Arrastado no turbilhão propagandista do SNI, o Ribatejo cedo viu uma das personagens do seu universo vivencial, o campino, ser elevado a símbolo do homem ribatejano, num processo de sublimação mítica que o virá a tornar, gradualmente, arquétipo nacionalista do cavaleiro português de antanho. Com o tempo, a decorrente misoginia veio a reduzir o Ribatejo a terra de campinos. Olvidando e desvalorizando outros grupos sociais, aliás, bem mais marcantes. Tanto laborais, como os “camponeses”, como de género, à semelhança das “campinas”! Como contraponto a esta utilização exacerbada do “mito do campino”, a mulher do Ribatejo virá a ser vista, tradicionalmente, como particularmente submissa e pouco afirmativa! É isso que transparece de diversas obras mais ou menos ficcionadas e, inclusive, dos escritos neo-realistas que, de uma forma ou doutra, se debruçaram sobre esta Região. Assim se criou o equívoco! Equívoco que se pretende desmistificar, dando voz às mulheres ribatejanas e analisando o seu papel e estatuto nas actividades tradicionais, lúdicas e laborais.
Naturalmente, tal realidade está, hoje, em grande parte já passada, ou pelo menos ultrapassada, pela dinâmica cultural em mudança. As suas influências são, contudo, ainda visíveis. Em caracteres e temperamentos, maneiras de ser e de estar, que marcam as configurações psico-sociais das mulheres desta Região. Afinal, as culturas não desaparecem por evolução, apenas se transformam. E, mesmo que estas (pela acção continuada da mudança) pareçam, num dado momento, constituir já uma outra realidade, não deixam de ser, afinal, um complexo de elementos e padrões em que as raízes ancestrais, de uma forma ou doutra, estão sempre presentes.
Não obstante, e ao invés do que emana da literatura regionalista, elevadora do homem ao estatuto de arquétipo regional (feito de virtudes várias e olvidados defeitos), poder-se-á dizer que a mulher ocupa, no Ribatejo (pese embora a dominante familiar masculina), uma posição significativamente menos subordinada que noutras zonas do território nacional! Aqui, o papel da mulher camponesa (da campina principalmente) é mais marcante, tanto social como profissionalmente, e emerge das brumas de uma história local e regional (em grande parte por fazer), como reivindicando, claramente, uma maior autonomia! Mostrando-se, por exemplo, disposta a liderar causas sociais e comunitárias diversas.
Não é assim de admirar que não fossem raros, aqui, os casos de viúvas que mantinham com o seu trabalho a família, ocupando deste modo o lugar que, em muitas zonas do país, é quase exclusivo dos homens. É a liberalidade, que os imperativos socio-profissionais impõem, que lhes confere uma autonomia muito peculiar. Expressas quantas vezes na defesa teimosa da opção sentimental (são frequentes os casos em que a oposição dos pais foi insuficiente para obstar ao casamento indesejado), na crítica ao despesismo ou alcoolismo do pai ou marido, na afirmação das suas especiais capacidades laborais ou lúdicas.
Nestas, como as danças e nos cantares, o seu papel surge significativamente valorizado! Tanto nas desgarradas (competições de improviso poético extremamente populares), como até em certas danças mais competitivas como o bailarico ou o fandango, parte considerável das rivalidades locais, explícitas ou implícitas, eram (ao contrário do que se pensou e disse durante décadas), expressas, sim, numa perspectiva homem/mulher!
De tudo isto, emergem famílias cujos papéis sofrem, naturalmente, alterações significativas. Não só, como dissemos, no que respeita às mulheres mas, igualmente, aos jovens (rapazes e raparigas), que auferem salários autónomos, facilmente mensuráveis e, às vezes, quase ou tão elevados como os do chefe de família. Afinal, constituindo o universo laboral um mercado semanal, a jorna dependia da relação oferta/ procura. Se o trabalho era escasso, os preços desciam, alguns ficavam sem trabalho e a diferença salarial entre sexos tendia a crescer. Se o trabalho era muito, o preço subia e o trabalho feminino adquiria maior importância. Então, os salários tendiam a aproximar-se em valor. Tal situação laboral, valorizará, claramente, o seu estatuto e marcará, profundamente, o seu carácter, criando estruturas mentais substancialmente diferentes doutras regiões do País. Pessoas mais afirmativas e teimosas, ostensivas e algo vaidosas, necessitadas que estavam de manter os seus níveis de auto-estima sempre elevados. Porque, só trabalhando duramente e valorizando sistematicamente esse trabalho através da auto-afirmação, se podia ter a “certeza” de arranjar trabalho todas as semanas e, por um preço minimamente adequado.
A psicologia social é aqui, deste modo, dualista e determinista. O auto-elogio público e ostensivo, imprescindível lugar-comum. Surgem, assim, atitudes de incorrigível ostentação (algumas vezes a raiar a bravata), como mecanismo indispensável de afirmação laboral e, concomitantemente, social. Aqui, cada um é visto, em grande parte, como alguém que a si próprio se fez!
Trabalhadoras jornaleiras, como os homens, as mulheres tinham a sua praça todas as semanas, onde iam vender, igualmente, a sua força de trabalho. Aí, discutiam preços e condições com capatazes e proprietários. Daí, saíam para trabalhar, afastadas dos maridos, às vezes por dezenas de quilómetros. Labutando, toda a semana, lado a lado com outras mulheres (ou, até, com mulheres e homens) de localidades vizinhas. Algumas, aliás, eram capatazas, habituadas a comandar grupos de trabalhadoras, servindo de porta-voz perante o feitor ou o proprietário, reivindicando remunerações ou condições de trabalho. Líderes, afinal!
Tem sido, portanto, esta Região, berço de um importante equívoco social, expresso numa errónea compreensão das suas matrizes culturais. Equívoco que, paradoxalmente, tem perpassado as últimas décadas sem significativas alterações! Não existe, aqui, uma inversão social, com certeza. O homem continua a ser o chefe de família e a exprimir, de forma muitas vezes pública e violenta, esse estatuto. Mas a relação com a mulher e os filhos sofre de inegáveis caracteres subversivos, expressos familiar e comunitariamente. Digamos que a imposição dessa liderança é, neste caso, aceite menos pacificamente. O come e cala de tantas outras zonas do país é aqui, diversas vezes, substituído pelo, mais problemático, come, …e não cala!
São as mulheres do campo; de opiniões firmes e decididas que não mandavam dizer por ninguém o que tinham a dizer. Camponesas morenas de corpo robusto e pêlo na venta, de sonoras gargalhadas e língua afiada, temperadas da geada e do calor da lezíria. Participantes, pouco discretas, de um universo laboral particularmente duro, instável e, principalmente, competitivo!
Aurélio Lopes
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