Marx novelista |
Sábado, 25 Fevereiro 2012 | |||
«Escorpião e Félix» (1), livro publicado por Karl Marx na sua juventude, é razoavelmente desconhecido e, quando não, insistentemente ignorado por não se inserir no quadro da ortodoxia, quer política quer ideológica, que se apoderou da obra do Mouro. Escorpião provoca, de facto, numa primeira abordagem, incredulidade e depois perplexidade. Mas se a quisermos olhar sem preconceito, ela torna-se na chave de um escaninho onde podemos encontrar a raiz do estilo (o estilo é o homem, KM; e também a própria obra) ou seja, até certo ponto, a raiz da totalidade da obra de Karl Marx nomeadamente de «O Capital». «Escorpião e Félix» começa exactamente no capítulo 10 do «livro primeiro» de um livro único de 36 páginas dividido em capítulos numerados aleatoriamente, excepto os que não existem, referidos apesar da sua inexistência, com o arbítrio no centro da narrativa, o desconchavo como objectivo, a paródia em tom solenemente irónico, sardónico mesmo. Como se KM já adivinhasse os suplícios que o próprio Capital iria sofrer quanto à sequência dos capítulos e sua troca por vários editores para melhor abordagem inicial, as interpretações e explicações da sua estrutura e organização levadas a cabo pelos mais eruditos e profundos pensadores a começar pelo próprio Engels. (Marx, ele próprio, sempre achou que os leitores deviam logo confrontar-se com o que se chamou a complexidade da obra). O maior pensador do movimento revolucionário moderno, o cientista que nos legou uma lei que interpreta o processo histórico da humanidade; a crítica da «economia política» - a ciência económica da burguesia - contrapondo-lhe a economia socialista; que levou a cabo a investigação mais profunda do âmago e do funcionamento do capitalismo, desvendando o segredo do seu desenvolvimento permitindo compreender como a liberdade do proletariado para vender a sua força de trabalho é a sua própria prisão e, talvez mais que tudo, deu expressão ao que nenhuma abordagem empírica podia conseguir, o custo humano da exploração e da alienação - tinha desde bem cedo traçado a linha que havia de o guiar toda a vida: Karl, ainda no seu tempo de liceu (1835) em Trier (Renânia alemã) deixara bem claro o que queria: «A directiva principal que nos tem de guiar na escolha de uma profissão é o bem da humanidade, a nossa própria realização. (…) A natureza do homem está estabelecida de tal modo que ele só pode alcançar o seu aperfeiçoamento se agir para a realização, para o bem dos seus contemporâneos. (…) Se escolhermos uma profissão em que possamos trabalhar ao máximo pela humanidade (…) a nossa felicidade pertencerá a milhões». Mas isso não o impediu, durante os primeiros anos da sua juventude, mal se viu longe da vigilância paterna, quando foi para Bona estudar Direito, de adoptar intensamente a vida boémia que escorria do «Clube da Taberna». Foi ferido em duelo à pistola. Atravessou Colónia em cima de um burro (quem sabe se ajaezado à andaluza) provavelmente bêbado, ele!! não o burro, e escreveu dezenas de arrebatados poemas de amor sem limites pela sua Jenny («meu doce veneno» ao que ela retorquia «meu querido javali»). Mas ele seria, depois de a família se ter constituído, para todo o sempre o Mouro; e Engels era chamado pela família Marx «o General». «A racionalização idealista dos sentimentos», como viria a dizer na carta ao pai a quem respeitava escrupulosamente, a quem obedecia em última instância, conseguindo todavia aquilo que é o escopo dos jovens em geral: conciliar, com mais ou menos equilíbrio, a necessidade de responder ao anseio mais profundo de encontrar e perseguir uma vocação, o objectivo de vida que determinara, com o abuso até ao quase esgotamento – bem à medida dos grandes poetas e artistas da época - de toda a sua vitalidade na aventura, sem restrições, da vida desregrada ou, melhor será dizê-lo, com outras regras. De Bona viu-se obrigado a seguir para Berlim por determinação paterna preocupado com o sucesso da sua carreira profissional. Aí entrou para o «Clube dos Doutores» onde, como o nome indica, e naqueles tempos era a sério, havia outra contenção na boémia, mas muito pouca, felizmente, na reflexão e na polémica filosófica e científica. É então nesta fase que Marx sente o impulso lírico, sentimental, idealista donde nascem os poemas de amor para Jenny e, entre outros, o livro que nos trás hoje aqui, pela iniciativa feliz e oportuna de José Viale Moutinho que faz a sua apresentação: «Escorpião e Félix» escrito em 1837. Em «Carta ao Pai», que encerra a edição a que nos referimos, poucos meses antes do falecimento daquele, faz o balanço do seu trabalho, e marca a sua decisão de não se dedicar às letras. Promessa não rigorosamente cumprida, se tivermos em conta o que ele próprio virá a achar sobre o Capital. Karl Marx, na referida carta ao pai caracteriza a novela humorística como um texto onde «o idealismo penetra mediante humor forçado» e, referindo-se a outra incursão sua na literatura, «Oulamen», «mediante drama fantástico, fracassado». E confessa: «até que se transforma, finalmente, de modo pleno, em uma arte formal pura, na maioria das partes, sem objectos estimulantes, sem dinâmica tempestuosa de ideias». A mim, ao lê-lo, senti-me no mundo de Mikhail Bulgakov («Marguerita e o Mestre»); de Boris Vian e do seu heterónimo Vernon Sulivan; do Aragon do «Tratado de Estilo», antes de ter sido deglutido pela voracidade atroz da ideologia chamada comunista («O som da metralhadora acrescenta à paisagem/ Uma alegria até então desconhecida/ Estão a executar médicos e engenheiros/ Morte aos que ameaçam as conquistas de Outubro/ Morte aos sabotadores do Plano Quinquenal» in «Front Rouge») O mesmo aconteceu, aliás, com Henry Barbusse considerado o escritor com maior influência na transformação das letras francesas que vai de «Jesus»(2),uma sublime viagem materialista do símbolo supremo do idealismo pelo mundo, para «Stalin, O Mundo Novo visto através do Homem»(3), que, para mim, quando o li, já lá vão uns bons vinte anos, foi o primeiro sinal de alerta: que homem seria aquele que desencadeava uma tão miserável adulação e não mandava o sabujo de imediato para a Sibéria?!!!!; a propósito lembro a excelente peça do catalão Juan Mayorga, «Cartas de Amor a Stalin»,(ler aqui http://www.uned.es/centro-investigacion-SELITEN@T/pdf/emayorga.pdf ) onde Bulgakov se interroga interrogando um Stalin omnipresente, ou apenas o seu espectro respondendo à ânsia de Bulgakov, sobre a censura e o cerco que lhe é feito e à sua obra, desenvolvendo um diálogo absurdo que atinge a paranóia, balizado pela atracção fatal exercida pelo carrasco sobre a vítima: a estratégia da aranha de Stalin que leva as suas vítimas, incapazes de se libertarem da teia que ajudaram, aliás, a construir, a terem de concluir que são elas as verdadeiras causadoras e culpadas sem perdão do mal que as atinge. Voltando ao Homem e à sua obra: será mesmo humor forçado como ele conta ao pai? Teremos que concordar que a espontaneidade torrencial, a arbitrariedade e o absurdo de mãos dadas, a irracionalidade triunfante, o divertimento a que Marx dá ironicamente uma tonalidade solene, o cómico jogo de palavras com que explica «cientificamente» a origem e profissão de Merten, a alegria com que mergulha no absurdo, são algo a que não podemos deixar de atribuir, não um significado, porque isso seria trair o autor e pormo-nos a interpretar, mas uma pulsão interior, a necessidade de confrontar o rigor que forçosamente correspondia ao escopo que ele próprio assumira como razão única da sua vida, lado a lado com a sua absolutamente libertária inteligência criadora em confronto audacioso com a acutilância do seu olhar para o real como medida de todas as coisas. Ou seja a estrutura essencial da modernidade. «Escorpião e Félix» dá-nos um sinal. Um sinal importante porque nos vai levar a um olhar diferente sobre a própria vida de Marx e sobre a sua obra, particularmente «O Capital». No terreno do humor e da ironia, Marx era admirador de Sterne, mas ainda mais do irlandês Swift , o grande mestre da sátira (mestre do ódio, como lhe chama um George Steiner moralista em conversa com Lobo Antunes?) de quem comprou a obra toda. (Swift como é sabido, com a sua ironia cortante e demolidora, numa altura de fome arrasadora na Irlanda, provocada pela política do domínio inglês, aconselhou os irlandeses a comerem os filhos – matavam-se dois coelhos de uma cajadada: a fome presente e a vontade de comer futura… http://art-bin.com/art/omodest.html) Não será de todo improvável que venha daí, da admiração de Marx por Swift, a anedota(?) que o próprio Marx usou ironicamente, de que os comunistas comem criancinhas ao pequeno almoço. De qualquer modo não devemos deixar de olhar para Marx, desde os seus 17 anos até que foi sepultado humildemente com uma dezena de acompanhantes no cemitério londrino de Highgate, não apenas como o homem de ciência, como o filósofo, o historiador, - creio que o que menos lhe podemos chamar é economista - mas ainda como o jovem artista idealista e angustiado («que eu nunca possa empreender aquilo que me atormenta a alma e encontre o repouso, porque vivo atormentado», Juvenalia) que umas vezes refreava a sua mente galopante, pletórica de conhecimento e informação que a sua espantosa memória sustentava, e outras dava asas ao «cavalo de várias cores» que tinha dentro de si, deixando-se levar pelo paradoxo, pelo sarcasmo violento, pelo furor da polémica, ou então pela elegância e bonomia dos gestos, pela honestidade simples com que se reconciliava com amigos com quem tinha cortado, ou inimigos figadais como aconteceu , ao contrário da lenda persistente, com o próprio Bakunine por sua vez grande amigo do Wagner revolucionário populista e retrógrado mas revolucionário quand même , ver «A Arte e A Revolução»(4), com quem atravessou revoluções e sofreu perseguições e prisões. Bem, vamos agora entrar no terreno da heresia ou do sacrilégio, que é aquele em que melhor nos devemos sentir se quisermos dar atenção ao que foi considerado um dos biógrafos mais importantes e luminosos de Karl Marx, Francis Wheen, na biografia «Karl Marx» (5) considerado o melhor livro do ano de 1999 pela crítica especializada. Francis Wheen alerta-nos para a melhor leitura de O Capital, aquela de que poderemos tirar mais proveito: «como uma obra de ficção: um melodrama vitoriano (com Dickens à cabeça das referências: este senhor foi degolado mas a culpa não é minha é da faca – Oliver Twist) ou um denso romance gótico cujos heróis são escravizados e consumidos pelo monstro que criaram (lembro-me de «Metropolis» de Fritz Lang); ou talvez uma utopia satírica, de Swift. De «tudo o que é sólido se derrete no ar» como símbolo do processo de desenvolvimento capitalista, e que serve de título, aliás, a uma obra excelente de Marshall Berman e, não esquecer, a exposição da Colecção Berardo no ano passado, 2010!!! A aventura da modernidade. Deixando de lado o essencial, a modernidade capitalista desnudada por Marx em O Capital, o falso Eden que se cria à custa de reduzir os humanos à impotência e ao exílio. «O capital vem ao mundo conspurcado da cabeça aos pés e sangrando por todos os poros». «Tudo o que é realmente humano se torna congelado, ou cristalizado numa força material impessoal, enquanto os objectos inanimados ganham uma vida ameaçadora e vigorosa». Como refere Wheen, para fazer justiça à demente lógica do capitalismo, o texto de Marx está inundado de ironia e sarcasmo ao ponto de um crítico literário norte-americano o ter considerado o maior escritor satírico depois de Swift. Sempre o velho irlandês Jonhatan Swift atrás ou à frente dele. O absurdo que tantos críticos encontraram em O Capital, reflecte o absurdo do assunto e não de quem lhe faz a crítica. O Marx de «Escorpião e Félix» é o Marx de «O Capital», é o Marx da juventude e o Marx da maturidade. Num revolucionário comunista a contradição é a garantia e a segurança do progresso, na vida e nas ideias, que a acção prática se encarrega de traçar e impor. É o Marx de sempre, na sua esplendorosa versatilidade, na apaixonante capacidade de dar cabo do capital usando a sua própria lógica e a sua absurda ideologia. A genialidade com que demonstra a irracionalidade e o carácter anti-humano e criminoso primordial do capital, sem deixar de sublinhar a sua «necessidade» histórica e o seu papel no progresso da humanidade. Pela forma soberba como trata das coisas, da forma artística como se envolve com a ciência e como, sem ninguém ser capaz de lhe responder à altura (Karl Popper só satisfaz nessa matéria os neocons como Carlos Espada, José Manuel Fernandes ou Pacheco Pereira), escavaca o capital sem se preocupar com o que possam pensar de sua excelência a doutorice. Ei-lo recreando-se (exibindo-se, como diz Wheen que o cita) em torno de Lutero e da Reforma: «Destruiu a fé na autoridade restaurando a autoridade da fé. Transformou os padres em leigos transformando os leigos em padres. Libertou a humanidade da religiosidade externa tornando a religiosidade dona do homem interior. Libertou o corpo das correntes mas aprisionou o coração» Ou «Na França basta ser algo para querer ser tudo. Na Alemanha ninguém pode ser nada a não ser que renuncie a tudo. Na França a emancipação parcial é a base da emancipação universal. Na Alemanha a emancipação universal é a condição sine qua non da emancipação parcial» Não se tratará apenas de retórica inteligente, digo eu. Vejo nela dois dos constituintes do pensamento de Marx: o socialismo francês e a filosofia alemã. Falta o terceiro, a economia política inglesa; talvez porque a Inglaterra demasiado preocupada com o Império não estava ainda envolvida nas contradições geopolíticas que haviam de enrolar as duas grandes potências continentais. Para terminar, a dose já vai longa, aproveito ainda citações de o Capital colocadas à disposição por Francis Wheen, para abrir verdadeiramente o escaninho de que falei no início: «É verdade que a fabricação do casaco é um trabalho concreto, diferente da tecelagem que faz o linho. Mas equacionar a fabricação do casaco com a tecelagem reduz o primeiro ao que é realmente igual nestes dois tipos de trabalho, às características que têm em comum pelo facto de ambos constituírem trabalho humano…No entanto, o casaco em si, o aspecto físico do casaco-artigo, é puro valor de uso. Um tal casaco não exprime mais valor do que a primeira peça de linho com que deparamos. Assim como alguns homens contam mais quando metidos numa farda com galões dourados, isto prova que, na sua relação de valor com o linho, o casaco significa mais do que fora dessa relação. »(O Capital, vol I,pp 142-3) Ou «Apesar de abotoado, o linho reconhece nele [no casaco] uma alma gémea, a alma do valor. O casaco, contudo, não pode representar valor para o linho a não ser que, para este, o valor assuma simultaneamente a forma de um casaco. Por exemplo, um indivíduo, A, não pode ser “Sua Majestade” para outro indivíduo, B, a não ser que a majestade aos olhos de B assuma a forma física de A, e, além do mais, modifique as feições, o cabelo e muitas outras coisas com cada “novo pai do seu povo”…Como valor de uso, o linho é algo palpavelmente diferente do casaco: como valor é idêntico ao casaco e, por conseguinte, parece o casaco» E a conclusão: «O linho adquire, assim, uma forma de valor diferente da sua forma natural. A sua existência como valor é manifestada através da igualdade com o casaco, assim como a natureza de carneiro do cristão é revelada pela sua semelhança com o anho de Deus» Quem não encontra nestes textos a inspiração dos capítulos de «Escorpião e Félix», nomeadamente a demonstração através da evolução filológica do nome de Merten a partir da sua profissão de alfaiate piedosamente cristão? Enfim, Marx sempre disse a Engels, a propósito de alterações sugeridas por este nomeadamente quanto à dimensão dos capítulos, ou à necessidade de apressar a entrega de O Capital, que se tratava de uma obra de arte, antes de tudo o mais. Marx, encarnou o espírito livre, direi mesmo libertário tendo em conta a sua posição, em relação ao próprio Estado, que é o símbolo de toda a luta do proletariado. Para ele, como teve ocasião de dizer, a arte e os artistas só podem sê-lo na plenitude da liberdade. Marx é o maior inimigo da legião de aduladores e “ideologisadores” do seu pensamento, da sua obra. Para Marx, Prometeu (6) é «o primeiro santo, o primeiro mártir do calendário filosófico»(7). Mário Tomé 1) Arca das Letras 2) Flammarion, Fr. 3) L’Harmatan, Fr 4) Antígona 5) Bertrand Editora 6) Prometeu para Hermes: «Fica certo de que nunca eu desejaria trocar/Minha sorte miserável pela tua servidão/Porque prefiro mil vezes a prisão neste rochedo/Que ser de Zeus pai, fiel lacaio e mensageiro». (Ésquilo, Prometeu agrilhoado) 7) «Diferença entre a filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro» *Sobre apontamentos para uma palestra na Casa da Achada que fiz em 16 de Junho de 2011.
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A Comuna 33 e 34
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