as ideias, a mulher tem o direito, mais, tem o dever de entrar na lide, e, ao lado do oprimido, do fraco, pugnar pela felicidade ou pela menor desgraça dos que sofrem.
No caso especialíssimo que me impulsiona agora, ainda mais justa é a nossa intervenção, por isso que são mulheres as que sofrem e reclamam uma migalha para a sua fome.
No direito de solidariedade que nos assiste temos o dever de pensar em que há centenas de famílias sem trabalho e que para essa terra sossegada e pitoresca nas abas da Estrela se mandam soldados quando se pede pão, se responde com ameaças, quando se desespera com fome.
Sem lume, sem fato, sem dinheiro, como se anuncia prenhe de desesperos e lutas para esses miseráveis que não pedem esmola e sim maior paga ao seu trabalho, o inverno que se aproxima cantando a tragédia das suas dores, nas ventanias que destelham casebres e arrancam árvores, nas chuvas que se despenham em torrentes engrossando os rios que regurgitam em cheias devastadoras, levando as sementeiras e trazendo a agonia nas dobras da sua mortalha de neve…
Não nos importa saber se é exequível a pretensão desses operários que usam do seu direito da greve para discutir com os patrões como combatentes legais, sofrendo heroicamente dias e semanas de fome, para obter um pequeno aumento, que já lhes parece fortunoso.
Não nos importa também saber se é atendível a defesa dos fabricantes de panos baratos, que dizem pagar miseravelmente aos operários porque miseráveis são os seus ganhos.
Não discutimos nem julgamos – que não nos compete fazê-lo – mas ainda menos duvidar da convicção e da justiça de um povo que se resigna a lutar tendo por armas a fome e o próprio sacrifício, únicas que lhes deixamos nas mãos.
O que simplesmente nos interessa é a questão feminina, que este incidente põe a descoberto. Foi pelo pequeno salário da operária que a greve se originou, é para obter uns míseros reais para elas que todos os proletários de Gouveia sustentam uma luta heróica, porque é heroísmo, e até loucura, entrar numa greve sem bolsas de trabalho, sem caixas de reserva, sem meio algum de luta e de resistência.
Não terão razão, essas pobres criaturas às quais se exige uma poucas de horas de trabalho, e às quais se dá em troca sessenta reis por dia?!... Talvez, mas pensemos em que são como nós mulheres, que pertencem, como nós, a um sexo que os homens chamam fraco e ao qual cercearam todos os meios de ganhar a vida – desde a falta de trabalho até à miséria da paga – excepto um que as inferioriza e torna desprezíveis aos seus próprios olhos!...
É pois dever nosso, daquelas a quem a educação deu um critério mais elevado, pensar nessa multidão de desgraçadas que a miséria e a ignorância predispõem para o crime e que, não tendo família nem homem que as sustente legalmente, por força hão-de procurar no erro o que o trabalho e a honestidade lhes não garante.
Enquanto indivíduos da nossa espécie se rebaixarem tanto, inferiorizamo-nos também reflexivamente, porque a mulher não será completamente liberta enquanto houver desgraçadas que se prostituem por miséria.
Outras, as que têm marido, e serão por certo a maior parte dessas operárias, precisam de auxiliar a família com o seu trabalho porque é pequeno o ganho do homem para as necessidades da família.
Pensemos nesta desgraça a remediar e se houver alguma dentre nós que encolha os ombros com indiferença, por superior e de diferenciação de sangue que se julgue; se houver coração de mãe, que se não confranja pensando em suas filhas; espírito tão privilegiadamente temperado que ouse escarnecer de tamanha desgraça; essas que me não leiam nem atendam, porque não é a elas que me dirijo, mas tão somente aquelas cujo espírito e cujo coração as superioriza e faz elementos civilizadores na sociedade.
É urgente que essas entrem na luta gigantesca contra a fome, a miséria e a ignorância das suas irmãs, mas não na luta de guerrilhas e surpresas que por ai vamos vendo, ora obedecendo à bondade individual de uns, ora ao capricho da moda, ora ao desejo de ter o seu nome reclamado.
O que primeiro há a fazer é a junção de todas as vontades e de todos os esforços para um fim único e comum.
É urgente, sobretudo, reclamar uma ou mais creches para cada terra onde a mulher tenha eu trabalhar fora de casa, deixando os filhos pela rua, ou fechados e sujeitos a mil eventualidades, entregues a quem dessa maneira explora a miséria das mães.
Creches que não sejam filhas da caridade, nem entregues a ignorantes, sujeitas a vaidades e caprichos, às altas e baixas do flutuante coração humano, mas creches ordenadas por lei, obrigatórias a todas as terras industriais, sujeitas a inspecção rigorosa, com rendimento tirado da própria industria que emprega a mulher. Em França há uma lei que obriga todas as indústrias que empregam mais de vinte mulheres a ter uma creche para as suas operárias entregarem os filhos durante as horas de trabalho; em Portugal nada temos que se compare com isso; os governos não fizeram ainda as leis e os governados não lhes compreenderiam o alcance.
Depois da creche, que é a mais necessária das instituições numa população operária, deve seguir-se a escola maternal, onde a criancita, que já não é admitida na primeira, se conserva até aos seis anos, em que entrará para a escola gratuita, com livros de graça, oficinas e professores que saibam ensinar pobres seres que nas famílias não têm quem os norteie no caminho do estudo e do dever.
A criança apanhada nesta verdadeira engrenagem social, deixará de ser o vadio, o atrevido garoto que povoa as ruas das cidades operárias, para se tornar uma pequena criatura que se prepara com serenidade para a travessia dolorosa da existência, com as suas lágrimas e as suas alegrias compensadoras.
Que a mulher possa contar com a maternidade, a casa onde passe descansada o último e custoso período da gravidez, para dali seguir para o hospital onde a esperam os cuidados prescritos pela higiene e o conforto que em casa não lhe seria fácil obter.
Enfim, há tudo a fazer neste sentido, desde a escola de criadas e donas de casa, até à caixa económica, obrigatória para as mulheres, que assim teriam, em caso de greve, doença, ou falta de trabalho, com que resistir algum tempo à fome.
Há pessoas que imaginam tudo resolver pelo estardalhaço festivo da chamada caridade, e o que é certo é que a caridade é muitas vezes uma exploração e quase sempre um meio impotente para defrontar a desgraça, sempre maior do que a generosidade individual.
Seja pois o esforço colectivo, cumprido como um dever, a base da nossa luta contra a miséria, e alguma coisa boa e profícua, estou certa, se conseguirá.
Às mulheres compete conjurar o perigo que ameaça a sociedade de hoje, remediando quanto possível as suas injustiças. À mulher culta e ciente da sua nobre missão cabe o primeiro lugar na empresa de cuidar um pouco no futuro do país e na melhoria social, acumulando para o porvir a maior soma de alegrias na maior soma de deveres cumpridos.
E o nosso dever é – parece-me bem – ouvir as queixas de todos os infelizes, principalmente das mulheres e das crianças, que são ainda hoje as maiores vítimas da sociedade.
Texto  de Anna de Castro Osorio, extraído do livro “Às mulheres portuguesas”, publicado em Lisboa pela Livraria Editora Viúva Tavares Cardoso em 1905.

5 de Outubro de 2011

 

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