Sonho, música, acção! Versão para impressão
Quarta, 01 Fevereiro 2012
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Insatisfação

A música é a arte da insatisfação. Mas ao mesmo tempo a música mente, porque promete satisfazer o que não pode. Um belo acorde e... puf!, já passou. Porque a música é a arte do tempo. O seu domínio é o tempo, mas a música nunca o domina completamente. Insatisfeitos, procuramos nela a satisfação impossível. Inquietos, procuramos nela um conforto. Como uma canção de embalar: “Dorme meu menino, a estrela de alba, já a procurei e não a vi” (Zeca Afonso). Ou uma canção de lamento, porque quem canta seus males espanta, diz-se. Pode ser um blues. Pode ser um fado. Pode ser um samba. Ou uma canção de protesto, que é quando a canção de lamento se levanta.

 

Empurrar o tempo

“Cantar é empurrar o tempo ao encontro das cidades futuras”, escreveu Carlos de Oliveira num belo poema de 1945. Nesse verso estão duas qualidades da música: ela “empurra” o tempo, e empurra-o para qualquer coisa futura. Utopia?

Sim, a música tem a qualidade utópica do ainda não realizado, do sempre ainda não realizado, do “ainda não” (Ernst Bloch). Um porvir que está presente, mas tão fugaz que... puf! Fica só uma estrela onde brilha a transformação do mundo, uma hipótese de acção, uma curta iluminação. Mas não se pode parar a música naquele “frame”, como no vídeo. Ela continua.

 

Repeat e a melodia futura

Esperamos então conforto das canções. Repetimos, pomos o leitor de CD no “repeat”. Ligamos o rádio numa estação nostálgica (não são quase todas?). Vamos à discoteca reconhecer canções. Reconhecer, repetir. E então vêm muitas canções à cabeça, todas as que reconhecemos, com que nos identificamos ou que nos identificam. Usamos então a música como identidade. Talvez até cantemos interiormente, e isso nos console. Mas a música tem outra qualidade que aponta para fora, para o outro, para o que não sabemos, para o que desconhecemos. Para uma emancipação que tememos, porque não sabemos os contornos dessa melodia futura. E talvez não a saibamos reconhecer no agudo presente.

 

História a menos e história a mais

A mania do revivalismo inunda actualmente a rádio, a internet, a televisão, os concertos (outra vez os Pink Floyd tocados por não sei quem, outra vez os Doors mas com um sósia do Jim Morrison, outra vez os Genesis, mas só um ou dois, outra vez os êxitos kitsch de sempre). E na música clássica, a própria recriação é a base. Ou melhor, passou a ser, desde que os românticos foram “ressuscitar” Bach. A música clássica parece viver da repetição. O que importa são as diferentes interpretações da mesma sinfonia. A pop repete de outra maneira, cortando e colando o já feito sob a aparência do novo. Mas é isso um problema? Aparentemente, não. Trata-se apenas de conhecer a história. É importante conhecer a história. Sem conhecer e rebuscar na história levantando e resgatando o que ficou enterrado pelas tiranias (do Estado, do mercado) não há presente transformador, só um “eterno presente”. Mas levemos a sério o aviso de Nietzsche, numa das suas “considerações intempestivas”, contra os perigos de história a mais. É aquele cheiro a mofo de quem carrega muitos e pesados livros de história. É o historiador monumental ou conservador, que tem uma fixação no passado. Ele põe nostálgico o dedo no pó dos monumentos mas esqueceu a acção.

 

Insubmissa

“Na sociedade burguesa, o passado domina o presente”, escreviam Marx e Engels no “Manifesto do partido comunista”. Talvez seja preciso pôr as coisas doutra maneira, inverter essa dominação, colocar a urgência de transformação do presente no sentido da defesa e partilha do que tem de ser comum – porque só há liberdade a sério “quando pertencer ao povo o que o povo produzir” (a canção chama-se “Liberdade”, é do Sérgio Godinho). E esquecer apenas o suficiente para lembrar outras coisas que ficaram esquecidas. O quê? A possibilidade de uma música insubmissa e irreverente: um conjunto de “fazeres” que rompessem de algum modo com os ditames do lucro e do juro, que não deixassem normalizar a escuta (palas nos olhos, palas nos ouvidos), nem servissem a simples reprodução e enfeite de um mundo dominado. Música-acção com novos meios de produção colectiva, difusão e partilha, é certo. Música testemunho das opressões, angústias e contradições do presente mas também das bifurcações possíveis e da luta a fazer. Há outra opção, ao contrário do que nos dizem para nos obrigar a seguir os mesmos carris da servidão.

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Memória que age

A música do presente, se não se deixar dominar pelo passado, pode ser memória actuante (não há música sem memória). Pode ser testemunho contemporâneo para as forças emancipatórias futuras. E pode mais: pode indicar caminhos para transformar a tal “insatisfação” em revolução. Essa música não se decreta, nem terá sempre uma “mensagem” clara. Terá de ser produzida, partilhada, tocada, cantada, discutida (sim, a música discute-se) e ouvida por ouvidos novos e mãos capazes de pensar. Certamente não será música usada para torturar, como sabemos hoje que aconteceu em Guantánamo. Certamente não será música-pílula para adormecer nem música conformista e restauracionista que recupera qualquer êxito reaccionário para voltar a olear a mesma máquina. Que não será a música de Estado e de mercado para enfeitar os poderes. Que não será música para nos “ambientarmos” ao capitalismo podre, mas qualquer coisa de mais decisivo, que ajude a derrubá-lo. Música que recria espaços novos de insubmissão e reactiva a ideia de igualdade. A música já mostrou que pode participar até directa e activamente na luta contra todas as formas de racismo, contra as tentativas de isolamento dos trabalhadores e pode assim dar expressão às aspirações dos produtores da terra inteira.

 

Não é assim

Por exemplo os operários ingleses do século XIX cantavam juntos canções enquanto bebiam e comiam. À noite, entre convívios e reuniões políticas, faziam música participativa e internacionalista que não servia para obedecer nem dominar, nem era apenas para entreter (mais importante era estarem juntos). Isso não era um detalhe para ornamentar a sua vida difícil. Era parte essencial da solidariedade, constituía parte da sua emancipação e punha em causa todo um sistema, num gesto simples. Por vezes com palavras que o patrão não poderia entender. O capital tenta hoje (de formas novas ou muito antigas) separar os trabalhadores e uni-los apenas no fabrico da sua própria dominação, que não é apenas dominação “económica”, mas também empobrecimento dos sentidos. Pode não ser assim. “Não é assim!”, poderia dizer a música nas entrelinhas, sempre tão prática mas tão fugaz que tem de ser apanhada em vôo. Tantas vezes portadora de uma activa esperança e de horizontes novos. Se for produzida de maneiras que quebrem o jugo do mercado e dos seus “gestores”, se for partilhada por gente no sentido da libertação comum e da igualdade, se for portadora daquela energia utópica indispensável para não desistir. Procuremos essas músicas, partilhando, escutando, criando, assobiando à vontade. Para não continuarmos a dançar às ordens dos novos lobos e dos velhos reis, e a fazer orelhas moucas ao mundo insatisfeito que se levanta, que outra e outra vez se organiza e luta dia-a-dia. Que faz da acção uma irmã do sonho.

Pedro Rodrigues

(artigo também publicado em A Comuna nr 28)