“SYRIANA” Versão para impressão
Terça, 13 Março 2012

freedomsyriaO papel da Síria como uma das mais prestigiadas câmaras de tortura para prisioneiros feitos pelos EUA, na sua tarefa ingente de espalhar a democracia pelos vários cantos do mundo, encontra-se neste momento comprometido.

Artigo de Mário Tomé

E não devemos admirar-nos: Bashar Al-Assad tem agora muito mais gente para torturar e, se pode mesmo falar-se de tortura de escala, os prisioneiros da democracia norte-americana, pela pressão fortíssima da situação interna da Síria, ficam a perder, ou seja as torturas contratadas ficam para segundo plano.

De facto a guerra civil, que cada vez é mais uma realidade na Síria, tem exigências, para a ditadura da família Al-Assad e seus generais, que não se compadecem com a continuação do nível alcançado na prestação a que habituou os seus amigos - a tortura não pode ser descartada como cimento de amizades mesmo que não alardeadas e, como se vê agora, aparentemente comprometidas.

O apoio dos EUA e da generalidade dos países da NATO à oposição, ou oposições melhor dizendo, tem um objectivo fundamental, a saber: levar por diante a liquidação sistemática das revoltas populares que incendiaram o Magreb e o Médio Oriente.

Os ditadores de serviço a si próprios e à estratégia de domínio do imperialismo com os EUA à cabeça e no comando, começaram a cair graças a levantamentos populares sustentados por reivindicações democráticas e exigências genuinamente populares de radical mudança do sistema com base em transformações sociais profundas sustentadas pela centralidade do trabalho, pela imposição de serviços sociais e serviço público generalizados, como base de organização e sustentação da sociedade.

Aqui surgiram dois problemas adicionais à ameaça de perda do controlo regional, maior ou menor, do imperialismo: em primeiro lugar, os objectivos democráticos progressistas anunciados pelas revoltas populares árabes já não se integravam sequer nas actuais tendências da formatação político-social dos próprios Estados até agora olhados como democráticos: a grande crise com início em 2007 teve como resposta um novo paradigma de liquidação do Estado social e consequente distorção da democracia e refinamento dos processos autoritários e repressivos. Mais próximos, portanto, dos mubaraks do que dos anseios mobilizadores da juventude árabe.

Em segundo lugar, as mudanças anunciadas pela mobilização popular e pela luta corajosa e radical contribuíam para reforçar a luta palestiniana e ameaçavam o papel de Israel enquanto pitbull dos EUA e sua capacidade enquanto agressor inimputável, nomeadamente contra o Irão, único país suficientemente forte e organizado na região e, portanto, com influência crescente na instável correlação de forças.

As revoltas, reclamando-se da democracia e do bem estar social, não podiam ser desacreditadas pelos meros meios de propaganda. Foi pois necessário esvaziá-las fingindo que se apoiavam. A táctica escolhida pelos EUA e pelos países da NATO foi o que poderei chamar de intercepção armada.

No Egipto, pelo próprio exército  - dependente doutrinária e materialmente dos EUA - que se reapoderou do poder, que sempre teve, aliás, depois de ter fingido ser neutro durante a fase mais aguda do confronto popular que levou ao derrube de Mubarak.

Na Líbia, preparando e lançando grupos armados que se substituíssem à contestação e revolta popular até ao apoio e intervenção da própria NATO na esteira da França saudosa do “Beau Gest”. Assim puderam lamentar o linchamento do seu amigo Kadafi ao mesmo tempo que saudaram sua morte, deixando um país sem rei nem roque apenas com uma segurança: o petróleo continua em boas mãos.

No Bahrein,  ignorando a intervenção dos tanques da Arábia Saudita que, no entanto, não conseguiram parar a contestação que continua.

Na Síria, apoiando e armando e estimulando apenas, por enquanto, o apelo do CNS  à intervenção externa que não está posta de parte apesar da retórica garantista da ONU e de não servir, eventualmente, os interesses das opulentas e untuosas monarquias regionais.

Estando fixadas numa instabilidade relativa mas favorável aos desígnios imperialistas – tal como aconteceu no Iraque e se anuncia no Afeganistão  - as situações na Tunísia, no Egipto e na Líbia, a Síria é agora o ponto de aplicação da táctica que surtiu efeito nos outros países: substituir, como já referi, a revolta radical popular pela constituição de grupos armados apoiados, municiados e controlados pelo imperialismo.

Claro que esta táctica propicia a sectarização ideológica da luta ao dar força a entidades que se estabelecem como conselhos nacionais de «libertação» que assumem como objectivo estratégico o derrube dos ditadores, ignorando as causas e os objectivos fundamentais que desencadearam a revolta popular: o derrube do ditador como primeiro passo para aceder à liberdade que permita as transformações sociais em resposta não só à “brutalidade do regime mas às desigualdades incomportáveis, à corrupção instalada e aos anseios da juventude – a parte massiva e activa da revolta – ao emprego, inserção social e condições de afirmação de capacidades e qualificações e assunção de responsabilidades na condução dos destinos do país”

Este método de esvaziamento e alienação da base material e política comum de unidade popular, abre todo o espaço para a cristalização dos elementos mais jovens e mais activos em torno dos eixos de conservação do poder real ou potencial das seitas ideológicas o que, no caso presente, quer dizer das diferentes facções islamitas. Assim, a libertação do ditador – normalmente factor de estabilidade social imposta à custa da repressão instalada e rotineira permitindo à sociedade funcionar em aparente harmonia que as causas profundas da revolta vieram pôr em causa - fica dependente do comando ideológico armado. Olhar para este tipo de luta armada como se olhava para as lutas de libertação nacional e ou anti-colonial do pós II Guerra Mundial em nada ajuda a entender o que se passa.

Se associarmos isto ao papel social que os grupos islamistas (como cá a igreja católica) desempenham entre os seus fiéis, temos o caldo necessário para a transformação da revolta, desencadeada por causas materiais e de características laicas, em confrontos ideologicamente marcados.

Desta forma os grupos não sunitas, no caso sírio em que a direcção e comando da oposição armada é essencialmente sunita, têm dificuldade em se associar à luta embora desejando com a mesma veemência a liquidação da ditadura.

Está assim consumada uma vitória estratégica do imperialismo. Em termos tradicionais dividir para reinar travando e impedindo as transformações sociais e políticas que poriam em causa as bases de um poder ao serviço do imperialismo.

As desastrosas consequências para as populações apanhadas nesta armadilha assassina não comovem os assassinos “natos” bem calejados nos vários teatros de operações por onde têm deixado o seu rasto de morte, destruição e miséria.

A situação na Síria revela-se cada vez mais complexa e a saída cada vez mais imprevisível. Mas considero redutor apreciar a intervenção imperialista apenas de um ponto de vista do condicionamento da correlação das forças dominantes na região, nomeadamente na perspectiva de uma ofensiva contra o Irão.

Os factores em jogo e os interesses em confronto, se usarmos como método de análise a comparação e analogia históricas, levam-nos a recear a intervenção externa que terá como consequência ainda maior desorganização social, a guerra sectária intestina e a ruptura social.

Os esforços de negociação para a saída da família al-Assad dando lugar a um governo de entendimento das oposições, não parecem ter, pelas razões apontadas, grandes condições de êxito. Aliás, na perspectiva das aspirações populares que desencadearam a revolta, o êxito dessas negociações significará sem dúvida a sua derrota. Pôr termo à guerra e desalojar Assad,  estancar o derramamento de sangue e a destruição, permitir que os desalojados e refugiados voltem a suas casas será um bem inestimável. Mas as forças que dirigem a luta armada não dão qualquer garantia, sequer para uma amostra de democracia tout court , que não passa de uma miragem.

Os casos do Iraque e do Afeganistão, e mais recentemente da Líbia e, de outra forma na Tunísia e no Egipto, também eles infectados pelo mesmo vírus da intervenção imperialista, mostram bem o que pode esperar a sociedade síria.

O espaço de manobra dos EUA no Médio Oriente tinha sido claramente ameaçado pelas revoltas populares na região. A sua estratégia de pressão e ameaça contra o Irão, única potência credível na região, tendo Israel como provocador, assim como o seu apoio à política sionista de paulatino genocídio do povo palestiniano, sairiam bastante enfraquecidas com o êxito das revoltas populares, nomeadamente na Síria.

Daí a necessidade de intervenção diversificada que não se fez esperar. Mas se a instabilidade da Síria aparece como um enfraquecimento da posição do Irão e por maioria de razão a mudança de poder para as mãos sunitas que parece dominarem o CNS , os EUA não poderão ir muito além da chantagem e da pressão em torno do desenvolvimento do programa nuclear brandido como um avejão para impressionar almas puras, se tivermos em conta as bombas nucleares de Israel, Índia e Paquistão para não falar das dos próprios EUA, França e Reino Unido.

Por mais congeminações que se façam sobre a forma como “resolver” a situação síria, na actual situação geral de desrespeito do direito internacional, nomeadamente quanto à situação na Palestina e aos acordos de limitação e controlo dos arsenais nucleares, e face às forças em presença e sua arrumação, só a luta popular dos povos árabes será instrumento capaz de levar a tranquilidade ao Médio Oriente e fazer prevalecer a paz possível.

Mas, para isso, e ao contrário do que parece ser ainda a convicção entre algumas forças progressistas na Europa, a luta dos povos da Europa, assediados por uma ofensiva sem precedentes contra a democracia e as conquistas de um século de lutas, enfraquecendo os poderes estabelecidos e o próprio imperialismo, terá um papel determinante para a situação no Médio Oriente e no Norte de África. Ou seja, não será o exemplo das revoluções árabes que estimulará os movimentos sociais de contestação e revolta na Europa, mas serão estes que terão, agora, um papel importante na ajuda à luta dos povos árabes, pois o inimigo é o mesmo.

*Alain Gresh, «A propósito da Síria», in esquerda . net

 

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