Cuidados de saúde primários em risco Versão para impressão
Sexta, 16 Dezembro 2011

saude

CUIDADOS PRIMÁRIOS DE SAÚDE (CSP):

EM RISCO A UNIVERSALIDADE E A EQUIDADE NO ATENDIMENTO

A política de saúde está “completamente subjugada aos resultados ou ganhos financeiros e desinteressada dos resultados ou ganhos em saúde”, escreveu aqui João Semedo.

Nada mais certo. As mudanças em curso na organização dos cuidados de saúde primários (CSP) são disso prova. Neste domínio, as Unidades de Saúde Familiar (USF) são “cavalo de Tróia” da política da direita, entusiasticamente promovida por PS e PSD.

O PSD prossegue empenhadamente o caminho traçado pelo PS. Prova disso é o preâmbulo do recente despacho que constitui um grupo de trabalho para estudar o desenvolvimento dos CSP. Considera-se aí que o “processo de reforma iniciado em 2005 tem sido avaliado e apreciado positivamente, tanto a nível nacional como internacional.” Portanto “a sua continuidade constitui uma das prioridades do XIX Governo Constitucional.” Claro, como água.

Mas, afinal, o que é uma Unidade de Saúde Familiar (USF)?

A definição já vem de 1999: é uma “equipa multiprofissional, constituída por médicos, enfermeiros e profissionais administrativos” dirigida por um médico mais qualificado. Funciona com base numa contratualização dos objectivos a atingir, com carteiras de serviços mais ou menos alargadas.

Os profissionais agregam-se numa USF por sua própria iniciativa, em vários modelos, com autonomia e geometria variáveis.

Os membros das USF de modelos mais avançados ganharão tanto mais quanto mais “produzirem”. O que conta é atingir os “objectivos”, medidos por “indicadores”. Mais doentes, mais consultas, menos prescrição e menos exames complementares poderão dar melhores compensações financeiras ou de outra natureza; para a equipa e para cada um. O doente é um “cliente” e só nessa medida deverá ser bem atendido.

O que conta são os resultados… da política do governo.

No chamado modelo C das USF, poderão mesmo vir a ser organizações privadas a assumir o cumprimento desses objectivos. As Misericórdias e os grupos privados já salivam pelo “negócio”. A organização já está a ser preparada.

De facto, a desagregação e atomização de mais estruturas do SNS, com a privatização a estender-se aos CSP, está claramente no roteiro dos promotores das USF. A autonomia, tão gabada e apreciada pelos entusiastas destas estruturas, é afinal o meio caminho andado para a autonomia total --- no sector privado.

Promove-se a desestruturação do Serviço Nacional de Saúde, introduzindo uma dinâmica de competitividade. Alguns profissionais promovem USF´s, outros são apenas convidados, outros ainda ficam de fora…

Por trabalho igual, os profissionais de saúde que ficam de fora das USF ou integrem uma USF modelo A recebem menos do que colegas integrados numa USF de outro modelo. Uma iniquidade e uma confusão potencialmente conflitual que inquina locais de trabalho e destrói laços de solidariedade profissional, especialmente necessários nesta área.

Paralelamente, criam-se diversos estatutos para os utentes do Serviço Nacional de Saúde. Alguns utentes terão acesso a um nível de cuidados de saúde superiores aos de outros, pois se forem atendidos por uma USF terão sempre médico e enfermeiro de família.

Enquanto isso, mesmo ao lado, milhares de utentes atendidos noutras estruturas dos Centro de Saúde continuam sem médico de família. Vão para as listas de espera do “recurso” e dificilmente encontram um enfermeiro que os trate. São estes que diariamente engrossam as filas, de madrugada, à porta de muitos Centros de Saúde.

O princípio da universalidade e da equidade do atendimento é assumidamente abandonado.

O atendimento nas USF é, acima de tudo, marcado pela necessidade de atingir os objectivos. Todas as operações são detalhadamente registadas, pois umas “valem” mais do que outras. Seguir uma grávida, por exemplo, “vale mais” do que fazer um domicílio. E fazer um domicílio “vale mais” do que uma consulta nas instalações do serviço.

Todo o desempenho dos profissionais é marcado por esta pressão e este controlo. É natural que quem assim trabalha olhe mais para o ecrãs do computador do que para o doente… Afinal, trata-se de (quase) trabalhar á peça. Só que “a peça” é, neste caso, uma pessoa que, como tal, deveria --- deverá --- ser atendida, numa perspectiva holística e ética.

Para os utentes, acolhidos em novas instalações, mais modernas --- não tem faltado dinheiro para promover as USF… --- o serviço parece melhorar. Até começarem a ser vítimas de subtis cortes na prescrição dos medicamentos e dos meios auxiliares de diagnóstico. Ou até começarem a encontrar sistematicamente clínicos mais atentos ao computador do que ao doente, durante os escassos 15 minutos que, no máximo, durará uma consulta de medicina geral e familiar.

A política da direita para a saúde é multifacetada. A promoção das USF é uma dessas faces, curiosamente a que até agora tem passado de forma quase consensual.

Mas, nem por isso é a menos perigosa. Ou não atinja ela um dos pilares essenciais do Sistema Nacional de Saúde, os Cuidados de Saúde Primários (CSP).

Carlos Matias

 

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