Que partidos e que movimentos para a luta emancipatória? Versão para impressão
Sábado, 25 Fevereiro 2012

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No ciclo de conferências “Olha a Revolução!”(1), todos os painéis, menos este, têm a Revolução no nome. Esta diferença na pergunta é acertada: os partidos e os movimentos revolucionários têm um papel permanente na luta emancipatória.

Diziam Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista (1848), sobre a posição dos comunistas para com os diversos partidos oposicionistas: “Lutam para alcançar os fins e interesses imediatos da classe operária, mas no movimento presente representam simultaneamente o futuro do movimento”. Os partidos e movimentos revolucionários precisam, portanto, de uma coerência e de uma identidade. Ou, como escreveu Bensaïd, “o partido é o elemento da continuidade nas flutuações da consciência colectiva”. O que na prática significa que os partidos revolucionários lutam todos os dias pelos fins e interesses imediatos das exploradas e dos oprimidos, mas nunca traem o futuro da luta emancipatória.

Temos aqui já um primeiro princípio: a esquerda socialista luta para alcançar os fins e interesses imediatos das exploradas e dos oprimidos, mas no movimento presente representa simultaneamente o futuro do movimento.

É para (sublinho o para) preencher essa função da esquerda socialista que servem os partidos, como “organizadores dos diversos tempos”, “não no futuro simples mas no condicional” (Bensaïd).

Significa isto que os partidos existem para um fim, têm uma razão. E os movimentos também existem para um fim. Nenhum deles é um fim em si mesmo. Esta polémica marcou a história do movimento operário e o futuro dos partidos que se formaram a partir dele. A famosa afirmação de Bernstein – “o movimento é tudo, o objectivo não é nada” ficou até aos nossos dias como o grande sound bite deste debate em que Lenine teve uma participação fundamental.

Partidos e movimentos

A primeira distinção entre partidos políticos e movimentos sociais é a do seu conteúdo, ou dos fins que perseguem. Aos partidos cumpre a função da luta por um projecto abrangente, um programa político coerente que toca todas as esferas da política e por isso representa quer para a luta imediata, quer para o futuro, um projecto alternativo de poder. Os movimentos sociais lutam por causas sectoriais. E não há nenhuma menoridade nesta função sectorial. Os movimentos sociais são a forma que permite congregar no seu âmbito uma série de pessoas que em espírito unitário e não olhando a outras diferenças lutam por uma mesma causa. São movimentos sociais porque colectivos, em torno de interesses grupais ou classistas, e ainda que possam ser agremiações de interesses individuais, nunca são simples federações ou extensões de interesses particulares.

Alguns destes movimentos, em diferentes graus, transversalizam lutas, congregam as diversas causas emancipatórias. São ricas as experiências de luta em que o movimento feminista, o movimento ecologista, os movimentos de trabalhadores e os movimentos anti-guerra se encontram e reencontram em cada luta. Mas quando a abrangência do movimento passa do campo da reivindicação social particular para a necessidade de uma alternativa política, esse movimento político não pode assumir outra forma que a de partido político.

Todas as outras diferenças entre partidos e movimentos são sobre-determinadas por esta distinção fundamental nos fins. Incluindo a forma e a orgânica. Pode, no limite, haver uma quase identidade de princípios e objectivos, mas o fim do movimento social é fazer reivindicações junto do poder ou contra o poder. O partido, podendo e fazendo tudo isto, tem a função principal de disputar o poder, de querer ser poder.

A luta dos partidos revolucionários é uma luta de todos os dias e exige uma identidade. Pode parecer estranho falar em identidade. Mas quando os partidos pedem a confiança dos eleitores para lhe darem um mandato, com base num programa, esse programa é um contrato eleitoral. E quer na acção no âmbito do mandato eleitoral, quer em toda a acção do partido, o sujeito político que quer a confiança popular e que quer representar a vontade popular tem de ter uma cara, uma identidade. Precisam da coerência de uma identidade política, dinâmica como todas as identidades, mas uma identidade que merece a confiança popular.

Não se pode fazer manifestações de rua, com um milhão de pessoas contra a guerra, e a seguir estar num governo que manda tropas para o Afeganistão. Sabemos qual é o preço disso, e a Refundação Comunista italiana também. Passando de 41 deputados e 27 senadores para 0 deputados e 0 senadores, e isto numa lista unitária. Renunciando à sua identidade, destruíram um partido com grande influência social e a esquerda italiana empenha-se hoje na procura de um novo rumo depois de desperdiçados muitos anos de luta e acumulação de forças.

Nos avanços e recuos da táctica política do dia-a-dia, todo o pensamento estratégico sem a âncora da identidade andará à deriva, sem leme nem remo e a prazo, condenado a navegar a reboque de interesses alheios ou a afundar-se.

Partido de tipo novo

O Bloco de Esquerda é um partido de tipo novo. As cidadãs e os cidadãos e os movimentos políticos que o fundaram forjaram na luta política um partido de tipo novo. E tem identidade. Os próprios estatutos a definem.

É um partido socialista e anticapitalista que se inspira “nas contribuições convergentes de cidadãos, forças e movimentos que ao longo dos anos se comprometeram e comprometem com a defesa intransigente da liberdade e com a busca de alternativas ao capitalismo”. As suas características identitárias são estas: socialista, popular, ecologista, feminista, pluralista e de base antidogmática. É um partido que nasce para a política emancipatória, a defesa e o avanço das conquistas sociais, a luta contra o imperialismo e a guerra. Um partido unido para esse programa político e com essa identidade de luta. O seu pluralismo não admite nem deseja a fusão ideológica, seja a do monolitismo, seja a do próprio apagamento ideológico. O diálogo e o debate entre opiniões e experiências diversas enriquece a esquerda e fortalece-a para os seus combates.

Abordados genericamente os princípios e os objectivos dos partidos revolucionários e apresentadas as características identitárias do Bloco de Esquerda, importa determo-nos um pouco na questão da forma, do modelo de partido.

O partido operário

Conceito de partido nasce para o movimento operário com o primeiro documento do marxismo militante, o Manifesto do Partido Comunista (1848). Pela primeira vez, fala-se da necessidade de "organização dos proletários como classe e, portanto, como partido político". O partido revolucionário é um partido classista, são os trabalhadores erguidos em classe, ou seja, elevados a sujeito da luta política.

O Manifesto lança importantes questões a que visa responder. "Qual o relacionamento dos comunistas com os proletários em geral? Os comunistas não são um partido especial em relação aos demais partidos operários". Ora, esta citação que acabo de fazer lançou a confusão em muitos acérrimos defensores do posterior modelo dito leninista. Entendiam estes, anacronicamente, que o partido de que fala o título da obra era o mesmo e a mesma coisa que o partido único do país dos sovietes. Se fosse, esta frase só podia ser uma gralha, pois fala em partidos operários e não no Partido. Avança ainda o manifesto "Eles não têm interesses diferentes do proletário inteiro". E finalmente a distinção: "distinguem-se dos outros partidos por - destacar e pôr em relevo os interesses comuns nas diversas lutas nacionais; sempre defender os interesses do movimento global no decorrer das diversas fases do desenvolvimento que a luta entre o proletariado e a burguesia percorre". Continuando a citar, "os comunistas são a parte mais decidida que impulsiona para a frente os partidos operários. Em relação ao resto da massa do proletariado, eles têm a vantagem teórica". Conclusão: o partido que é referido no título do manifesto não é um partido-instituição, trata-se de um partido ideológico, teórico. Este partido ideológico tem como função a de elevar a consciência política dos operários de vanguarda.

No tempo do manifesto não havia “partido”, apenas movimento, corrente. Quando Marx fala de partido, fala de necessidade do partido político do proletariado, ele quer dizer que a classe operária tem de se lançar na luta política (consciência de classe para si) - de que forma concreta? Marx não sabia. À luz da sua concepção materialista, inventar formas futuras para a organização da classe operária era um exercício inútil. O que ele nos diz é que não há princípios pré-estabelecidos, as expressões teóricas não passam de expressões da luta de classes existente.

Do partido-teórico à formação de partidos

Marx teve a sua primeira experiência militante na Liga dos Comunistas (1847-1852). A derrota das Revoluções de 1848 (chamadas Primavera dos Povos) e a consequente repressão do movimento operário a Liga dos Comunistas entrou em crise e acabou por ser dissolvida. A 1ª Internacional (1864-1876) ainda não era formada por partidos. Era composta por sociedades mais ou menos secretas, sindicatos legais, grupos em tornos de indivíduos. Em 1871, o esmagamento da Comuna de Paris terminou com apelos à formação de partidos políticos da classe operária nos vários países, a primeira internacional entrou em declínio. Ficou como herança o início do que serão em cada país os futuros partidos operários.

O primeiro grande partido nasce com a ascensão económica da Alemanha. Uma das provas do sucesso da social-democracia alemã é a ilegalização das suas actividades de propaganda, entre 1879-1890, que nem por isso impedem o crescimento eleitoral. Anos antes, Engels já mostrava o seu entusiasmo com a via eleitoral: “As eleições demonstraram que nada temos a esperar da submissão (...). Só poderemos ganhar respeito e tornar-nos um poder pela resistência desafiadora”.

O centenário da Revolução Francesa deu lugar pretexto a dois congressos internacionais, um organizado pelos marxistas alemães (impossibilistas), outro pelos sindicalistas e reformistas ingleses e franceses (possibilistas). Do congresso dos “impossiblistas”, que marca as jornadas de luta que resultam no primeiro 1º de Maio internacional, viria a nascer a 2ª Internacional (1889–1904). Esta fica para a História como a Internacional da organização, especialmente após o Congresso de Londres de 1896, quando fixa que só fazem parte partidos políticos socialistas e trade unions. Que partidos eram estes?

1) Organizações de massas - visavam organizar o operariado, a classe toda. Todo o operário que se reconhecesse no programa, nos estatutos e pagasse a contribuição podia fazer parte. Nasce aqui o SPD, o partido "irreconciliável" com todos os outros.

Com predomínio absoluto dos operários na base, embora houvesse intelectuais como dirigentes. Isto variava de país para país. Na Alemanha, Inglaterra, países escandinavos havia operários nas lideranças (tradições de luta, sistema escolar), nos países do Sul era mais frequente as lideranças serem compostas por intelectuais e profissionais liberais.

2) Quase todos se formaram em torno de actividades eleitorais e parlamentares, que eram os instrumentos indicados para arregimentar a classe. A luta política era a luta em torno de leis destinadas a defender os interesses imediatos da classe operária no quadro da sociedade exploradora, segundo a ideia de que os partidos nascidos numa época não revolucionária, no fundo, só podiam lutar por reformas.

Um dos debates mais importantes da 2ª Internacional girou em torno na relação entre a reforma e a Revolução, que polarizou o seio desses partidos.

A direita reformista era representada por Bernstein, sintetizada na afirmação de que falámos há pouco: “ Para mim, o que geralmente se chama objectivo final do socialismo não é nada, mas o movimento é tudo”. Esta posição que via nas reformas um fim em si, resultava de um entusiasmo pelo parlamentarismo devido em parte à universalização do sufrágio eleitoral masculino e resultava na defesa do ministrialismo em governos burgueses.

Os sectários opunham-se por princípio às reformas, afirmando que estas tendem a conciliar os operários com o capitalismo, levantando obstáculos à luta revolucionária pela emancipação.

As alas esquerdas, mais marcadamente marxistas, representadas na Alemanha por Rosa Luxemburgo, recusam aquelas duas posições, encarando a luta pelas reformas como meio para mobilizar e organizar a classe, criando um ponto de partida mais favorável para o futuro assalto contra a sociedade capitalista. Em 1903 tem lugar um importante congresso da social-democracia alemã, o Congresso de Dresden: Bebel e Kautsky conseguiram manter a unidade do partido, aprovando uma resolução contra os revisionistas.

O sucesso da 2ª Internacional foi também o sucesso do tipo de partido que a compunha e a solidificação das ideias marxistas no interior da organização, ainda mais marcada quando estalou a primeira revolução russa em 1905. No entanto, os quadros históricos, económicos, sociais e políticos em que se desenvolviam as lutas dos partidos de Leste, sob os Impérios russo ou austro-húngaro, onde se exigiam revoluções contra as oligarquias, marcou clivagens profundas com os partidos ocidentais.

Lenine e o partido de vanguarda

As diferenças das condições de luta no leste e o avanço e o recuo do movimento operário, concretamente na Rússia, é que vão determinar os diferentes posicionamentos de Lenine sobre a forma-partido e as sucessivas polémicas dentro da social-democracia russa.

Lenine rompe com teses economicistas e passa a estudar o problema da relação entre a luta económico-corporativa dos operários e o processo de constituição de uma consciência revolucionária. O problema do partido ganha relevo. Consolida-se a ideia de que só o partido revolucionário poderia assegurar às lutas económicas uma saída política adequada.

A renovação do conceito de partido vem do leste e está patente em O que fazer? (Lenine, 1902): "partido de quadros", que surge nas condições particulares da luta de classes na Rússia Czarista. Em si, significava um rompimento frontal com a concepção de partido político, que tendia a abranger a classe operária toda.

Sujeito à forte repressão e clandestinidade, o proletariado russo, jovem, recém vindo do campo, ainda não tinha tradições de luta nem formas de organização próprias. A proximidade da revolução burguesa determinava que o partido tinha de liderar o operariado nessa revolução e garantir que a classe preenchesse o seu papel.

Cisão entre sociais-democratas e comunistas

Em 1914, a eclosão da Primeira Guerra Mundial determina a falência da II Internacional. Várias foram as razões que abriram caminho a este desfecho, mas os ziguezagues dos reformistas da social-democracia, primeiro nas questões coloniais e de imigração, e finalmente na questão da guerra foram determinantes para a perda de credibilidade e o fim da II Internacional.

Quando os ministerialistas social-democratas cedem à pressão social do belicismo e apoiam a guerra das suas burguesias traem os trabalhadores e os povos, enterrando o internacionalismo marxista. Nasce aqui a cisão entre os partidos sociais-democratas e os partidos comunistas.

O impulso aos partidos comunistas é dado pela revolução de Outubro de 1917. A revolução dos trabalhadores da Rússia debaixo da bandeira do “Paz, terra e pão” prestigia o partido bolchevique pelo seu papel na revolução e faz dele um exemplo para os partidos que se forma a partir das cisões comunistas um pouco por toda a Europa. São estes acontecimentos que abrem caminho à formação da III Internacional (1919-1936).

A concepção de partido defendida por Lenine nada tem a ver com a posterior cristalização de Zinoviev e Estaline. Como escreveu, sobre as falhas do dito “modelo”, o próprio Lenine (1921): “Ora, a menos que compreendamos este facto, não podemos avançar”. Em todos os partidos revolucionários, privilegiando o colectivo, ele tem limites, sob pena da estagnação política e teórica e de deriva para um pântano da auto-justificação. Mesmo sem as perseguições estalinistas, se abdicarmos do processo dialético de obtenção de maiorias, alimentando artificialmente o consenso que evita votações, em nome de uma suposta unidade, o partido perde a dinâmica e a capacidade de adaptação de agir como centro de saber e de instrumento à altura do desenvolvimento da luta de classes.

A crise e a necessidade de um partido

A consciência de classe é um reflexo da luta de classes no campo da política. O partido não é uma forma de organização entre outras, mas a forma específica sob a qual a luta de classes se inscreve no campo político. Esta ideia da especificidade da política reencontra-se na noção de crise revolucionária, consequência não de um simples movimento social, mas de uma "crise nacional", crise geral das relações recíprocas entre todas as classes.

A crise não é um movimento social que se aprofunda, mas uma crise política de dominação, do conjunto das relações sociais, cuja forma é uma "crise nacional": "quando os de cima já não podem, os de baixo já não querem, os do meio hesitam e podem balançar".

As crises nacionais podem transformar-se em processo revolucionário quando há um projecto e uma vontade política, uma alternativa - transportada pelo partido que não tem só função pedagógica nem é simples reflexo do movimento social, é uma peça central no dispositivo estratégico.

Em cada país e em diferentes graus, com destaque para a Grécia mas também para as primaveras árabes, as crises revolucionárias voltam a ser uma actualidade do debate. Essas crises têm um carácter eminentemente nacional, são lutas pelo direito à autodeterminação, pela democracia, contra a dominação imperialista dos credores, tendo por base a espontaneidade da indignação e do protesto.

Devemos retirar uma lição das revoltas árabes, nomeadamente do caso egípcio: as crises nacionais precisam de uma esquerda organizada, a direcção da saída para a crise será definida por alguém com organização e proposta. No Egipto, a Irmandade Muçulmana e o Exército estão a assumir esse papel, o vácuo de poder não dura, alguém com capacidade o preenche. Em toda a crise nacional é preciso esquerda organizada, se a esquerda quiser ter um papel determinante.

A afirmação de uma alternativa a partir das condições reais de luta, pela geração de relações de força favoráveis, tem uma dimensão principalmente popular. Só o povo faz revoluções. Cumpre aos partidos e movimentos mais avançados contribuir com propostas congregadoras de milhões de pessoas para fazer da força popular uma alternativa com futuro. Se o vácuo de poder não dura, a esquerda tem de estar armada não só com os slogans que geram as maiorias, mas também com um projecto agregador capaz de se substituir no poder às forças dominantes.

É com este quadro de análise que devemos olhar para os protestos dos movimentos dos indignados. Afastados no conteúdo e na forma dos movimentos sociais tradicionais, têm a força da espontaneidade e a capacidade de mobilização que daí decorre. Tendo neles o germe da consciência, só aprofundamento desta para além do espontaneísmo pode impedir que a defesa da liberdade não assuma a forma de desprezo pela democracia, tornando maioritária a ideia de que o protesto terá saída política na construção de uma alternativa não à democracia enquanto forma de poder, mas ao capitalismo enquanto sistema de dominação.

O contacto e a comunicação entre o partido e os movimentos, sem dominação do partido sobre estes, é absolutamente necessário. Proibir a participação de pessoas dos partidos nos movimentos é essencialmente antidemocrático. Os próprios partidos revolucionários deve ter a capacidade de atrair pelo seu programa os elementos mais conscientes, mais politizados dos movimentos, assim como os militantes dos partidos não podem estar alheados do movimento social. O contágio entre partido e movimentos é um processo natural e necessário.

Variáveis e constantes

Temos hoje na Europa cisões de partidos sociais-democratas, frequentemente sectores ligados ao sindicalismo, que recusam o desvio social-liberal. Não são revolucionários no sentido leninista, mas são de esquerda.

Estes partidos, assim como Bloco de Esquerda, nascem de uma tentativa de recomposição da esquerda. A queda do Muro de Berlim marcou um grande período de refluxo da esquerda. Se em muitos sectores da social-democracia se traduziu na sua viragem à direita, nos partidos herdeiros diferentes tradições comunistas, regra geral, significou uma cristalização dos partidos que se recusaram a superar os erros do socialismo real, quer na interpretação da degenerescência das revoluções socialistas, quer na própria forma de partido. Excepção a esta regra foram correntes que continuando a reclamar-se do marxismo, que se empenharam numa recomposição da esquerda ampla, plural e alternativa aos modelos falhados dos partidos sociais-democratas e do Komintern.
Era preciso uma forma nova de partido. Os partidos sociais-democratas de estrutura sindical (à excepção do PS, que nasce não ligado ao movimento operário mas às tradições republicanas e democráticas) degeneraram em gestores do capitalismo. Os partidos comunistas de estrutura militarizada degeneraram em gestores dos sindicatos e outros movimentos sociais que controlam.

Lenine não defendeu um tipo de partido, mas uma teoria e prática evolutivas sobre as características da vanguarda organizada. Nessas concepções há constantes e variáveis, tendências que se mantêm actuais e alterações impostas pela vida.

A fusão orgânica entre a teoria e o movimento; a alteração enlace profissional entre os intelectuais pequeno-burgueses e operários; a multiplicação e proletarização dos intelectuais; a formação superior e a especialização dos proletários imposta pelo desenvolvimento do capitalismo e que deixa com mais tempo útil para a militância; a generalização da democracia que colectivizou a participação pública, levaram a alterações que conduzem a uma exigência democrática que nos afasta do tempo de Lenine:

O carácter classista do partido mantém-se, mas afirma-se o pluralismo de ideias,

- respeito pelas decisões maioritárias que não invalida direito de tendência;

- sem disciplina de acção organizativa;

- autonomia das organizações;

- escolhas nominais por voto secreto;

- solidariedade política dos eleitos;

- autonomia dos movimentos sociais;

- igualdade de género;

- a recusa do centralismo democrático

O princípio de que o movimento operário espontaneamente não gera uma teoria revolucionária sem contacto com a teoria mantém-se actual. A forma de o concretizar varia. Mas ser pluralista e defender a geometria variável não faz de um partido uma mera coligação de interesses e candidatos. Não é uma agência de promoção individual, tem programa, estrutura, mecanismos democráticos.

Hoje não é possível pensar, no enquadramento global, um partido que se reclame do socialismo sem ser abertamente democrático, participado, disputado, originando-se, promovendo-se e reforçando-se na discussão democrática horizontalizada, sendo dessa forma que se formam por maioria as decisões.

Só um partido que aceite minorias, várias visões do socialismo, que promova a discussão e a democracia e não se encavalite em cima da presunção de um comité central, pode abrir-se à sociedade e atrair para si mais pessoas.

Os partidos podem variar nas suas formas de organização mas a ideologia de um partido socialista tem que ser sempre a de classe. É a defesa dos explorados, o objectivo do socialismo, e, inevitavelmente, a luta anti-capitalista e anti-imperialista que definem o partido de classe.

A escolha entre ser um partido de vanguarda e um partido de massas não existe hoje. O que interessa é ser um partido com amplo apoio popular, um partido de massas. Quanto mais gente tiver, maior a vanguarda.

Da mesma forma, é hoje uma falsa questão o velho binómio entre o partido revolucionário e o partido eleitoral. Isso hoje não existe. Há uma diferença entre ser um partido que participa nas instituições democráticas e ser um partido do sistema. Grupos de agitação podem refugiar-se como partidos revolucionários mas se tivessem aceitação teriam resultados eleitorais.

Que partido para as lutas emancipatórias? A forma de partido varia, escolhe-se. Não ao acaso mas escolhe-se. O Bloco optou por um modelo de inspiração comunicacional. É uma das suas características, ser informação, ser comunicação e contacto, modelo comunicacional nesta que é tecnologicamente a sociedade da informação – em que as redes sociais de internet não se substituem às ruas, mas têm algo a ver com a Praça Tahir.

O portal de informação, a produção de vídeo, designe, fotografia e rádio a nível central; os sites, os comunicados de imprensa, a distribuição de comunicados à população, a audição pública de sectores concretos, o contacto com a cidadã anónima e o cidadão anónimo nas ruas, a nível local; todas essas são tarefas, consoante os seus graus de especialidade e permanência, são garantidas por uma estrutura profissional mínima (sim, é mínima) multiplicada pelo esforço voluntário e militante de muitos milhares de activistas.

Que partido para as lutas emancipatórias?

Não há modelos eternos, apesar de haver princípios. O Bloco de Esquerda é o movimento político que, herdeiro das lutas emancipatórias e da experiência do movimento operário, forjou um partido de tipo novo para as tarefas de hoje. Um partido popular, radical, socialista, feminista, ecologista, internacionalista, anti-dogmático, pluralista. Um partido de programa político.

O papel dos partidos é a divulgação de um programa alternativo em confronto com a política do sistema, radicalizando em processo geral a luta de classes. Os partidos revolucionários não fazem revoluções, mas se não estiverem preparados para elas, não servem para nada.

Joana Mortágua

 

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