Troikocracia Versão para impressão
Quinta, 31 Maio 2012

cerberus

É curioso que para dizer Estado/Governo os gregos usam a palavra Kratos e o nome do seu Estado, traduzido em português como República Helénica, se escreve em grego Ellīnikī́ Dīmokratía (**). Quero com esta curiosidade sobre a Grécia sublinhar que o poder ou é do Demos (povo) ou é da dívida (dos credores). E se a dívida soberana sai do poder de um soberano (que seria o povo grego) para mãos alheias é porque esse poder foi alienado: o povo de soberano passou a tutelado.

A democracia não é um poder qualquer, é o poder de um povo, o poder de uma comunidade política que se reconhece enquanto tal. Ninguém vive em democracia se não fizer parte de um povo soberano. Isso não existe. E as línguas, as etnias e as religiões são uma questão absolutamente secundária como critério para o que é um povo. O critério que prevalece é o da comunidade política. É um povo toda a comunidade política historicamente construída que se reconheça enquanto tal, e isso muda ao longo do tempo, mas não brota instantaneamente.

A soberania popular foi uma conquista histórica dos povos. O povo português, por exemplo, libertou-se do poder absoluto da Dinastia de Bragança com a Revolução de 1820 e reafirmou em pleno essa soberania popular com a Revolução republicana de 5 de Outubro de 1910. Já os povos colonizados por Portugal, ganharam a sua soberania na luta contra Portugal enquanto potência colonizadora. O caso dos Estados Unidos é semelhante, o povo norte-americano nasceu na construção de um país contra as potências colonizadoras europeias. Contra os impérios, as dinastias absolutas e as potências coloniais, assim se formaram os povos soberanos, enquanto identidade de luta e de libertação.

Ao arrepio do direito dos povos à autodeterminação, a chantagem da inevitabilidade da austeridade como resposta à crise percorre todos os Estados-Membros da União Europeia e não apenas os intervencionados – Grécia, Portugal e Irlanda. A política BCE/FMI vai entrado em pacotes de austeridade sempre com a desculpa de que isso é para não ter de “chamar” o FMI. Os programas de empobrecimento cumprem velhos sonhos das burguesias da periferia e do centro da Zona Euro, mas a mobilização do poder e da ameaça das instituições internacionais acrescentam um elemento de tutela externa.

Casos mais graves e sintomáticos são os da Grécia e de Itália. À margem de qualquer legitimidade democrática, os governos da Grécia e da Itália passaram a ser chefiados por dois tecnocratas do BCE, ambos com a Goldman Sachs no seu currículo. Na Grécia. o pretexto para empossar o não-eleito e ex vice-presidente do BCE Papademos foi negar ao povo um referendo sobre as medidas de austeridade.

Além de ex presidente do BCE, Papademos foi, entre 1994 e 2002, presidente do Banco Central da Grécia, um colaborador ativo da maquilhagem das contas públicas atribuída aos serviços Goldman Sachs. O governo de Lucas Papademos (11 de novembro de 2011 – 16 de maio de 2012), novo governo da Troika, foi empossado com o apoio do PASOK (membro do Partido Socialista Europeu), a Nova Democracia (membro do Partido Popular Europeu) e o LAOS (extrema-direita). A extrema-direita não entrava no governo desde o fim do regime militar grego, em 1974. Embora tenha saído do governo em fevereiro de 2012 pelo seu próprio pé, não nos poderemos esquecer que lá chegou pela via da Troika.

O governo do também “independente” e eurocrata Mario Monti iniciou funções a 16 de novembro de 2011. Dias antes, a 9 de novembro, Monti foi nomeado para senador vitalício pelo presidente da Republica Italiana Giorgio Napolitano. Este primeiro-ministro não eleito foi comissário europeu entre 1995 e 2004, senior advisor da Golman Sachs e apoiante do movimento federalista europeu Grupo Spinelli. Mas não é só a ligação à Golman Sachs e à eurocracia o que une Monti e Papademos, ambos são membros do think-tank Comissão Trilateral, criado por David Rockefeller, em 1973.

O respeito de Monti pela democracia pode ser visto no caso da privatização da água. Houve uma esmagadora vitória nos referendos contra as leis de aceleração da privatização da água (95,7% dos votos) e o aumento das tarifas de acordo com o capital investido (96,1%), em 12 e 13 de junho de 2011 – nas mesmas datas foram igualmente derrotadas a imunidade de Berlusconi e a energia nuclear. Porém o novo primeiro-ministro fez vista grossa a um refendo, que até Berlusconi respeitou (!). Os serviços públicos municipais, incluindo a distribuição de água, entraram no vasto rol das privatizações, junto com: Ferrovie dello Stato, ANAS, AGIP, Grupo ENI, Posta e Banco Posta, ALITALIA, ENEL

Todo este roubo da democracia e à democracia exige uma resposta popular em toda a Europa. Enquanto europeístas de esquerda, não somos soberanistas/nacionalistas, mas não é por isso que podemos deixar de afirmar a importância da soberania popular, antes pelo contrário. Defendemos que a cidadania europeia tem o potencial de poder acrescentar às democracias da Europa a força de uma comunidade que amplifique as aspirações do desenvolvimento coletivo e da paz internacional. A Europa para ser democrática tem de ser uma comunidade de muitas democracias (isto é, de muitos povos soberanos) e simultaneamente uma comunidade solidária de cidadãs e cidadãos.

A Europa não precisa de imposições de uma política orçamental ao Estados-Membros que esteja de acordo com os interesses dominantes nas principais potências como a Alemanha e a França. A Europa precisa de uma grande solidariedade, um orçamento maior que possibilite uma maior cooperação e uma grande estratégia de desenvolvimento comum de todos os Estados-Membros e ao serviço de todos eles como iguais.

Pela democracia, fora com a Troika, fora com o federalismo orçamental.

Bruno Góis

Notas

a referência a Troikocracia (de troika Fundo Monetário Internacional/Comissão Europeia/Banco Central Europeu) está aqui em sentido amplo, posto que nos países não-intervencionados, como Itália,  a política de austeridade não é aplicada por esta troika, ainda que com ela tenham as ligações referidas.

** Ellīnikī́ Dīmokratía é a versão em afabeto latino de Ελληνική Δημοκρατία

 
 

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